terça-feira, 1 de junho de 2021

Uma flor nasceu na rua! Furou o asfalto, o tédio, o nojo e o ódio

Imprensa, protestos e pandemia

Cristina Serra, Folha de São Paulo, 31/05/2021

Manifestações mostram que parcela significativa da sociedade se moveu

As capas dos jornais O Globo e O Estado de S. Paulo, no último domingo, vão figurar na história da imprensa como exemplos do que não deve ser feito no jornalismo. Milhares de pessoas saíram às ruas,  em 200 cidades, em repúdio a Bolsonaro e à sua política de extermínio, que arrastou para o cemitério quase meio milhão de brasileiros.

Pessoas aglomeradas e quase todas com máscaras em protesto contra Bolsonaro na Avenida Paulista, em São Paulo, no sábado (29/05/2021). Bruno Santos / Folhapress

As manifestações mostram que parcela significativa da sociedade, finalmente, se moveu. Apesar do medo, arriscou-se a sair de casa, tentou se proteger da melhor maneira possível e foi às ruas: para protestar, para compartilhar seu luto, suas dores e suas perdas, mas também sua força e sua esperança de vislumbrar um horizonte azul no meio dessa tormenta sem fim.

As pessoas querem viver. Esse foi o sentido maior das passeatas. Ao ver as imagens, lembrei de Drummond e do seu poema "A flor e a náusea", que em seus versos nos diz: "Uma flor nasceu na rua ! ("¦) Furou o asfalto, o tédio, o nojo e o ódio". Drummond, atualíssimo. O que está claro agora é que as ruas não são monopólio da extrema direita e que esse espaço será disputado, palmo a palmo, daqui até 2022.

Manifestante abaixo de chuva em protesto contra Bolsonaro na avenida Paulista em São Paulo (29/05/2021). Eduardo Anizelli / Folhapress 

O protesto mereceu três linhas na primeira página de O Globo. No Estadão, cinco linhas. E ambos trouxeram manchetes otimistas sobre a recuperação da economia. Entre os grandes impressos, esta Folha foi o único a perceber a importância das demonstrações, dando a elas foto e manchete. Ainda sobre a cobertura, vale a leitura da coluna de Maurício Stycer, no UOL, sobre o pouco destaque dado ao tema nas TVs.
A imparcialidade da imprensa é uma quimera. Mas se espera que a mídia seja capaz de refletir múltiplas aspirações da sociedade em que está inserida e que não atue como porta-voz desse ou daquele interesse. Quando se descola da realidade e deixa de publicar o que é notícia (e as manifestações o foram por qualquer critério de análise), a imprensa se afunda na irrelevância. É preciso perceber a roda da história girando para não ser esmagado por ela.

Manifestante em protesto contra Bolsonaro na Avenida Paulista, em São Paulo, no sábado (29/05/2021). Bruno Santos / Folhapress

 

A flor e a náusea 

Carlos Drummond de Andrade

Preso à minha classe e a algumas roupas,
vou de branco pela rua cinzenta.
Melancolias, mercadorias espreitam-me.
Devo seguir até o enjoo?
Posso, sem armas, revoltar-me?

Olhos sujos no relógio da torre:
Não, o tempo não chegou de completa justiça.
O tempo é ainda de fezes, maus poemas, alucinações e espera.
O tempo pobre, o poeta pobre
fundem-se no mesmo impasse.

Em vão me tento explicar, os muros são surdos.
Sob a pele das palavras há cifras e códigos.
O sol consola os doentes e não os renova.
As coisas. Que tristes são as coisas, consideradas sem ênfase.

Vomitar esse tédio sobre a cidade.
Quarenta anos e nenhum problema
resolvido, sequer colocado.
Nenhuma carta escrita nem recebida.
Todos os homens voltam para casa.
Estão menos livres mas levam jornais
e soletram o mundo, sabendo que o perdem.

Crimes da terra, como perdoá-los?
Tomei parte em muitos, outros escondi.
Alguns achei belos, foram publicados.
Crimes suaves, que ajudam a viver.
Ração diária de erro, distribuída em casa.
Os ferozes padeiros do mal.
Os ferozes leiteiros do mal.

Pôr fogo em tudo, inclusive em mim.
Ao menino de 1918 chamavam anarquista.
Porém meu ódio é o melhor de mim.
Com ele me salvo
e dou a poucos uma esperança mínima.

Uma flor nasceu na rua!
Passem de longe, bondes, ônibus, rio de aço do tráfego.
Uma flor ainda desbotada
ilude a polícia, rompe o asfalto.
Façam completo silêncio, paralisem os negócios,
garanto que uma flor nasceu.

Sua cor não se percebe.
Suas pétalas não se abrem.
Seu nome não está nos livros.
É feia. Mas é realmente uma flor.

Sento-me no chão da capital do país às cinco horas da tarde
e lentamente passo a mão nessa forma insegura.
Do lado das montanhas, nuvens maciças avolumam-se.
Pequenos pontos brancos movem-se no mar, galinhas em pânico.
É feia. Mas é uma flor. Furou o asfalto, o tédio, o nojo e o ódio.

[A rosa do povo]



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