A revolta dos Malês em 1835
Na madrugada de 25 de janeiro de 1835, um domingo, aconteceu em Salvador uma revolta de escravos africanos. O movimento de 1835 é conhecido como Revolta dos Malês, por serem assim chamados os negros muçulmanos que o organizaram. A expressão malê vem de imalê, que na língua iorubá significa muçulmano. Portanto os malês eram especificamente os muçulmanos de língua iorubá, conhecidos como nagôs na Bahia.
Por: João José Reis - Universidade Federal da Bahia
Na madrugada de 25 de janeiro de 1835, um domingo, aconteceu em Salvador uma revolta de escravos africanos. O movimento de 1835 é conhecido como Revolta dos Malês, por serem assim chamados os negros muçulmanos que o organizaram. A expressão malê vem de imalê, que na língua iorubá significa muçulmano. Portanto os malês eram especificamente os muçulmanos de língua iorubá, conhecidos como nagôs na Bahia. Outros grupos, até mais islamizados como os haussás, também participaram, porém contribuindo com muito menor número de rebeldes.
A revolta envolveu cerca de 600 homens, o que parece pouco, mas esse número equivale a 24 mil pessoas nos dias de hoje. Os rebeldes tinham planejado o levante para acontecer nas primeiras horas da manhã do dia 25, mas foram denunciados. Uma patrulha chegou a uma casa na ladeira da Praça onde estava reunido um grupo de rebeldes. Ao tentar forçar a porta para entrarem, os soldados foram surpreendidos com a repentina saída de cerca de sessenta guerreiros africanos. Uma pequena batalha aconteceu na ladeira da Praça, e em seguida os rebeldes se dirigiram à Câmara Municipal, que funcionava no mesmo local onde funciona ainda hoje.A Câmara foi atacada porque em seu subsolo existia uma prisão onde se encontrava preso um dos líderes malês mais estimados, o idoso Pacifico Licutan, cujo nome muçulmano era Bilal. Este escravo não estava preso por rebeldia, mas porque seu senhor tinha dívidas vencidas e seus bens, inclusive Licutan, foram confiscados para irem a leilão em benefício dos credores.
O ataque à prisão não foi bem sucedido. O grupo foi surpreendido no fogo cruzado entre os carcereiros e a guarda do palácio do governo, localizado na mesma praça.
Daí este primeiro grupo de rebeldes saiu pelas ruas da cidade aos gritos, tentando acordar os escravos da cidade para se unirem a eles. Dirigiram-se à Vitória onde havia um outro grupo numeroso de malês que eram escravos dos negociantes estrangeiros ali residentes.
Após se unirem nas imediações do Campo Grande, os rebeldes atravessaram em frente ao Forte de São Pedro sob fogo cerrado dos soldados, indo dar nas Mercês, de onde retornaram para o centro da cidade. Aqui atacaram um posto policial ao lado do Mosteiro de São Bento, outro na atual Rua Joana Angélica (imediações do Colégio Central), lutaram também no Terreiro de Jesus e outras partes da cidade. Em seguida desceram o Pelourinho, seguiram pela Ladeira do Taboão e foram dar na Cidade Baixa. Daqui tentaram seguir na direção do Cabrito, onde tinham marcado encontro com escravos de engenho. Mas foram barrados no guartel da cavalaria em Água de Meninos. Neste local se deu a última batalha do levante, sendo os malês massacrados. Alguns que tentaram fugir a nado terminaram se afogando.
A revolta deixou a cidade em polvorosa durante algumas horas, tendo sido vencida com a morte de mais de 70 rebeldes e uns dez oponentes. Mas o medo de que um novo levante pudesse acontecer se instalou durante muitos anos entre os seus habitantes livres. Um medo que, aliás, se difundiu pelas demais províncias do Império do Brasil. Em quase todas elas, principalmente na capital do país, o Rio de Janeiro, os jornais publicaram notícias sobre o acontecido na Bahia e as autoridades submeteram a população africana a uma vigilância cuidadosa e muitas vezes a uma repressão abusiva.
