Massacre de Tulsa: Como uma mentira de jornal foi estopim para matança de negros nos EUA
O Globo, 01/06/2021
Os ponteiros marcavam algo em torno de 16h de uma segunda-feira quando o engraxate Dick Rowland, de 19 anos, foi ao Edifício Drexel para usar o único banheiro permitido para negros nos arredores de onde ele trabalhava, no centro da cidade americana de Tulsa. Quando ele entrou no elevador, a assessorista Sarah Page, uma adolescente branca de 17 anos, não se sabe por que motivo exatamente, deu um grito e atraiu a atenção de outros funcionários no prédio. Em uma questão de segundos, Rowland se tornara suspeito de tentar molestar a menina.
Homem em meio a ruínas de Greenwood após Massacre de Tulsa, em 1921 | Foto de arquivo/Universidade de Tulsa
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Ocorrida no dia 30 de maio de 1921, a cena deu início a uma série de acontecimentos que, menos de 48 horas depois, desembocaram no tenebroso episódio conhecido como o Massacre de Tulsa. Cerca de 300 pessoas negras foram mortas por turbas de homens brancos armados que invadiram o distrito de Greenwood, em Tulsa, Oklahoma, entre a noite de 31 de maio e a madrugada de 1° de junho, há cem anos. Capítulo emblemático da história dos Estados Unidos, a chacina vem sendo relembrada em séries de TV como "Watchmen" e "Lovecraft country", que mostram como aquela mortandade está, até hoje, enraizada na sociedade americana.
Mesmo após cem anos da confusão no Edifício Drexel, ninguém sabe precisar o que houve. Historiadores dizem que Rowland pode ter tropeçado e, ao tentar evitar uma queda, segurou-se no braço de Sarah, que berrou assustada. A polícia foi chamada, mas a suposta vítima sequer prestou queixa contra o rapaz. Segundo relatos, eles até se conheciam, já que o engraxate trabalhava na área e, provavelmente, usava o banheiro do prédio com frequência. Até então, tudo parecia um mal-entendido típico de uma sociedade racista que culpa o jovem negro em situações como aquela.
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Na manhã seguinte, dois policiais detiveram Rowland na Avenida Greenwood e levaram-no à delegacia. Na tarde do mesmo dia, o diário "Tulsa Tribune", de propriedade de um homem branco, publicou um texto na primeira página sob o título "Negro preso por atacar garota em elevador". O jornal relatou o episódio da véspera de forma mentirosa (e racista), afirmando que o engraxate molestara a menina, "arranhando" seu rosto e "rasgando" suas roupas. A matéria descrevia o engraxate como um criminoso, e Sarah como uma órfã que trabalhava para pagar os estudos. Testemunhos dão conta de que o "Tulsa Tribune" também publicou um editorial sob o título "Lichamento de negro hoje", mas não há registro físico deste artigo.
"Assim que o 'Tulsa Tribune' chegou às ruas, em cerca de meia hora, havia conversas sobre linchamento nas ruas de Tulsa", disse em entrevista à emissora "NBC News" o historiador Scott Ellsworth, autor do recém-lançado livro "The ground breaking: Uma cidade americana em sua busca por Justiça", sobre as sequelas ainda vivas em Tulsa cem anos após o massacre. "O que aconteceu depois daquilo foi uma multidão de licnhamento e aí as coisas começaram a acontecer muito rapidamente".
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Em uma entrevista ao jornal "The Tulsa Daily World" publicada em 2 de junho de 1921, dia seguinte ao massacre, o chefe de polícia James Patton afirmou que a polícia estava conduzindo a investigação de forma cautelosa. Segundo ele, Sarah Page disse apenas que Dick Rowland agarrara seu braço e fugira quando ela gritou de susto. De acordo com Patton, não fosse a versão enganosa dos fatos publicada pelo "Tulsa Tribune", provavelmente, todo o episódio de extrema violência que se sucedeu no distrito de Greenwood não teria ocorrido.
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Análises reconhecem a influência do jornal nos acontecimentos, mas afirmam que a tensão racial na região era um barril de pólvora preste a explodir. Oklahoma é um estado no Sul dos EUA, uma região de histórica segregação racial. O distrito de Greenwood era conhecido como a "Wall Street negra", endereço de pessoas bem sucedidas da população negra, como advogados, dentistas e comerciantes. Muitos moradores da "parte branca" de Tulsa se ressentiam desse êxito.
O clima esquentou no início da noite, quando homens brancos se aglomeraram na porta do tribunal de Tulsa, onde Rowland seria levado à presença de um juiz. Três deles entraram no prédio e chegaram a pedir às autoridades que o engraxate fosse entregue ao grupo. Como não se podia confiar na competência (e nem na boa vontade) da polícia para proteger o engraxate, por volta das 21h30, dezenas de homens negros, muitos deles veteranos da Primeira Guerra Mundial, armados com rifles e revólveres, chegaram ao tribunal.
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A partir de então, a situação ficou fora de controle. Por volta das 23h, havia cerca de 2 mil homens brancos, boa parte deles também armados, na porta do tribunal. Não demorou até que uma briga entre os dois grupos desse início a uma troca de tiros. Os homens negros se retiraram em direção ao distrito de Greenwood, mas eles foram perseguidos pela turba de homens brancos, que começaram a saquear os estabelecimentos pelo caminho, disparando também contra pessoas negras que nem estavam envolvidas naquela confusão.
A madrugada de 1º de junho viu a brutalidade se espalhar por horas. Residências e prédios comerciais foram queimados. Parte dos moradores revidaram os ataques com tiros, mas os agressores eram maioria. Mais de 30 quarteirões foram incendiados. Após aquela noite, muitas famílias deixaram Tulsa para nunca mais voltar. Segundo Scott Ellsworth, é preciso continuar pesquisando para se chegar a um total de mortos, mas todas as estimativas informam que o número de negros que perderam a vida é muitas vezes maior do que o de brancos.
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Imediatamente depois dos distúrbios, enquanto os agressores ainda se gabavam de sua participação no massacre, as autoridades de Tulsa se esforçaram para apagar seus registros, como fotos e outros documentos. O episódio nunca foi totalmente esquecido, mas, quando a série "Watchmen" foi ao ar, em 2019, muitos americanos confessaram jamais ter ouvido falar na tragédia. Mesmo entre as comunidades negras há desconhecimento sobre o assunto, já que muitas famílias, traumatizadas, sentiram dificuldade em falar daquilo para seus filhos e netos.
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