quarta-feira, 2 de junho de 2021

REVOLUÇÃO HAITIANA

Revolução Haitiana: o medo negro assombra a América (1)

Leandro Goya Fontella (2) e Elisabeth Weber Medeiros (3)

Disc. Scientia. Série: Ciências Humanas, Santa Maria, v. 8, n. 1, p. 59-70, 2007

RESUMO

 A importância da Revolução Haitiana transcende os limites territoriais em que o Estado haitiano se estabeleceu. A partir dela, o medo negro espalhou-se por toda a América Latina e influenciou todo o processo de independência das principais colônias latino-americanas. O objetivo, neste artigo, foi sintetizar as principais ideias de alguns autores que em seus estudos abordaram o processo histórico de formação do Estado Haitiano. No estudo realizado, o foco da atenção foi o período de 1791 a 1804, que compreende os principais acontecimentos da Revolução Haitiana, embora contextualize, ainda que genericamente, a forma com que ocorreram os principais contatos entre europeus e nativos da ilha de Hispaniola e, também, como se procedeu a massiva importação de negros africanos para o trabalho escravo durante a colonização francesa.

INTRODUÇÃO 

Em seis de dezembro de 1492, quase dois meses após seu desembarque no lado oriental da ilha que veio a ser batizada como Hispaniola, Cristóvão Colombo chegou ao seu lado ocidental, no território que atualmente conhecemos como Haiti. Ao longo destes cinco séculos, o processo histórico que desencadeou essa nação caribenha foi bastante peculiar em relação à América Latina. O Haiti é um estado composto, em sua absoluta maioria, de afrodescendentes. Sua história recente, ou seja, pós-independência em 1804, transformou a antes mais rica colônia da América Latina, no mais pobre país ocidental, cujo respeito mínimo às instituições democráticas, ao meio-ambiente e aos direitos humanos ainda são uma distante utopia. A grave crise social, econômica e política, pela qual passa o Haiti, tem raízes profundas em seu processo histórico, que por sua vez, tem como divisor de águas a Revolução Haitiana. 

Dentre as diversas razões que me motivaram a estudar a Revolução Haitiana destacam-se: a dificuldade de encontrar material de síntese histórica sobre o tema - na escassa literatura que faz referência ao episódio, o assunto é tratado de forma bastante limitada e superficial; a incisiva participação da população dos estratos subalternos, que encamparam a luta por liberdade e igualdade; e a enorme repercussão que teve a Revolução Haitiana na Europa, principalmente no processo de independência da América Latina, sendo a primeira independência de uma colônia latino-americana e, sobretudo, tendo culminado com radicais conquistas e transformações. 

O objetivo, neste artigo, foi, portanto, sintetizar as principais ideias de alguns autores que, em seus estudos, referiram-se ao processo histórico de formação do Estado Haitiano. Dessa maneira, pretende-se, colaborar com aqueles que se interessam pelo tema. Desenvolveu-se um estudo com atenção para o período de 1791 a 1804, o qual compreende os principais acontecimentos da Revolução Haitiana. Contudo, no trabalho, contextualiza-se, ainda que genericamente, a forma com que ocorreram os principais contatos entre europeus e nativos da ilha de Hispaniola e também como se procedeu a massiva importação de negros africanos para o trabalho escravo, durante a colonização francesa.

O VELHO E O NOVO MUNDO SE ENCONTRAM NA DESPEDIDA DOS ÍNDIOS TAINOS

Quando da chegada dos europeus, no fim do século XV, na ilha de Hispaniola, habitava “um grupo de índios aruaques chamados tainos que viviam da agricultura, eram organizados em cinco chefias e montavam acerca de meio milhão de indivíduos” (DIAMOND, 2006, p. 402). Estima-se que já nas primeiras décadas de colonização da ilha, o número de aborígines tenha sido resumido a menos de três mil (DIAMOND, 2006). 