Salvador tinha na época da revolta em torno de 65.500 habitantes, dos quais cerca de 40 por cento eram escravos. Entre a população não-escrava a maioria era também formada por africanos e seus descentes, chamados na época de crioulos quando eram negros nascidos no Brasil, além dos mestiços de branco e negro, chamados de pardos, mulatos e cabras. Juntando os negros e mestiços escravos e livres, os afro-descendentes representavam 78 por cento da população. Os brancos não passavam de 22 por cento. Entre os escravos, a grande maioria (63 por cento) era nascida na África, chegando a 80 por cento na região dos engenhos de açúcar, o Recôncavo.
Esses escravos eram trazidos de diversos portos da costa africana. Um grande número vinha de Luanda, Benguela, Cabinda, mas na época da revolta de 1835 a grande maioria era embarcada nos portos do golfo do Benim (portos de Ajudá, Porto Novo, Badagri, Lagos). Foram alguns desses últimos grupos os mais diretamente ligados à revolta. Eles podiam ser de diversas origens, segundo a língua que falavam: iorubá, haussá, fon, mahi, nupes, bornus etc. Na Bahia a maioria desses escravos era conhecida por nomes diferentes daqueles que tinham na África: os de língua iorubá chamavam-se nagôs, os fon e mahi eram conhecidos como jejes, os nupes como tapas.
Em 1835 a grande maioria dos escravos da Bahia nascidos na África era realmente de língua iorubá, cerca de 30 por cento. Eram como nagôs. Muitos deles professavam a religião muçulmana, embora a maioria dos nagôs fosse de fato adepta do candomblé dos orixás.
A cidade de Salvador tinha uma economia baseada na escravidão, que girava em torno da cana-de-açúcar produzida na região denominada de Recôncavo, terras que circundam a Baía de Todos os Santos. Ali também se plantava o fumo, que era exportado para a Europa e para a África. Na África o fumo era utilizado na compra de escravos.
No Recôncavo, os escravos eram empregados em todo tipo de atividade rural, não apenas no setor açucareiro e fumageiro. Eles também labutavam na criação de gado e no cultivo da mandioca. A farinha de mandioca já era naquela época um item fundamental da dieta de ricos e pobres, senhores e escravos. Como o fumo, a farinha estava também ligada ao tráfico, pois constituía um dos principais alimentos a bordo dos navios negreiros.
Da mesma forma, os escravos eram utilizados nas vilas e cidades, sobretudo na capital, onde se ocupavam no trabalho doméstico, nos diversos ofícios (pedreiro, sapateiro, ferreiro), nas atividades do mar (marinheiro, remador, canoeiro, pescador). Eles lavravam a terra em pequenas plantações existentes na periferia da cidade, trabalhavam em variados tipos de construção pública e privada, vendiam uma grande variedade de pequenas mercadorias, principalmente comida pronta, verduras, peixe, carne. E eram empregados no transporte de volumes grandes e pequenos, como caixas de açúcar, barris de cachaça, mercadorias importadas, água de gasto e potável, dejetos humanos, balaios de compras e até cartas eram levadas ao correio por escravos. Eles também transportavam pessoas nas cadeiras de arruar, talvez a mais típica atividade dos escravos nas ruas de Salvador.
As ocupações dos presos por suspeita de participação na revolta de 1835 refletem a variedade de atividades desempenhadas pelos escravos urbanos. Havia entre eles lavradores, remadores, domésticos, pedreiros, sapateiros, alfaiates, ferreiros, armeiros, barbeiros, vendedores ambulantes, carregadores de cadeira, entre outras atividades. A grande maioria dos rebeldes se empregava em ocupações tipicamente urbanas. Foram pouquíssimos os ocupados na lavoura, por exemplo. Um ou outro tinha vindo do Recôncavo para participar do levante em Salvador.
