sábado, 1 de janeiro de 2022

Fim do mundo

Uma nova polarização tomou conta das redes sociais: quem ama ou não o filme ‘Não Olhe Para Cima’

Sergio Augusto, O Estado de S.Paulo, 01 de janeiro de 2022

Enquando enchentes diluvianas assolavam a Bahia e o segregacionismo vacinal imposto às crianças pelo presidente e o ministro Queirodes chocavam até seus aliados, uma nova polarização tomou conta das redes sociais, dividindo agora o País entre os que amam e os que não gostam do filme Não Olhe Para Cima, 2021. 

Suspeito que, se exibido uns cinco anos atrás, Não Olhe Para Cima já teria sido esquecido, como foi o (na época) espantoso Contágio, 2011 aqui visto 10 anos atrás. Por outro lado, se lembrado daqui a algum tempo, não será com a mesma admiração que Dr. Fantástico, 1064 até hoje suscita. 

Stanley Kubrick fez uma arrasadora comédia de humor negro, afinada com a paranoia antiatômica da época. Saí chapado do cinema, nos últimos dias de janeiro de 1964, e encontrei Jaguar no mesmo estado de perplexidade e êxtase. Não Olhe Para Cima me divertiu, aqui e ali, mas confesso que tive ganas de não ir em frente na primeira meia hora de filme, tamanha a sensação de déjà vu.

Nada tenho a acrescentar de relevante ao muito que já foi dito sobre o filme. Todo mundo se manifestou a seu respeito, inclusive gente que não sabe diferençar cometas de planetas, e, com maior grau de envolvimento, os cientistas que se identificaram com as personagens de Leonardo Di Caprio e Jennifer Lawrence (caso da bióloga Natalia Pasternak). 

Sátira à clef ao negacionismo científico, seu cometa em rota de colisão com a Terra é uma metáfora do cataclismo ambiental, do mesmo modo que os alienígenas que invadiam nosso planeta, na ficção científica da década de 1950, metaforizavam ameaças (reais e imaginárias) adubadas pela Guerra Fria. 

Numa daquelas fantasias, O Fim do Mundo (When Worlds Collide, 1951), de George Pal e Rudolph Maté, produzida em 1953, a metáfora tinha ressonâncias bíblicas: o foguete em que os sobreviventes da destruição da Terra por uma estrela (Bellus) se refugiavam em outro planeta (Zyra) era um sucedâneo da arca de Noé, tão elitista quanto a nave que, no desfecho de Don’t Look Up, reitera as desconfianças de que não serão os humildes que herdarão a Terra, e sim Elon Musk e sua argentária grei. 

McKay fez um combo escatológico, com o alarmismo pragmático de O Fim do Mundo e o humor caricatural de Dr. Fantástico, evitando, espertamente, a nórdica deprê de Melancolia (ou o Apocalipse segundo Kierkegaard), que nos impactou 10 anos atrás. O que Trump terá achado da presidente Orlean (Meryl Streep)? Bolsonaro nem deve ter visto o filme, mas é possível que saiba que ele e seu filho Carluxo (Jason Orlean) estão em cena – assim como o General Heleno e o restante da corja federal. Olhemos para frente.

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