Eu sou, eu vou até o fim cantar
Por Mauro Ferreira , 21/01/2022
Elza Soares deixa discografia que sintetiza 60 anos de música brasileira em 35 álbuns
De Lupicínio Rodrigues a Romulo Fróes, obra fonográfica da cantora segue a cadência do samba e chega aos sons do século XXI.
Seguindo primordialmente a cadência do samba, mas extrapolando rótulos e gêneros musicais em trajetória fonográfica que totalizou 63 anos, Elza da Conceição Soares (23 de junho ou 22 de julho de 1930 – 20 de janeiro de 2022) sintetizou os caminhos da música brasileira nas últimas seis décadas em discografia iniciada em 1958 e encerrada – em vida – em dezembro de 2021.
De Lupicínio Rodrigues (1914 – 1974), ícone do samba-canção amargurado dos anos 1940 e 1950, a Romulo Fróes e Kiko Dinucci, nome de ponta da cena musical paulistana do século XXI, passando por Jorge Ben Jor, Caetano Veloso, Chico Buarque, Cazuza (1958 – 1990), Seu Jorge e Pedro Luís, Elza Soares deu voz a um Brasil sincopado, país de riquezas artísticas e naturais, mas carcomido pela miséria humana.
Construída com longos intervalos a partir dos anos 1980, por contingências do mercado, a obra fonográfica da cantora carioca foi do disco de 78 rotações por minuto até os singles e álbuns editados em formato digital, passando por LPs, compactos simples e duplos – como eram chamados no jargão fonográfico brasileiro os singles com duas ou quatro músicas editados dos anos 1960 aos anos 1980 – e por CDs.
Em vida, a discografia de Elza Soares compreende 35 álbuns. O primeiro, Se acaso você chegasse, foi lançado em maio de 1960 pela gravadora Odeon no embalo do single editado em dezembro de 1959 com a gravação do samba-título de Lupicínio Rodrigues e Felisberto Martins (1904 – 1980) apresentado ao Brasil em 1938 na voz do cantor Cyro Monteiro (1913 – 1973).
O último álbum, Elza Soares & João de Aquino, saiu em 10 dezembro de 2021 pela gravadora Deck com o até então inédito registro da sessão que juntou a cantora e o violonista em estúdio da cidade do Rio de Janeiro (RJ), presumivelmente em 1996.
Voz de Elza Soares e violão de João de Aquino se harmonizam na liberdade de álbum inédito gravado nos anos 1990. Entre um álbum e outro, Elza Soares gravou discografia em que, ao longo da década de 1970, transitou pelo sambalanço – gênero pautado pelo ritmo sinuoso, prato cheio para a cantora exercitar a manemolência da voz rouca e cheia de ginga – e pelo samba-canção, além de ter posto veneno no cancioneiro da bossa nova e de ter contribuído para a popularização do samba-enredo na segunda metade dos anos 1960.
Após discos gravados com Miltinho (1928 – 2014), Wilson das Neves (1934 – 2017) e com o então debutante Roberto Ribeiro (1940 – 1996), Elza foi induzida a investir em sambas de temática afro-brasileira, tendência dos anos 1970 por conta do estouro da cantora Clara Nunes (1942 – 1983).
Em 1980, década em que se sentiu perdida, a cantora abriu o leque estético após ser resgatada por Caetano Veloso, que a convidou para a gravar o samba-rap Língua (Caetano Veloso) no álbum Velô (1984). No embalo dessa ressurreição (a primeira de muitas), Elza sintetizou jazz, blues, soul e samba em álbum, Somos todos iguais (1985), que ampliou as fronteiras do repertório da cantora.
Em 1988, a artista se conectou no álbum Voltei com a geração de sambistas projetados nos anos 1980 – como Arlindo Cruz, Luiz Carlos da Vila (1949 – 2008), Pedrinho da Flor e Sombrinha – com a autoridade de ter lançado Jorge Aragão em 1976 com a gravação de Malandro, samba de Aragão com Jotabê.
Com direito a dueto com Zeca Pagodinho na regravação do samba Sinhá Mandaçaia (Almir Guineto e Luverci Ernesto, 1981), a conexão com a geração do Cacique de Ramos foi refeita no álbum seguinte, Trajetória (1997), único disco gravado em estúdio pela cantora nos anos 1990, outra década difícil para Elza.
