Queimada (Burn) de Gillo Pontecorvo, 1969, sem sombra de dúvida é um clássico da cinematografia mundial. Assisti pela primeira vez em 1973, em Bauru, SP. Até hoje me encabula ter visto este filme, com viés abertamente marxista, numa ainda ditadura militar. Depois desta première vi e revi umas sete vezes.
A seguir uma análise que capturei do site Adorocinema
O filme Queimada realizado em 1969 está entre os (poucos) filmes em que o tempo age como sobre o vinho, melhorando cada vez mais. Assinado por um mestre inconteste da filmografia politicamente engajada, o italiano Gillo Pontecorvo e ambientado em uma ilha caribenha fictícia, que dá título ao filme, a obra recorre aos postulados mais fundamentais da análise histórica marxista para desvelar tramas e artimanhas da exploração que sustenta o modo de produção e a organização sócio-política genericamente classificados como Capitalismo, em especial nos termos da globalização contemporânea.
Marcando a passagem do colonialismo (dominação direta) para o imperialismo (dominação indireta), a narrativa traz Marlon Brando interpretando o aventureiro Willian Walker (andarilho não é só uma coincidência no perfil da personagem), enviado à ilha para fomentar rebeliões e derrubar o domínio português, estimulando o nacionalismo e a constituição como nação independente. Manipulador habilidoso, Walker instiga a rebelião aliciando líderes e organizando grupos guerrilheiros entre a população escrava que sustenta a monocultura canavieira da ilha, promovendo, também, a substituição da exploração escravocrata pelo liberalismo, incluindo a mão de obra assalariada “livre”. A comparação das relações entre marido, esposa e prostituta, simbolizando patrão, escravo e empregado é um momento marcante do filme, atestando a incomparável habilidade narrativa cinematográfica de Pontecorvo no tratamento crítico de temáticas políticas.
Os escravos lutam, ganham, mas não levam. Walker convence a liderança negra que a conquista da liberdade não significa capacidade para governar. A burguesia branca assume o poder e os negros voltam à condição subalterna, com a substituição da opressão colonialista lusitana pela exploração imperialista britânica. Parte da liderança negra retoma a luta, agora contra os novos opressores e Walker é enviado uma vez mais para Queimada, com a missão de caçar e exterminar o líder que ele mesmo criara. A luta leva o caos e a miséria à ilha e as imagens apresentadas na tela nos remetem a outras estampadas na mídia contemporânea colhidas em nações como o Haiti, cuja história praticamente reproduz o roteiro do filme. Seja como aula de história, seja como crítica política, seja, ainda, como obra de arte que desnuda a lastimável organização social que, até agora, conseguimos fazer, como seres humanos, Queimada faz parte daquela relação de filmes que leva o espectador a pensar criticamente a globalização, apesar de produzido muito antes do termo virar moda.
As argumentações de Walker: marido, esposa e prostituta - patrão, escravo e empregado
Senhores, deixe-me fazer uma pergunta. Minha metáfora poderá parecer um pouco impertinente, mas acredito que é exata.
O que preferem ou devo dizer, o que acham mais conveniente? Uma esposa ou uma dessas mulatas?
Não me interpretem mal. Falo estritamente em termos econômicos.
Qual é o custo do produto? O que o produto propicia? O produto, no caso, sendo o amor. Amor puramente físico, já que, obviamente, sentimentos não têm
um papel econômico. Praticamente.
Uma esposa precisa de um lar com comida, roupas, cuidados médicos, etc. É necessário mantê-la a vida toda mesmo depois que envelhecer e se tornar improdutiva.
E se tiverem o azar de viverem mais do que ela, terão de pagar o enterro. Não, não. É verdade. Senhores, sei que parece divertido, mas são os fatos, não são?
Por outro lado, com uma prostituta o assunto é diferente, não é?
Não há a necessidade de abrigá-la ou alimentá-la e certamente nem de vesti-la ou enterrá-la. Graças a Deus!
Ela é sua só quando precisam. Pagam-na somente por esse serviço e a pagam por hora. O que, senhores, é mais importante e mais conveniente?
Um escravo ou um trabalhador assalariado?
O que acham mais conveniente? O domínio estrangeiro, com suas leis, vetos, impostos, monopólios comerciais, ou a independência?
Com seu próprio governo,leis, administração e a liberdade de comerciar com quem quiserem sob termos ditados somente pelos preços do mercado internacional.
...
Mas é o exemplo da prostituta que ainda não me convenceu, Sr. Walker. O que acontecerá quando o negro não for mais um escravo? E, em vez de trabalhador, quiser ser o patrão?
É exatamente o que acontecerá se continuarmos a discutir o caso. Há quatro meses, José Dolores estava em Sierra Madre com uma dúzia de homens. Quando chegou à Sierra Trinidad havia 400 ou 500. Agora, há milhares. Espalham-se pelas planícies. Em minha opinião, se não tomarem uma atitude imediata se não se envolverem nessa revolta serão aniquilados. Em vez de se tornarem trabalhadores,
seus ex-escravos não se tornarão seus patrões, Sr. Prada, e sim seus carrascos.
Martino, um negro índio
Agora, José Dolores diz que, se o que temos
em nosso país for civilização...civilização de brancos...então é melhor sermos selvagens, pois...é melhor saber para onde ir
sem saber como...do que saber como ir
sem saber para onde.
Daí, Dolores diz...que se um homem trabalha para outro,
mesmo se for chamado trabalhador...ele continua sendo escravo.
E será sempre a mesma coisa...enquanto existirem
os donos dos canaviais... e os donos das machetes que cortam a cana para os donos.
- E daí?
- Daí, José Dolores diz...que devemos cortar cabeças,
em vez de cana.
Walker e a criação do herói
Lá está José Dolores.
É uma história exemplar.
No começo, ele não era nada. Um carregador de malas e água.
Mas a Inglaterra o tornou um líder revolucionário e quando não mais servia a ela, foi colocado de lado.
Quando se rebelou de novo, mais ou menos em nome dos mesmos ideais que a Inglaterra o ensinou, ela decide eliminá-lo.
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