Esse impressionante genocídio do povo taino ocorreu de maneira semelhante ao que aconteceria com o restante das populações ameríndias durante a conquista e colonização do continente americano. Nesse processo, ressalta-se o papel das epidemias de doenças eurasianas como, por exemplo, a varíola, que dizimou centenas de milhares de indígenas, os quais não possuíam defesas orgânicas contras moléstias exóticas. Além disso, na busca de riquezas minerais, especialmente metais preciosos, os espanhóis submeteram os autóctones da Hispaniola a maus tratos e desumanas condições de trabalho – em muitos casos, os indígenas foram forçados ao trabalho escravo. Por fim, a imposição da cultura católica europeia desarticulou o modo de vida dos raros sobreviventes que acabaram sendo assimilados pela sociedade colonial. 

Assim, ocorreram os primeiros contatos entre o Velho e o Novo Mundo. Entretanto, essa realidade na ilha de Hispaniola seria radicalmente transformada no decorrer dos séculos XVI, XVII e XVIII devido ao desinteresse espanhol e à cobiça de outros povos europeus.

MÃOS NEGRAS A TRABALHAR: NOS CANAVIAIS, CATIVOS SEMEIAM A LIBERDADE 

A hecatombe dos índios tainos gerou um vácuo na embrionária colonização na ilha de Hispaniola: não havia mão de obra para os empreendimentos espanhóis. Assim, não só estavam comprometidas as atividades de busca e extração de minérios, como também a incipiente empresa de cana-de-açúcar que, por volta de 1520, começou a ser implantada na ilha. “Horrorizado pelas dramáticas circunstâncias, o padre dominicano Bartolomeu de las Casas sugere que se traga da África a mão de obra necessária à exploração dos novos territórios”(SEITENFUS, 1994, p. 27). 

Contudo, a massiva importação de escravos para Hispaniola não foi feita por espanhóis que, durante o século XVI, desviaram suas atenções para a conquista, exploração e colonização do continente, focando suas ações nos embates contra as altas culturas pré-colombianas – a Confederação Asteca na Mesoamérica e o Império Inca nos Andes. Nesse contexto, ao longo do século XVII, aproveitando-se do desinteresse espanhol por suas possessões no Caribe, comerciantes, aventureiros e piratas franceses ocuparam o lado oeste da ilha e denominaram-na colônia de Saint-Domingue. “A França, agora muito mais rica e politicamente mais forte que a Espanha, investiu pesadamente em importação de escravos e desenvolvimento de plantation na parte ocidental da ilha [...]” (DIAMOND, 2006, p. 403, grifo do autor), portanto, o “[...] extraordinário e desumano enxerto populacional, provocado pelo tráfico de negros, que afluíram massivamente [...]” (SEITENFUS, 1994, p. 27) ao território de Saint-Domingue, foi de responsabilidade dos colonos franceses, que segundo Wasserman e Guazzelli (1996, p. 93) deram à

[...] parte ocidental da ilha de La Española [...] uma orientação diferente daquela mantida pelos espanhóis, que na suas possessões criavam gado para abastecimento de outras colônias. Saint-Domingue foi destinada à produção dos valiosos artigos tropicais, como café, algodão, índigo e especialmente o açúcar. 

Destarte, houve duas realidades distintas, durante o período colonial, na ilha de Hispaniola. De um lado, a parte oriental, controlada por Espanha, possuía baixos índices demográficos, reflexo de uma economia baseada na pecuária bovina e venda de couro que demandava exíguo número de escravos. Por outro lado, regida por França, a parte ocidental da ilha tinha população muito maior que no território espanhol e, devido à atividade açucareira, formou-se uma sociedade em que, segundo Diamond (2006), a população cativa representava cerca de 85% do total de habitantes, atingindo, em 1785, a impressionante cifra de setecentas mil almas. 

Foi, portanto, por meio da imensa importação de escravos africanos – que alcançou uma média anual de trinta mil almas, acompanhado do crescimento econômico das plantations açucareiras, beneficiadas pela independência das colônias inglesas na América do Norte (Hálperin apud Wasserman; Guazzeli, 1996) – durante a colonização francesa em Saint-Domingue, que foram lançadas as sementes do “único Estado independente constituído por africanos fora da África [...]” (SEITENFUS, 1994, p. 33). 

