Enfermeira rememora seu último ano após projeção nacional, conta que soube pela coluna que seria imunizada e pede aos brasileiros que se vacinem contra o vírus: 'Não tem chazinho, remedinho'
Mônica Bergamo, 1º.jan.2022, Folha de São Paulo
Bianka Vieira
Mônica Calazans diz que morreu quatro vezes no ano passado. Em uma dessas ocasiões, a enfermeira de 55 anos voltava para sua casa no bairro de Itaquera, na zona leste da capital paulista, quando ouviu de um motorista de aplicativo que a primeira pessoa vacinada contra a Covid-19 no Brasil não resistiu ao imunizante (ela foi a primeira a receber uma dose, da Coronavac). Na segunda, precisou mandar uma foto como prova de vida a um jornalista que, pelo mesmo motivo, estava preocupado. Ela mostrou que estava bem viva.
A terceira foi em um evento. "Nele, uma mulher começou a chorar. ‘Lá na minha cidade o povo pensa que você morreu’. Eu falei: ‘Então você vai levar a notícia de que eu estou viva", conta, entre risos. Uma colega de trabalho, enfermeira como ela, também ouviu da mãe a fake news de que "a primeira vacinada no Brasil morreu". Mulher, negra e enfermeira da UTI do Instituto de Infectologia Emílio Ribas e do Pronto Atendimento São Mateus, em São Paulo, Mônica Calazans foi imunizada minutos depois do aval da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) para o uso emergencial das vacinas Coronavac e Oxford/Astrazeneca em território nacional, no dia 17 de janeiro de 2021.
Aquele dia, celebrado por Mônica com o punho erguido, trouxe alento a um país que amargava os efeitos devastadores da segunda onda da epidemia e, até então, cerca de 210 mil mortes pelo coronavírus. Se por um lado a exposição transformou a enfermeira em personagem de notícias falsas —como as que espalharam a sua morte—, por outro trouxe múltiplas demonstrações de afeto. Na pequena sala do apartamento onde mora em Itaquera, com paredes cor-de-rosa, há um aparador de madeira reservado para presentes recebidos por ela.
O relicário reúne itens como uma máscara cirúrgica banhada a bronze, enviada por uma artista plástica, uma bola autografada pelo ex-jogador Neto, do Corinthians, seu time de coração, e um terrário com miniaturas sua e de um jacaré, troça feita em referência a uma fala do presidente Jair Bolsonaro (PL). "Isso é o carinho da população toda", diz, sorridente. Habituada a sair de Itaquera às 5h30 da manhã nos dias em que trabalha no Emílio Ribas, Mônica nem imaginava que seria vacinada quando tomou um ônibus e três linhas do metrô para chegar ao hospital naquele 17 de janeiro.
Por volta do meio-dia, ela foi orientada pela diretora do plantão a ir até o Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da USP, enquanto a Anvisa ainda analisava a liberação ou não das vacinas. Como era enfermeira e voluntária dos testes clínicos da Coronavac (ela recebeu placebo no estudo), Mônica pensou que pudesse ser imunizada junto com os demais profissionais de saúde.
"Cheguei e fui para o auditório. Do meu lado, sentou uma médica. Ela pegou o celular e mostrou a minha foto na coluna da Mônica Bergamo", relembra, gargalhando. Foi por meio da revelação feita nesta coluna que ela soube o motivo de sua presença naquele lugar. "Você acha que se eu soubesse que seria a primeira vacinada não teria me arrumado? Eu pus uma blusinha que, quando levanto o braço, aparece parte da minha barriguinha. Você acha que eu ia pagar esse mico? Nunca!"
"Me colocaram aquele avental branco que nem meu era" —até hoje ela não sabe a quem pertencia o jaleco hospitalar. "Foi uma exigência da equipe que eu colocasse o avental do SUS, aquela coisa toda. Não era meu, tanto é que nem me serviu, ficou justo. Fiquei parecendo o Hulk", segue, rindo.
"A minha mãe estava em casa de pezinho pra cima e aí apareceu no jornal aquela notícia toda, com a música do plantão. Ela gritou para a minha sobrinha: ‘Aninha! Que que sua tia está fazendo ali?’", relembra. "Todo aquele choro que tive naquele dia foi muito verdadeiro. Eu não tinha texto, não tinha nada na mão. Depois apareceram falando que eu era atriz, que não sei o quê. Foi uma patifaria o que fizeram."
A enfermeira diz entrar em 2022 mais aliviada em relação à pandemia, embora acredite que não seja possível baixar a guarda enquanto não houver mais pessoas vacinadas. "No início de tudo isso, eu pensava: ‘Será que vai morrer todo mundo?’. Com o avanço da vacina, foi diminuindo [esse temor]. Isso causa uma expectativa maior de que sim, estamos indo na direção correta."