Na escravidão urbana os cativos gozavam de maior independência do que na escravidão rural, e isso facilitou muito a organização do movimento de 1835. Em geral, os escravos percorriam por toda a cidade trabalhando para seus próprios senhores ou, principalmente, contratados por terceiros para serviços eventuais. Muitos escravos sequer moravam na casa senhorial. Chamados negros ou negras de ganho, e também de ganhadores ou ganhadeiras, esses homens e mulheres escravizados contratavam com seus senhores entregar certa quantia diária ou semanal de dinheiro, e tudo que ultrapassasse esta quantia podiam embolsar. O escravo que trabalhasse muito e poupasse muito podia após cerca de nove longos anos comprar sua liberdade, e muitos assim o fizeram. Alguns chegavam se tornar prósperos homens de negócio, que era a ocupação mais comum dos que prosperavam. Muitos africanos, depois de libertos da escravidão, tornavam-se eles próprios senhores de escravos. Calcula-se em cerca de 7 por cento a proporção dos africanos libertos na população de Salvador na época da revolta dos malês. Eles representariam em torno de 25 por cento da população africana na cidade.
Africanos escravos e libertos com freqüência trabalhavam e viviam juntos, desempenhando as mesmas tarefas, morando nas mesmas casas. No trabalho de rua organizavam se em associações chamadas cantos de trabalho, nos quais se reuniam principalmente os da mesma etnia chefiados por um "capitão" encarregado de acertar os serviços desempenhados pelo grupo. Assim associados enfrentavam o trabalho diário e desenvolviam laços de amizade e solidariedade que constantemente se desdobravam em ações políticas. Esses grupos de trabalho foram essenciais na mobilização dos africanos para a revolta em 1835 e em outras ocasiões. Enquanto esperavam por serviço nas esquinas onde se reuniam, os africanos iam formulando e aperfeiçoando suas idéias de liberdade e de ataque à escravidão na Bahia.
Infelizmente não sabemos detalhes do que planejavam fazer os rebeldes depois de vitoriosos. Há indícios de que não tinham planos amigáveis para as pessoas nascidas no Brasil, fossem estas brancas, negras ou mestiças. Umas seriam mortas, outras escravizadas pelos vitoriosos malês. Isso refletia as tensões existentes no seio da população escrava entre aqueles nascidos na África e aqueles nascidos no Brasil. Que fique bem claro: os negros nascidos no Brasil, e por isso chamados crioulos, não participaram da revolta, que foi feita exclusivamente por africanos.
Por isso, se o levante tivesse sido um sucesso, a Bahia malê seria uma nação controlada pelos africanos, tendo à frente os muçulmanos. Talvez a Bahia se transformasse num país islâmico ortodoxo, talvez num país onde as outras religiões predominantes entre os africanos e crioulos (o candomblé e o catolicismo) fossem toleradas. De toda maneira a revolta não foi um levante sem direção, um simples ato de desespero, mas sim um movimento político, no sentido de que tomar o governo constituía um dos principais objetivos dos rebeldes.
Apesar de apoiados por africanos não-muçulmanos, que também entraram na luta, os malês foram os responsáveis por planejar e mobilizar os rebeldes. Suas reuniões — feitas nas casas de libertos, nas senzalas urbanas, nos cantos de trabalho — misturavam conspiração, rezas e aulas em que se exercitavam a recitação, a memorização e a escrita de passagens do Corão, o livro sagrado do islamismo. O próprio levante foi marcado para acontecer no final do mês sagrado do Ramadã, o mês do jejum dos muçulmanos. Os malês foram para as ruas guerrear usando um abadá branco, espécie de camisolão tipicamente muçulmano, além de também carregar em volta do pescoço e nos bolsos amuletos protetores, que eram cópias em papel de rezas e passagens do Corão dobradas e enfiadas em bolsinhas de couro ou pano. Esses amuletos eram confeccionados por mestres muçulmanos, muitos deles líderes da revolta, que teriam dado a seus seguidores suas bênçãos e a certeza da vitória.