Regadas com o suor dos escravos negros africanos, as sementes germinaram ao sol junto aos canaviais. O processo de independência faria nascer o Haiti. 

A LIBERDADE OU A MORTE: NEGROS E MULATOS, NASCE A ÁFRICA AMERICANA 

Ainda nos primórdios da colonização francesa no oeste da Hispaniola, que teve início por volta de 1629, a França, aproveitando-se da quase que completa falta de resistência espanhola, resolveu reclamar a posse definitiva de terça parte do território da ilha. Por meio do tratado de Ryswick, em 1647, o atual território do Haiti – então chamado de Saint-Domingue – foi reconhecido oficialmente como uma colônia de França (SEITENFUS, 1994). 

No decorrer do século XVII e XVIII, “a colônia francesa de SaintDomingue, [...], tornou-se a colônia europeia mais rica do Novo Mundo e contribuía com um quarto da riqueza da França” (DIAMOND, 2006, p.403), assim, passou a ser “conhecida como a Pérola das Antilhas” (SEITENFUS, 1994, p. 28, grifo do autor). 

Como constatado na seção anterior, essa pujança econômica de SaintDomingue esteve assentada na plantation açucareira escravista voltada para o mercado externo. Além disso, na segunda metade do século XVIII, com a independência das Treze Colônias inglesas na América do Norte, estreitaram-se as relações comerciais entre essas duas partes, beneficiando ainda mais a economia da colônia francesa que, por sua vez, aumentou a demanda por escravos africanos para suprir as plantations. 

Dessa forma, pode-se identificar dois grandes pilares de sustentação da economia colonial de Saint-Domingue: a plantation açucareira e o tráfico de escravos. 

Nota-se, portanto, que, por meio das demandas econômicas, conformou-se essa sociedade colonial. Não é difícil vislumbrar que a estratificação social apresentava no topo da pirâmide grandes plantadores e comerciantes de grosso trato - em destaque os comerciantes de escravos - e, na base, uma vasta população de escravos. Entretanto, a composição social dessa sociedade deve receber singular atenção diante de sua amplitude e suas complexidades, já que os múltiplos antagonismos entre os diversos grupos e estratos sociais, em um contexto histórico de crise metropolitana, suscitaram o processo de independência (WASSERMAN; GUAZZELLI, 1996). Genericamente, de acordo com Wasserman e Guazzelli (1996), a sociedade de Saint-Domingue está estratificada da seguinte forma: 

grands blancs: formavam uma reduzidíssima parcela da sociedade colonial, eram grandes plantadores e senhores de escravos, no entanto, sua autonomia e poder foram limitados pelos grandes comerciantes dos principais portos franceses que dominavam o comércio de escravos.
petit blancs: eram uma pequena parte da população branca que atingia em torno de quarenta mil indivíduos. Em geral, exerciam o artesanato e o pequeno comércio.
affranchis: esta parte da população era composta de mulatos libertos e seu montante girava em torno de trinta mil pessoas. Buscavam ascensão na rígida hierarquia social e alguns ocuparam cargos na administração e/ou, até mesmo, chegaram a possuir terras e escravos.
escravos: a grande massa de escravos compreendia no período do processo de independência mais de 80% população total de Saint-Domingue. 

Foram esses dois últimos estratos da sociedade colonial que promoveram um conturbado e longo processo de independência, o qual ocorreu concomitantemente ao período de vicissitudes metropolitanas mergulhada na Revolução Francesa (4) segundo Seitenfus (1994, p. 33) “a emancipação haitiana compreendeu não somente a luta contra a metrópole, mas também a luta contra os senhores”. 