Em 2002, Elza renasceu de novo com álbum, Do cóccix até o pescoço, que deu início ao processo de atualização do som da artista. Foi neste álbum gravado com produção musical de Alê Siqueira, sob a direção artística de José Miguel Wisnik, que Elza se apropriou de A carne (Seu Jorge, Marcelo Yuka e Wilson Cappellette, 1998), música lançada pelo efêmero grupo Farofa Carioca. Do cóccix até o pescoço tinha textura eletrônica ampliada por Elza no álbum seguinte, o arrojado Vivo feliz (2003), disco moderníssimo, feito para a pista. mas de pouca repercussão.
De volta ao samba, mas com o toque do Rap da felicidade (Julinho Rasta e Kátia, 1995) no encerramento, Elza rebobinou sucessos no álbum ao vivo Beba-me (2007), primeira gravação de show da cantora a ser editada em DVD (uma segunda sairia em 2016 com o registro de show feito em tributo ao centenário de nascimento do compositor Lupicínio Rodrigues e uma terceira foi feita em 17 e 18 de janeiro deste ano de 2022, em São Paulo, dois dias antes da morte de Elza).
A consagração definitiva de Elza Soares veio com o apocalíptico álbum A mulher do fim do mundo, lançado em setembro de 2015. A mulher do fim do mundo fez jorrar lágrima sobre o choro da cuíca, ouvido entre guitarras distorcidas. A lágrima escorreu no esquema do samba noise que conectou a cantora a artistas paulistanos como Kiko Dinucci e Rodrigo Campos. Produzido por Guilherme Kastrup sob a direção artística de Romulo Fróes e Celso Sim, o álbum A mulher do fim do mundo revitalizou a bossa negra de Elza, mulher da pele preta, entidade que reeditou o vigor e contundência do disco de 2015 no álbum seguinte, Deus é mulher (2018), feito com a mesma turma paulistana.
Em 2019, o álbum Planeta fome repôs a cantora em órbita carioca, roçando a contundência dos dois discos anteriores com canto dessa voz do samba e do morro que transcendeu estilos e latitudes com a bossa negra de alcance universal.
Eis, em ordem cronológica, os 35 álbuns lançados por Elza Soares entre 1960 e 2021:
1. Se acaso você chegasse (Odeon, 1960)
2. A bossa negra (Odeon, 1960)
Elza Soares - Trajetória (Álbum Completo Oficial - 1997)
3. O samba é Elza Soares (Odeon, 1961)
4. Sambossa (Odeon, 1963)
5. Na roda do samba (Odeon, 1964)
6. Um show de Elza (Odeon, 1965)
7. Com a bola branca (Odeon, 1966)
8. O máximo em samba (Odeon, 1967)
9. Elza, Miltinho e samba (Odeon, 1967) – com Miltinho
Elza Soares e Miltinho - Samba do Zirigidum - 1997
10. Elza Soares, baterista: Wilson das Neves (Odeon, 1968) – com Wilson das Neves
11. Elza, Miltinho e samba – vol. 2 (Odeon, 1968) – com Miltinho
Pot-pourri 2 - Elza Soares & Miltinho
12. Elza, carnaval & samba (Odeon, 1969)
13. Elza, Miltinho e samba – vol. 3 (Odeon, 1969) – com Miltinho
14. Samba & mais sambas (Odeon, 1970)
15. Elza pede passagem (Odeon, 1972)
16. Sangue, suor e raça (Odeon, 1972) –com Roberto Ribeiro
17. Elza Soares (Odeon, 1973)
18. Elza Soares (Tapecar, 1974)
19. Nos braços do samba (Tapecar, 1975)
20. Lição de vida (Tapecar, 1976)
21. Pilão + Raça = Elza (Tapecar, 1977)
22. Senhora da terra (CBS, 1979)
23. Elza negra, negra Elza (CBS, 1980)
Elza Soares e Ney Matogrosso - Tem Que Rebolar
24.Somos todos iguais (Som Livre, 1985)
25. Voltei (RGE, 1988)
26. Trajetória (Universal Music, 1997)
27. Carioca da gema – Ao vivo (Edição independente, 1999)
28. Do cóccix até o pescoço (Maianga, 2002)
Elza Soares - Do Cóccix Até O Pescoço (Álbum Completo Oficial - 2002)
29. Vivo feliz (Reco-Head / Tratore, 2003)
30. Beba-me – Ao vivo (Biscoito Fino, 2007)
Elza Soares Ao Vivo | Beba-me (Show Completo)
31. A mulher do fim do mundo (Circus, 2015)
32. Elza canta e chora Lupi (Coqueiro Verde Records, 2016)
A Cigarra - Elza Sores feat. Letícia Sabatella (Video Oficial)