Cientes de que constituíam minoria na comunidade africana da Bahia, composta de escravos e libertos de diferentes grupos étnicos e religiosos, os malês não hesitaram em convidar escravos não-muçulmanos para o levante. Neste sentido, a identidade e a solidariedade étnicas constituíram um outro fator de mobilização a entrar em jogo.
De fato identidade étnica e religiosa foi muito importante para deslanchar o movimento. A maioria dos muçulmanos que viviam na Bahia em 1835 era nagô. Apesar de na África, e mesmo no Brasil, outros grupos, como os haussás, serem mais islamizados do que os nagôs, coube a estes o predomínio no movimento de 1835. Os nagôs islamizados não só constituíram a maioria dos combatentes, como a maioria dos líderes. Mais de 80 por cento dos réus escravos em 1835 eram nagôs, sendo eles apenas 30 por cento dos africanos de Salvador; dos sete líderes identificados, pelo menos cinco eram nagôs. Eram nagôs os seguintes líderes: os escravos Ahuna, Pacifico Licutan, Sule ou Nicobé, Dassalu ou Damalu e Gustard. Também nagô era o liberto Manoel Calafate. Os outros eram o escravo tapa Luís Sanim e o liberto haussá Elesbão do Carmo ou Dandará, que negociava com fumo.
Vistos enquanto grupo étnico os nagôs eram na sua maioria não-muçulmanos, e sim devotos dos orixás, embora fizessem incursões no campo muçulmano. Por exemplo usavam os famosos amuletos malês, considerados de grande poder protetor, e provavelmente recorriam a adivinhos malês, entre outra práticas. Ou seja, naquela fronteira em que as duas religiões se encontrava, os nagôs como um todo, malês e filhos de orixá, também se encontravam. E se encontravam como entidade étnica, como pessoas que falavam a mesma língua, tinham histórias comuns, em muitos casos haviam obedecido aos mesmos reis africanos. Essas convergências facilitaram a mobilização em 1835 para além das colunas muçulmanas.
Os nagôs vinham de uma parte específica da África, qual seja a região sudeste da atual Nigéria e a parte leste da atual República do Benin. Eram de diversos reinos espalhados por esse território, como Oió, Queto, Egba, Yagba, Ijexá, Ijebu, Ifé entre outros. Esses reinos durante muito tempo viveram sob a égide do reino de Oió, embora numa espécie de federação imperial. Na época do levante de 1835 essa federação dominada por Oió estava em franca desintegração em função de lutas intestinas generalizadas. Os malês especificamente tiveram sua origem principalmente em Ilorin, que era uma dependência do reino de Oió que se rebelou sob a liderança de Afonjá. Este homem se aliou aos muçulmanos haussás, fulanis e iorubás contra o alafin, que era o título do rei de Oió. Essas guerras foram responsáveis pela transformação de milhares dos habitantes locais em prisioneiros, que eram vendidos como escravos aos traficantes do litoral, e daí exportados para a Bahia.
Embora a grande maioria dos interrogados em 1835 respondesse que era apenas "nagô", alguns fizeram questão de ser mais precisos, indicando também o local específico de onde vinham. O carregador de cadeira Joaquim de Mattos, por exemplo, respondeu ser de "nação Nagô Gexá", quer dizer de origem Ijexá, um grupo étnico do leste do território iorubá. Joaquim havia se alforriado há pelo menos sete anos e portanto deveria estar na Bahia há cerca de nove anos no mínimo.