Enquanto na França, no início da década de 1790, os revoltosos convocavam a Assembleia dos Estados Gerais (AEG), em Saint-Domingue os affranchis manifestavam as primeiras iniciativas de ruptura. Enviaram para a AEG representantes que buscavam nos liberais apoio para suas reivindicações de igualdade perante os brancos. Todavia, os liberais, temerosos do risco de desorganização econômica da colônia francesa mais rica, frustraram as expectativas dos affranchis. Desse modo, em 1790, os líderes affranchis, Ogé e Chavannes organizaram, com o apoio da Inglaterra, uma sedição armada que acabou fracassando. Como pena por insurreição e também como instrumento pedagógico, a França decidiu pela execução dos líderes sediciosos. Por outro lado, os grands blancs também mandaram representantes para a AEG na tentativa de cooptar o apoio dos grupos mais moderados e reclamar por maior autonomia. Em síntese, as tensões internas em Saint-Domingue acirravam-se no embate entre grands blancs e affranchis, estes requerendo reconhecimento de liberdade e igualdade, enquanto aqueles lutavam por autonomia. No entanto, vale ressaltar que, nesse momento inicial do processo de independência, nem mesmo os affranchis engajavam-se em um projeto de abolição da escravidão (WASSERMAN; GUAZZELLI, 1996). 

Conquanto, ao contrário do que a elite colonial e metropolitana imaginava, os escravos não estavam alheios aos sucessos que ocorriam na colônia. Em agosto de 1791, na região norte, a mais rica da colônia, inicia e generaliza-se a rebelião dos cativos. Embora tenha despertado grande surpresa tanto nos grands blancs quanto nos affranchis, essa ação revoltosa não pode ser entendida como um fenômeno episódico, isto porque “desde 1722 existiam movimentos esporádicos e localizados de revolta entre os escravos, cuja importância era despercebida pelos franceses, preocupados com a efervescência que acometia a metrópole” (SEITENFUS, 1994 p. 28). 

Ao serem surpreendidos pela revolta escrava, affranchis e grands blancs requisitaram a intervenção de França, não obstante, a mediação francesa, além de ter sido infrutífera na tentativa de conciliar os interesses dos grupos rivais, agravou ainda mais a situação. A partir desse momento, o conflito, até então interno, assumiu dimensões externas, transplantando para o território de Saint-Domingue e de Hispaniola rivalidades existentes entre as potências europeias. França, Espanha e Inglaterra envolveram-se nesse processo revolucionário. De acordo com Wassermam e Guazzelli (1996, p. 94-95),


[...] tentando recuperar a parte da ilha perdida para os franceses os espanhóis de Santo Domingo apoiaram os escravos. Em consequência, a França reconheceu os direitos de igualdade reclamados pelos affranchis, o que levou os grands blancs a solicitar auxílio dos britânicos contra os negros e mulatos rebelados. (grifos do autor)

A França tentava conter a rebelião escrava, apoiada pelos espanhóis de Santo Domingo praticamente, em duas frentes de batalha e sob o risco de perder sua colônia mais rica, a França, em setembro de 1792, cinco meses após reconhecer os direitos de igualdade dos affranchis, envia um efetivo de seis mil homens comandados por Santhonax. 

As conturbadas situações coloniais e metropolitanas, agravadas pela interferência de Espanha e Inglaterra, tornaram insustentáveis as condições de resistência militar francesa. Destarte, em abril de 1793, Santhonax aboliu a escravidão em Saint-Domingue, procurando atrair para os esforços militares francos legiões de escravos que antes lutavam com apoio espanhol.  

Dentre as legiões que incorporaram os esforços militares estavam, em maio de 1794, “quatro mil combatentes escravos, comandados pelo principal chefe rebelde, Toussaint-Louverture” (WASSERMAN; GUAZZELLI, 1996, p. 95), que até então haviam “sido o principal adversário dos franceses, lutando sob o pavilhão espanhol” (SEITENFUS, 1994, p. 29). Após sucessivas vitórias de Louverture e seus combatentes, “afirmou-se a primazia francesa na colônia” (WASSERMAN; GUAZZELLI, 1996, p. 95). Em julho de 1795, por meio do tratado de Basiléia, “a Espanha [...] cedeu a parte oriental da ilha para a França, de modo que Hispaniola foi brevemente unificada sob bandeira francesa” (DIAMOND, 2006, p. 403). Por conseguinte, em agosto de 1798, após ter causado mais de vinte mil baixas militares aos ingleses, “quando pela primeira vez na história um exército europeu [foi] derrotado por um comandante negro” (SEITENFUS, 1994, p. 30), os britânicos retiram-se de Saint-Domingue, arrefecendo a belicosidade dos grands blancs. 