"Eu espero que o povo se vacine para voltarmos à nossa vida normal. A gente vai ficar o resto da vida usando máscara? Eu não quero isso para a minha vida, sinceramente. Está na hora de mostrar o sorriso, de poder abraçar, pegar na mão e circular com segurança."
Nesses últimos dois anos, Mônica viu histórias de recuperação, mas também conviveu com a morte de perto. Um dos casos que marcou a enfermeira foi o de um senhor de quem ela cuidou no São Mateus e que pegou Covid-19 da neta. "Ela ficou bem, e o avô, não", conta. O paciente veio a óbito. "Na época daquele boom mesmo, o pronto-socorro recebia gente o tempo todo. O pessoal trabalhava incansavelmente porque, além dos leitos lotados, não estavam conseguindo dar vazão a todos os pacientes que chegavam. Março e abril foi aquela coisa terrível", relembra sobre o pico de casos e mortes da epidemia.
"A Covid não é uma doença que pode ser tratada com qualquer coisa, infelizmente. A gente só pode se livrar dela com a vacina, não tem outra saída. Não tem chazinho, remedinho."
Desde janeiro passado, a vida de Mônica foi tomada por lives, entrevistas e palestras. "Eu tento mostrar que sou uma pessoa comum com comorbidades, tenho diabetes, sou hipertensa, e para mim a vacina deu certo", diz sobre sua disposição em aceitar os convites que recebe para falar. A vida de estrela, inclusive, levou a enfermeira a participar das gravações da terceira temporada da série "Sintonia" (Netflix), ainda inédita. "Não posso dar spoiler", diz ao ser perguntada sobre seu papel.
Se há algum aspecto negativo em carregar um título como esse? "A desvantagem disso tudo é que agora eu tenho muito mais cautela com o que coloco em rede social. Antes da ‘Mônica primeira vacinada’, eu podia falar qualquer coisa que ninguém nem prestava atenção. Eu podia pôr uma receita de bolo lá que não usasse ovo que ninguém ia falar nada."
"Quanto menos eu abrir a boca, acho que é melhor porque não causa desgaste. Depois você tem que ficar se defendendo, se explicando. Ah, isso é um porre. Eu prefiro evitar." A enfermeira afirma ter sido alvo de ataques racistas, pela primeira vez em sua vida, após a projeção nacional. "Mas eu não me preocupo", diz. "Acho que eu, como mulher negra, estou fazendo um papel bonito."
"Durante todo esse período que estou carregando esse título, quero sempre fazer bonito para a minha raça, para as mulheres e para a enfermagem."
Seu contrato temporário com o Emílio Ribas, firmado em razão da pandemia, irá acabar em maio deste ano. "Minha intenção é ficar em casa mesmo, descansar, poder ir mais para a praia, dar uma respirada. Coisa simples, nada muito glamoroso, porque eu sou muito simples", conta. Se no último ano ela passou o dia 31 de dezembro precisando transferir pacientes com Covid-19 para outros hospitais, dada a lotação dos leitos, nesta passagem de ano ela trabalha com o otimismo de quem vê o número de internações caindo. "Hoje a gente já recebe o público de fato do Emílio, que são os pacientes de infectologia. Eu, particularmente, acho que é um termômetro."
Além de ser uma pessoa de riso fácil, Mônica se define como uma mulher tranquila que gosta de transmitir segurança a quem quer que esteja por perto, seja paciente, amigo ou familiar. Esse temperamento, diz, foi adquirido com o tempo, após perdas que marcaram a sua trajetória, como as mortes precoces do pai e do noivo.
Quatro anos atrás, em um outro 17 de janeiro, o companheiro com quem se relacionou desde os 15, teve um filho aos 24 e reatou aos 46 anos de idade sofreu um acidente vascular cerebral. Ele não resistiu e morreu poucas semanas depois, em fevereiro, mês em que planejavam o matrimônio. "A gente estava vivendo tudo muito intenso. Sabe aquela coisa gostosa? Nossa, era tudo de bom. Eu falava que queria casar com todas as pompas."
"Hoje eu consigo falar [sobre ele] sem desaguar, mas em outras épocas... Com tudo isso que já passei, eu aprendi a ter força. Eu agradeço muito a Deus quando deito na minha cama. Meu filho diz que eu sou doida porque falo bem alto: ‘Obrigada, Deus’. Todo dia."
Fã de Zeca Pagodinho e de grupos como Menos é Mais e Fundo de Quintal, ela espera pelo dia em que poderá frequentar um pagode. Embora esteja imunizada e quase não haja restrições na cidade de São Paulo, Mônica prefere aguardar. "Se eu falo para as pessoas não aglomerarem, não posso ir só porque estou com vontade. Na hora que eu chegar, o povo vai falar: ‘Olha lá onde está a primeira vacinada, dançando até o chão [risos]."
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