Em 'Roda do Destino', Hamaguchi tenta iluminar o mistério do feminino. Ninguém consegue ser feliz no cinema do diretor japonês, as histórias nunca possuem “happy ends”. A vida e o amor são imprevisíveis
Luiz Carlos Merten, Especial para o Estadão, 04 de janeiro de 2022
Talvez não sejam tão grandes quanto os mestres, os senseis – Masaki Kobayashi, Kenji Mizoguchi, Yasujiro Ozu, o próprio Akira Kurosawa –, mas há uma nova e importante geração de autores japoneses. Kiyoshi Kurosawa e Hirokazu Kore-eda estão na faixa dos 60 anos, Ryusûke Hamaguchi mal passou dos 40. Foi ele quem escreveu o roteiro de The Wife of the Spy, pelo qual Kiyoshi Kurosawa foi premiado em Veneza no ano passado. Como Hong Sangsoo na Coreia do Sul, Hamaguchi é herdeiro da nouvelle vague francesa.
Se Sangsoo bebe na fonte dos contos de Eric Rohmer, Hamaguchi tem mais a ver com o que há de mais secreto em Jacques Rivette. Paris Nous Appartient. Cinema da palavra, com algo de teatralidade e que prepara armadilhas para o espectador. Asako I & II, Roda do Destino, Drive My Car. Asako envolve-se com dois homens que, num determinado momento, parecem ser o mesmo. Roda divide-se em três partes e, em cada uma delas, Hamaguchi cria contrapontos. Drive My Car baseia-se no conto de Haruki Murakami. No original, Roda chama-se Roda da Fortuna e da Fantasia.
Premiado em Berlim, ‘Roda do Destino’ de Hamaguchi estreia no Brasil
A produtora que descobre que a modelo da sessão de fotos está ficando com seu ex, a garota que usa colega para se vingar do professor, a garota que identifica nessa mulher uma figura decisiva de sua juventude, mas será que é ela mesma?
A terceira história de Roda do Destino pode até nem ser a melhor de todas – são primorosas –, mas possui características especiais. A primeira passa-se em boa parte num carro, a segunda, num ônibus, a terceira, na escada rolante do metrô. Uma sobe, a outra desce. O breve momento em que se cruzam leva a um mal-entendido. Uma identifica na outra uma terceira figura que foi decisiva em sua vida. Vão tomar chá em casa. A conversa toma rumos inesperados e até surpreendentes. Quem são essas mulheres que se confundem, e confundem o espectador?
Hamaguchi inscreve-se numa tradição de grandes criadores que tentam iluminar o mistério do feminino. Há uma discussão sobre a identidade que percorre seu cinema, mas essas confusões, esses mal-entendidos, a par de serem motores das narrativas, lhe permitem abordar o que, na verdade, é seu tema mais íntimo. A dificuldade do afeto no mundo contemporâneo. Ninguém consegue ser feliz no cinema de Hamaguchi, as histórias nunca possuem “happy ends”. A vida e o amor são imprevisíveis.
Há um resquício de François Truffaut – o amor é sempre vivido entre o gesto espontâneo e a palavra consciente.
O que num momento aproxima, em outro afasta, tal é a roda do destino. Fora do Brasil, estreou no fim de dezembro de 2021. Roda talvez tenha ficado num limbo. Entre anos. É, ou foi, um dos melhores filmes de 2021.
Drive My Car: An Interview with Ryûsuke Hamaguchi
By Jordan Cronk | November 24, 2021
Em tempo: Hamaguchi nada nas águas de Amores Expressos, 1994, Kar-Wai Wong
Hiroshima, Meu Amor, 1959, Alain Resnais e Closer: Perto Demais, 2004, Mike Nichols
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