Os escravos haviam atingido seu principal objetivo, a liberdade. Toussaint-Louverture tornou-se governador-geral e comandante de armas em Saint-Domingue. Com o objetivo de reorganizar as atividades produtivas coloniais, muito abaladas por quase uma década de conflitos, e amenizar os distúrbios sociais, Toussaint procurou, ao mesmo tempo, possibilitar o retorno dos ex-escravos às plantations na condição de assalariados, restaurando a condição empresarial dos grandes lavoureiros. Contudo, sua decisão mais polêmica ocorreu em abril de 1799, quando “assina um tratado com representantes dos Estados Unidos, tendo por escopo a recuperação da economia local. Sendo um ato de política externa, praticado por uma colônia, causa perplexidade e apreensão na metrópole” (SEITENFUS, 1994, p. 30). Além disso, em 1801,

Louverture ocupa militarmente a cidade de São Domingos [...] e transforma-se no líder absoluto de toda a banda espanhola de ilha [...] redige uma constituição e atribuí-se o título de governador e general vitalício. Primeira carta constitucional da América Latina dispõe em seu artigo terceiro: ‘A escravatura está para sempre abolida. Não podem existir escravos sobre este território’ (SEITENFUS, 1994, p. 30)

Em contrapartida por seus atos, Toussaint-Louverture passa a ser tratado pela França como adversário. Não obstante, a ineficácia das políticas de recuperação econômica, que desencadeiam forte oposição interna de brancos e mulatos, e a nova realidade da França napoleônica (5) , que havia resolvido muito de seus litígios externos, agravam a situação de Louverture. Em maio de 1802, cedendo à pressão do partido colonial e como estratégia de reconstruir seu império franco no Novo Mundo, a França promulga lei restabelecendo a escravidão em todos os seus domínios, no entanto, em Saint-Domingue, o processo abolicionista era irreversível (SEITENFUS, 1994). 

Nesse mesmo ano, soldados franceses tomam a parte espanhola da ilha, aprisionam Toussaint-Louverture e o deportam para a metrópole. Porém, nem mesmo com sua queda, a França conseguiu restaurar a escravatura na colônia. Como novo líder rebelde ascende Jacques Dessalines, ex-escravo e homem de confiança de Louverture. “Numa prolongada guerra que custou à França a perda de mais de cinquenta mil soldados, incluindo o próprio comandante Leclerc. Seu sucessor, Rochambeau, capitulou frente à Dessalines [...]” (WASSERMAN; GUAZZELLI, 1996, p. 96). 

Em 29 de novembro de 1803, consuma-se a independência que vem a ser oficialmente proclamada em 1º de janeiro de 1804. Assim, Saint-Domingue passou a chamar-se Haiti, nome o qual os índios tainos davam à sua ilha antes da conquista, que significa país das montanhas (SEITENFUS, 1994). 

Após mais de dez anos de intensos e violentos conflitos, surgia o Haiti, o primeiro país independente da América Latina, segundo Seitenfus, “uma república negra nas Américas” (1994, p. 33). A independência do Haiti propiciou a emergência de um Estado com a absoluta preponderância de sua população negra. Isso proporcionou, ao longo dos últimos dois séculos, um processo histórico peculiar na América. Em outras palavras, em 1º de janeiro de 1804, nascia a África Americana. 

No entanto, o temor do retorno à escravidão – que ainda vigorava na parte espanhola da ilha de Hispaniola – pairava nos sentimentos dos cidadãos da República do Haiti. Esse medo fez com que um último e violento episódio se desenrolasse poucos meses após a independência: era a definitiva afirmação da supremacia da liberdade e da população negra e mulata.