A liberta Edum disse ser de "nação nagô-bá" e um outro africano interrogado disse ser ela apenas "Bá", significando ser oriunda de Egba ou Yagba. O liberto Lobão Machado foi bem claro: era de nação "Nagô-Ebá", ou seja de Egba. Francisco, cerca de 25 anos de idade, escravo doméstico e comprador, que vivia em Salvador há cerca de 6 anos, era Yaba, ou, segundo suas próprias palavras, "Nagô-Abá". E o escravo José se disse "nagô jabu", provavelmente natural de Ijebu. A expressão nagô remetia à África descoberta no Brasil, pois só aqui eles se tornariam conhecidos por aquela expressão, enquanto Ijebu, Egba, Yagba, Oyo, Ijexá (ou Ilesha) representavam a África deixada do lado de lá do Atlântico. O escravo nagô Antônio, doméstico e carregador de cadeira, resumiu bem a questão quando afirmou: "ainda que todos são Nagôs, cada um tem sua terra".
Ao deporem sobre o grau de envolvimento com o islamismo, muitos interrogados se reportaram a suas experiências africanas. Alguns disseram abertamente que haviam recebido instrução islâmica na África, possivelmente em escolas corânicas ou madrasas. O nagô Pedro, ao ser perguntado sobre um livro e vários manuscritos em árabe encontrados em seu poder, respondeu: "o livro continha rezas de sua terra e os papéis várias doutrinas cuja linguagem e sua ciência ele sabia antes de vir de sua terra". Pompeo da Silva, nagô forro, com cerca de 30 anos de idade, "perguntado se ele sabia ou entendia das letras arábicas que usavam os Nagôs, disse, que tendo aprendido em sua terra pequenino que agora quase nada se lembrava". Antônio, escravo Haussá, pescador, disse que sabia escrever em árabe, mas só escrevia "orações segundo o cisma de sua terra". Ou seja, não escrevia coisas subversivas, políticas, só orações. Acrescentou que "quando pequeno em sua terra andava na escola".
O escravo nagô Gaspar, preso com grande quantidade de escritos árabes, amuletos, um tessubá (o rosário malê) etc, disse ter sido ele autor dos escritos, e que aprendera o árabe em sua terra. Ele leu trechos do que havia escrito, embora alegasse não saber traduzir para o português.
Observamos em todas essas declarações as lembranças de uma educação muçulmana na África, às vezes lembranças de quando estes escravos eram ainda crianças. Isso acontecia mesmo no caso dos nagôs, que vinham de um lugar onde o islamismo era adotado por uma minoria, ao contrário do país haussá, onde a religião estava arraigada há tempos.
Outras tradições islâmicas também atravessaram o Atlântico, como o já mencionado uso do amuleto. O liberto Lobão Machado acima mencionado, quando preso, levava diversos amuletos protetores em volta do pescoço. Perguntado para que usava aquilo, disse ser para proteger contra o vento. Provavelmente referia-se ao jinn ou anjonu, espécie de espíritos malês. Outros interrogados responderam como ele que os amuletos eram para proteger do vento. Pela quantidade de amuletos apreendidos pela polícia em 1835, muita gente se protegia desta forma contra espíritos malignos. O escravo haussá Antônio acima mencionado usava a educação muçulmana recebida em sua terra para escrever amuletos, que vendia por bom preço — equivalente ao jornal de um escravo de aluguel — a africanos que também desejavam se proteger dessas forças espirituais que haviam acompanhado os africanos ao Novo Mundo.
Tais informações têm o valor de explicitar, através da fala dos interrogados, tradições aprendidas na África e mantidas na Bahia. Estes depoimentos mostram com muita nitidez uma projeção da história africana na história brasileira.
É preciso esclarecer que nem todos os africanos muçulmanos existentes na Bahia em 1835 participaram da revolta. As autoridades, porém, usaram a posse de papéis malês como prova de rebeldia e por isso muitos inocentes foram presos e condenados.