33. Deus é mulher (Deck, 2018)
34. Planeta fome (Deck, 2019)
35. Elza Soares & João de Aquino (Deck, 2021)
CAETANO E ELZA SOARES- LÍNGUA- PROGRAMA CHICO E CAETANO
caetanoveloso
Elza Soares foi uma concentração extraordinária de energia e talento no organismo da cultura brasileira. Tendo sido fã de sua voz e musicalidade desde os meus anos de ginásio, tive a honra de ser procurado por ela quando de sua iminente decisão de abandonar a carreira e/ou o Brasil. Fui capaz de convencê-la a ficar porque entendi que aquilo era uma espécie de pedido de socorro. Compus o samba-rap "Língua" e a convidei para cantar a parte melódica. Assim ela voltou a cantar e a receber atenção. Voltou à televisão e, depois, figuras tão díspares quanto Lobão e Zé Miguel Wisnik fizeram questão de trabalhar com ela. Recentemente jovens músicos paulistanos (e ao menos um carioca que vive em Sampa) têm feito com ela o que ela merece. Morreu na glória a que fazia jus, numa idade respeitável, afirmando a grandeza possível do Brasil. ♥️🌹
Corpo de Elza Soares é enterrado com muita emoção e coro: 'A pele preta é a minha voz'
Elza morreu exatamente 39 anos após Garrincha
Um dia, ela disse: Agora eu posso morrer. Tinha 43 anos. Mas não morreu. Chegaria, invicta, aos 91
Ruy Castro, Folha de São Paulo, 22/01/202
Na noite de 19 de dezembro de 1973, Elza Soares chegou ao último andar do Maracanã e viu lá de cima o anel do estádio tomado. Eram 131.555 pessoas. Suspirou e disse para um amigo: "Agora eu posso morrer". Ali se realizava seu sonho: um jogo de despedida para Garrincha, o homem que ela amava e a quem o Brasil devia duas Copas do Mundo e um milhão de alegrias —o Jogo da Gratidão, entre a seleção de 1970 (com o já simbólico Garrincha no ataque) e um combinado de craques estrangeiros. Nunca um jogador recebera tal homenagem no Brasil.
Elza Soares gravou DVD dois dias antes de morrer e tem disco político inédito
Fora dela a ideia e, graças à sua luta, reunindo ex-jogadores, jornalistas, cartolas e políticos, ele iria acontecer. Fora dela também a exigência de que parte da renda se destinasse a comprar um apartamento e abrir uma poupança para cada uma das oito filhas de Garrincha —até para que cessasse a perseguição a eles. Foi sua primeira vitória sobre a intolerância, o moralismo e a hipocrisia. Daí ela achar que já "podia morrer".Fora dela a ideia e, graças à sua
luta, reunindo ex-jogadores, jornalistas, cartolas e políticos, ele iria
acontecer. Fora dela também a exigência de que parte da renda se destinasse a
comprar um apartamento e abrir uma poupança para cada uma das oito filhas de
Garrincha — até para que cessasse a perseguição a eles. Foi sua primeira vitória
sobre a intolerância, o moralismo e a hipocrisia. Daí ela achar que já
"podia morrer".
Mas Elza não morreu. Tinha então 43 anos e viveria outros 48, suficientes para
mais uma ou duas vidas. Nenhuma outra artista brasileira teria tantas
sobrevidas. Basta somar os dramas, tragédias, declínios, voltas por cima e
novos apogeus que ela experimentaria até quinta-feira (20), quando finalmente
partiu.
A trajetória de Elza
foi ainda mais dura do que se tem dito nos obituários e programas a seu
respeito. Ela passou décadas escondendo a idade. Dava a entender que a menina
que fora ao programa de rádio de Ary Barroso dizendo ter vindo do "Planeta
Fome", em 1953, era uma adolescente. Não era. Já tinha 23 anos, porque
nascera em 1930. E ainda levaria outros seis até ser descoberta por Sylvia
Telles na boate Texas, no Leme, em 1959, e levada à consagração na gravadora
Odeon.
Sua vida, portanto, começou aos 29 anos. Foi o tempo que lhe custou para se
tornar a Elza Soares que chegaria, invicta, aos 91.
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