BATISMO DE SANGUE: O MEDO NEGRO ASSOLA A AMÉRICA

A Revolução Haitiana obteve resultados que a imensa maioria de seus contemporâneos nem sequer imaginaria que pudessem ser conquistados. A ex-colônia francesa havia abolido a escravidão, declarado a independência e adotado o sistema republicano (6). Contudo, mesmo com todas essas conquistas, a população negra e mulata haitiana não se sentia completamente segura de sua nova condição de liberdade. A instabilidade socioeconômica, a fragilidade do comando estatal, nas mãos de Dessalines, a extrema proximidade geográfica com territórios que mantinham o sistema escravista e a constante ameaça espanhola, que persistia na parte oriental da ilha, ajudavam a fomentar o clima de preocupação entre os negros e mulatos haitianos. 

Quando a Espanha, tutora da colônia francesa estabelecida a leste de Hispaniola, restabelece a escravidão, a apreensão aumenta ainda mais e, conforme Seitenfus (1994, p. 33-34), “temendo uma ofensiva do regime vizinho, o governo do Haiti preventivamente massacra [...] todos os franceses, inclusive mulheres e crianças, que se encontram naquele território [...]”. 

Além disso, antes de sua morte, em uma emboscada em 1806, Dessalines havia confiscado todas as propriedades e direitos da população branca, sendo que desse montante, o Estado apossou-se de dois terços (WASSERMAN; GUAZELLI, 1996). Por conseguinte, as plantações e toda a sua infraestrutura foram destruídas e suas áreas divididas em pequenas fazendas familiares, para que dessa maneira, a reconstrução do sistema escravista, baseado em plantations, fosse inviabilizado (DIAMOND, 2006). Todavia, de acordo com o mesmo Diamond, “embora fosse o que os escravos desejavam como indivíduos, a longo prazo esse fato mostrou-se desastroso para a produtividade agrícola, para as exportações e para a economia do Haiti [...]” (2006, p. 403-404). 

Com a Revolução Haitiana, iniciou-se do processo de independência na América Latina (7). Segundo Wasserman e Guazzelli (1996, p. 96),

para o restante do continente restava um preocupante aviso: na primeira colônia independente da América Latina as consequências haviam sido a acentuada decadência econômica, supressão dos brancos proprietários de terras e um Estado organizado por escravos insurretos ou mulatos libertos.

Pela primeira vez a Europa e a América presenciavam um processo revolucionário em que as classes subalternas coloniais subjugavam seus opressores – coloniais e metropolitanos. O Haiti nasceu da fantástica resistência e luta dos escravos e mulatos contra todas as classes que os dominavam. O confisco e a depredação da infraestrutura da plantation escravista e o massacre a todos os brancos que restavam na parte ocidental da ilha foi o batismo de sangue desse novo Estado que acabara de emergir.

Depois da Revolução Haitiana, a América Latina não seria mais a mesma, por todos os seus recantos se disseminaria o medo negro

CONCLUSÃO

A importância da Revolução Haitiana transcende os limites territoriais que o Estado haitiano estabeleceu. Nota-se que, durante esse verdadeiro processo revolucionário, – que suprimiu as elites coloniais e metropolitanas, tornando o Haiti a primeira colônia latino-americana a romper os laços coloniais que o amarravam a Europa e desarticulou qualquer tipo de possibilidade de retorno ao status quo vigente no período colonial – misturaram-se aos já complexos e explícitos interesses dos estratos sociais coloniais – que genericamente, envolviam desejos revolucionários, reformadores e reacionários – as rivalidades, quizilas e projetos das potências europeias.