Os malês receberam diversos tipos de sentença. Foram elas: prisão simples, prisão com trabalho, açoite, morte e deportação para a África. Esta última pena foi atribuída a muitos libertos presos como suspeitos mas contra os quais nenhuma prova definitiva foi encontrada. Mesmo assim, apesar de absolvidos, foram expulsos do país. A pena de açoites variava de 300 até 1.200 chicotadas, que foram distribuídas ao longo de vários dias. O idoso Pacifico Licutan foi sentenciado a 1.200 chibatadas. Sabe-se de pelo menos um condenado que morreu em decorrência desta pena de tortura, o escravo nagô Narciso.
A pena de morte foi imposta, inicialmente, a 16 acusados, mas posteriormente deles conseguiram sua comutação. Quatro foram no final executados. Eram eles o liberto Jorge da Cruz Barbosa, cujo nome iorubá era Ajahi, carregador de cal; Pedro, nagô, carregador de cadeira, escravo de um negociante inglês; Gonçalo e Joaquim, ambos escravos nagôs. Todos quatro foram executados por um pelotão de fuzilamento no Campo da Pólvora, no dia 14 de maio de 1835. E assim se findava um dos episódios mais empolgantes da resistência escrava no Brasil.
BIBLIOGRAFIA
REIS. João José. Rebelião Escravo no Brasil. A História do Levante dos Malês. São Paulo, Cia das Letras, 2003 (Reedição ampliada).
* Esse texto faz parte de uma coletânea elaborada pela Secretaria Municipal de Educação e Cultura de Salvador para implementar a história e cultura afro-brasileira e africana no currículo das escolas da rede Municipal de Ensino.
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O legado de negros muçulmanos que se rebelaram na Bahia antes do fim da escravidão
André Bernardo, Do Rio de Janeiro para a BBC Brasil, 9 maio 2018
Salvador, 25 de janeiro de 1835. Foi num sobrado de dois andares, na Ladeira da Praça, que teve início o maior e mais importante levante urbano de africanos escravizados já registrado no Brasil. Era por volta de 1h da madrugada quando um grupo de 50 africanos, das mais diferentes etnias, ocupou as ruas da capital baiana. O levante entrou para a história como a Revolta dos Malês. É um episódio que evidencia a importância política que os africanos de religião muçulmana tiveram na história do Brasil - com um legado pouco conhecido que perdura até hoje
.A luta esquecida dos negros pelo fim da escravidão no Brasil
"Na Bahia de 1835, os negros que pertenciam a um dos grupos étnicos mais islamizados da África Ocidental eram conhecidos como malês", explica o historiador João José Reis, da Universidade Federal da Bahia (UFBA). "O termo malê deriva de imale, que significa muçulmano, na língua iorubá", decifra o autor do livro Rebelião Escrava no Brasil - A História do Levante dos Malês em 1835.
Do velho sobrado, os rebeldes partiram em várias direções. Um grupo avançou para a Praça do Palácio, onde ficava a cadeia da cidade. Lá, os revoltososos planejavam tomar as armas dos guardas e libertar Pacífico Licutan, o Bilal, líder malê que estava preso para pagar as dívidas de seu senhor. Os demais rebeldes enveredaram por ruas, becos e vielas, batendo nas portas e janelas das casas e convocando pessoas escravizadas e também libertos a se unirem a eles em combate. Cerca de 600 revoltosos, muçulmanos e não muçulmanos, responderam ao chamado e participaram do levante.
O plano de libertar Pacífico Licutan, porém, fracassou. Munidos de lanças, espadas e porretes, os amotinados se viram obrigados a recuar diante de policiais armados com pistolas e baionetas. Desnorteados, fugiram da cidade e pediram ajuda aos escravos do Recôncavo, o coração do escravismo baiano.
Não apenas ficaram sem o apoio como foram encurralados em Água de Meninos, local do Quartel da Cavalaria. Foi ali que se deu a batalha final. Antes do nascer do sol, 73 rebeldes já tinham tombado mortos e mais de 500 presos, explica a antropóloga Lídice Meyer Pinto Ribeiro, da Universidade Presbiteriana Mackenzie (SP), autora do artigo Negros Islâmicos no Brasil Escravocrata. Até os africanos que não participaram do levante de 1835 sofreram perseguição policial.
Um decreto assinado pelo chefe da Polícia, Gonçalves Martins, autorizava qualquer cidadão a dar voz de prisão a escravos, muçulmanos ou não, que estivessem reunidos em número de quatro ou mais. Reunir gente em casa, por exemplo, passou a ser terminantemente proibido.
Outra medida obrigava os senhores a "converter" seus escravos ao catolicismo. Se não o fizessem em seis meses, seriam multados. Por medo de retaliações, os muçulmanos passaram a renegar sua religião. Mais do que isso: quando não era praticada às escondidas, a religião sofria aculturação com práticas católicas. Tudo isso explica a ausência de descendentes de escravos seguidores do islã.
Muçulmanos: inimigos na África, aliados no Brasil
"A vitória vem de Alá!", dizia o fragmento em árabe encontrado dentro de um amuleto malê confiscado pela polícia. No entanto, a tão esperada vitória não chegou. Os corpos dos 73 rebeldes mortos foram jogados em valas comuns de um cemitério local. Os mais de 500 presos foram interrogados, julgados e punidos.
As penas variavam de açoites para os escravos a deportação para os libertos. Quatro deles receberam a pena máxima: enforcamento. As autoridades mandaram construir forcas novas no Campo da Pólvora, em Salvador. Mas se esqueceram de contratar um carrasco para fazer o serviço. Na falta de um, os condenados foram mesmo fuzilados, em praça pública, por um pelotão improvisado.
Ao longo da primeira metade do século 19, muitos dos africanos muçulmanos traficados para a Bahia - em sua maioria haussás, etnia que prevalece na região hoje equivalente ao norte da Nigéria - eram soldados capturados durante uma jihad, ou "guerra santa" em árabe.
"Eles se diferenciavam dos demais por serem alfabetizados em árabe e por terem conhecimentos de matemática", explica Ribeiro. Na África Ocidental, diversos reinos viviam em guerra no Califado de Sokoto, um Estado muçulmano fundado em 1809 pelo califa Usman dan Fodio e que ocupou um vasto território no norte da atual Nigéria. Inimigos em sua terra natal, os "prisioneiros de guerra" viraram aliados em solo baiano.
"Como eles pertenciam a diferentes etnias, o islã proporcionou a esses muçulmanos um sentimento de fraternidade. Tornou-se, portanto, um elemento civilizatório que transformou heterogeneidade étnica em homogeneidade religiosa", explica o antropólogo Juarez Caesar Malta Sobreira, da Universidade Federal Rural de Pernambuco (UFRPE).
Corão
A religião islâmica foi determinante até na escolha do dia 25 de janeiro para o início do levante. Para os católicos, a data é dedicada a Nossa Senhora da Guia e faz parte da festa do Senhor do Bonfim, uma das mais tradicionais da Bahia. Mas, para os muçulmanos, naquele ano, era dia de comemorar o Laylat al-Qadr, uma das festas islâmicas que precedem o fim do Ramadã, o mês sagrado para os muçulmanos.
Para se proteger do inimigo, os guerreiros islâmicos confeccionaram amuletos com trechos do Corão escritos em árabe, como "Ajude-nos contra aqueles que rejeitam a fé!" e "Resgatai-nos desta cidade cujo povo é opressor!", em pedacinhos de papel guardados em bolsas de couro costuradas à mão. Cada talismã, acreditavam, "protegia" de uma arma: os laya contra flechas e os maganin karfe contra facas.