Além disso, a Revolução Haitiana estarreceu a Europa e a América, não só por seu triunfo, mas também devido à violência com que a pequena parcela da população branca, que restara no Haiti, fora massacrada pelos ex-escravos e mulatos vitoriosos. A partir dela, o medo negro espalhou-se por toda a América Latina e influenciou todo o processo de independência das principais colônias latino-americanas. Nesse contexto, as elites coloniais, assombradas pelo exemplo que vinha das Antilhas, tomaram para si a responsabilidade de conduzir as colônias à independência, fazendo com que esse processo excluísse as camadas sociais subalternas e ocorresse dentro de uma margem de segurança que não viesse a oferecer riscos de profundas transformações na rígida hierarquia social vigente.

Em última análise, o processo de independência das principais colônias da América Latina caracterizou-se pelo conservadorismo das elites coloniais, e isso se deve ao medo de que esses grupos sociais tinham de que a experiência haitiana viesse a repetir-se em seus territórios. Não obstante, o processo histórico do Haiti, carregado de suas especificidades, veio a evidenciar que a ausência de um sistema econômico integrado, que deixou o país alheio ao mercado mundial, e a pouca maturidade política e democrática das instituições de Estado foram dois elementos fundamentais, que tornaram a crise política, econômica e social uma endemia da civilização haitiana.

Em síntese, por entender que a Revolução Haitiana foi um processo histórico de extrema importância para a formação dos Estados Nacionais na América Latina, percebe-se a necessidade de que seja disponibilizada mais atenção por parte da historiografia latino-americana ao estudo deste importante episódio e suas implicações, não só para se entender a atual situação haitiana, mas também para se compreender mais sobre nossa própria história.


REFERÊNCIAS

Barbosa, Alexandre de F. A independência dos países da América Latina. São Paulo: Saraiva, 1999.

DIAMOND, Jared. Colapso: como as sociedades escolhem o fracasso ou o sucesso. São Paulo: Record, 2006.

Hobsbawm, Eric J. A Revolução Francesa. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1996.

McGuire, Leslie. Napoleão. São Paulo: Nova Cultural, 1987.

SEITENFUS, Ricardo. Haiti: a soberania dos ditadores. Porto Alegre: Solivros, 1994.

WASSERMAN, Cláudia; GUAZZELLI, César A. B. História da América Latina – do Descobrimento a 1900. Porto Alegre: UFRGS, 1996.

NOTAS

(1) Trabalho de Iniciação Científica - UNIFRA.
(2) Acadêmico do Curso de História - UNIFRA.
(3) Orientadora - UNIFRA.

(4) Sobre a Revolução Francesa ver HOBSBAWM, Eric J. A Revolução Francesa. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1996.

(5) Sobre Napoleão Bonaparte ver MCGUIRE, Leslie. Napoleão. São Paulo: Nova Cultural, 1987.

(6) Apesar de ter adotado um sistema republicano desde a sua independência, a primeira experiência de democracia haitiana ocorreu apenas em fevereiro de 1991 com a posse presidencial de Jean-Bertrand Aristide. O processo histórico haitiano pós-independência se caracteriza pela constante instabilidade política. Sobre a história do Haiti pós-conquista europeia, sua constante instabilidade política pós-independência e sua situação atual ver SEITENFUS, Ricardo. Haiti: a soberania dos ditadores. Porto Alegre: Solivros, 1994.

(7) Sobre o processo de independência na América Latina ver BARBOSA, Alexandre de F. A independência dos países da América Latina. São Paulo: Saraiva, 1999.

 

Outras referências sobre o tema

Além do medo: Os ecos da Revolução Haitiana na época da Independência do Brasil foram diversificados: havia repúdio e ocultação, mas também recepções favoráveis.
Marco Morel

A Revolução Haitiana e sua independência

Os reflexos da Revolução Haitiana no Brasil

A Revolução Haitiana (1791-1804) como momento privilegiado  na construção de uma identidade “negra”, Berno Logis, Anpuh

A REVOLUÇÃO DO HAITI: UM ESTUDO DE CASO (1791-1804), Ana Loryn Soares  Elton Batista da Silva


AS VEIAS ABERTAS DO HAITI

 A Batalha Contra o Cólera

Os filhos abandonados da ONU no Haiti

 

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