Na Salvador de 1835, a Revolta dos Malês foi protagonizada por pessoas escravizadas que viviam em áreas urbanas, que não cortavam cana em engenhos, nem passavam a noite em senzalas. Muito pelo contrário. Desfrutavam de relativa liberdade, podiam até trabalhar fora e recebiam uma pequena quantia pelos seus serviços. Os "negros de ganho", como eram conhecidos, exerciam os mais variados ofícios: de barbeiro a artesão, de alfaiate a vendedor.
Com o que ganhavam, pagavam uma "cota" diária ao senhor. Com o que sobrava, arcavam com as despesas de comida, moradia e vestuário. "Alguns economizavam para comprar sua carta de alforria. Outros, depois de libertos, chegaram a acumular patrimônio maior que certos brancos", explica Ribeiro.
Para manter viva a crença no profeta Maomé, os malês se reuniam em lugares afastados e a portas fechadas para fazer orações, ler passagens do Corão e celebrar festas do calendário muçulmano. "Assim como o candomblé, o islã não era totalmente livre para ser praticado. Senhores de escravos e chefes de polícia tanto toleravam quanto reprimiam", observa Reis.
O artigo 276 do Código Penal de 1830, aliás, proibia "o culto de outra religião que não seja a do Estado". Mesmo assim, os alufás, nome dado aos dirigentes religiosos e que, em iorubá, significa sacerdote de Ifá, transmitiam seu conhecimento aos mais jovens. "Os adeptos do islã dedicavam as sextas-feiras, dia sagrado para os muçulmanos, à prece e à meditação. Nesse dia, usavam roupas brancas, costume islâmico que se generalizou na Bahia", observa Sobreira.
Legado malê: da religiosidade ao vocabulário e à culinária
No dia do levante de 1835, os malês saíram às ruas vestidos de abadá, espécie de camisolão folgado na cor branca. Nos autos de devassa, as autoridades policiais se referiam à bata islâmica como "vestimenta de guerra". Mas a indumentária malê não estaria completa sem o filá, espécie de gorro que teria dado origem ao turbante branco usado no candomblé e na umbanda.
A influência do povo malê na cultura popular brasileira, porém, vai além do turbante e do abadá. Segundo Reis, traços do islã podem ser notados na cultura, no vocabulário e até na culinária. Difundida no interior de Sergipe e Alagoas, a dança do parafuso ou "dança da assombração", por exemplo, seria de origem malê. Segundo a tradição, na calada da noite, os africanos se disfarçavam de fantamas e faziam a dança para espantar os capitães do mato.
No vocabulário, o historiador cita o exemplo de "mandinga": "Dicionarizado como feitiço, o termo vem da bolsa de mandinga, amuleto muçulmano que os africanos introduziram no Brasil". Na culinária baiana, outra tradição islâmica também cruzou o Atlântico: o arroz de haussá. Prato favorito do escritor Jorge Amado, é feito sem sal, óleo ou tempero e cozido com bastante água. Na hora das refeições, os adeptos do islã só consumiam alimentos preparados por mãos muçulmanas, não ingeriam carne de porco e praticavam jejum no Ramadã.
No aspecto religioso, o parentesco entre muçulmanos e candomblecistas também se faz presente. Na mitologia iorubá, Obatalá é o nome dado ao deus supremo, "aquele que fecunda", abaixo apenas de Olorum, o criador do universo. No sincretismo brasileiro, ganhou o nome de Oxalá ou Orixalá, orixá associado à figura de Jesus Cristo.
O historiador José Antônio Teófilo Cairus, da Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC), aponta outra hipótese para a origem etimológica do nome Oxalá: a expressão árabe Insha'Allah, que significa "se Deus quiser".
A antropóloga Lídice Ribeiro dá outras pistas da associação entre as duas religiões: o símbolo da meia-lua atrelado aos orixás, a substituição do colorido das vestes africanas pelo branco das roupas islâmicas e até a prática ritual de tirar os sapatos antes das reuniões. "Apesar das perseguições, o islã negro continuou presente no Brasil até os dias de hoje", diz.
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