Cineasta Jean-Luc Godard, ícone da Nouvelle Vague, morre aos 91 anos
Diretor franco-suíço marcou a história do cinema com obras como 'Acossado' e 'Bando à Parte'
Inácio Araujo, 13/09/2022, FSP
Ícone da Nouvelle Vague, o cineasta Jean-Luc Godard, morreu aos 91 anos nesta terça-feira (13). Jean-Luc Godard vem de uma família rica. Aliás, muito rica. Riquíssima. Família de banqueiros suíços. No entanto procurou afastar-se por completo dessa riqueza.
Foi com seu trabalho como operário que financiou seu primeiro curta-metragem. Mais tarde, já morando em Paris, ele roubou do avô um exemplar de um livro autografado por Paul Valéry especialmente para o avô, de quem era muito amigo. Godard podia ter pedido dinheiro em casa, mas preferiu o furto. Era sua forma de mostrar o desejo de independência.
Quando escreve seu primeiro artigo para a já mundialmente famosa revista "Cahiers du Cinéma", em 1952, deu ao seu texto o nome de "Defesa e Ilustração da Decupagem Clássica". Expunha ali as virtudes dos filmes feitos e montados à maneira clássica. Pois, como explicitaria quatro anos mais tarde, a montagem e a direção de um filme são a mesmíssima coisa.
Isso ele fez na revista daquele que foi "o pai espiritual" dos jovens redatores da revista (Godard inclusive): André Bazin, o criador da teoria realista do cinema moderno, para quem a montagem era não mais do que uma trapaça. Jean-Luc Godard foi assim desde sempre: iconoclasta. Gostava de colocar tudo em questão, inclusive a si mesmo.
Em 1959, questionaria o cinema inteiro, com "Acossado" (1959), sua retumbante estreia. Tudo era improvisado. Não havia roteiro. Pela manhã, o diretor tomava as notas sobre o que pretendia filmar naquele dia. Encerrava as filmagens quando entendia que a inspiração tinha acabado.
A classe cinematográfica tradicional, tão atacada nos "Cahiers" pela turma da nouvelle vague, regozijava-se com aquele filme que, dizia-se, seria impossível de montar. Doce ilusão. Não só "deu montagem", como a mais moderna do mundo. Aquela em que cada "raccord" (o encontro entre dois planos) parecia desafiar os postulados do "bom cinema" e anunciar o futuro de sua arte.
Deste então mudaram os parâmetros da montagem. Mas também os da filmagem. Com seu fotógrafo, Raoul Coutard, criou um estilo de reportagem, cinema com câmera na mão, sem luz artificial, ou quase, captação das ruas ao vivo, longe dos estúdios, um tanto de ficção e um tanto de documentário no mesmo filme.
Breve: Godard libertou o cinema de todas as convenções que o prendiam a um determinado tipo de forma. Sacudiu a poeira da sua arte com tal ênfase que com um único filme tornou-se um diretor essencial para o conhecimento do cinema. Sua arte era "a verdade em 24 quadros por segundo", disse. Era também a mais próxima do homem, pois a única que o captava por inteiro em seu tempo e espaço, sem intermediários. Mestre das frases de efeito (mas não só de efeito), postulou, com seu amigo Eric Rohmer, a superioridade de sua arte: "O cinema é um pensamento que toma forma, bem como uma forma que permite pensar".
Godard gostava da liberdade. Inclusive da de mudar de filme para filme. Cada filme era um novo experimento. Gostava, por isso mesmo, do cinema mudo, aquele de um tempo "em que o cinema ainda não sabia o que era" e se buscava, filme após filme. Antes de ser arte ou modo de expressão, o cinema confundia-se então com a liberdade e a descoberta permanente.
Quando passou da crítica à direção, Godard desafiou todas as regras estabelecidas. Se as regras diziam que não se faz um primeiro plano com lente grande angular, ele fazia. Se diziam que não se pode usar branco para evitar o brilho, ele usava. Cada filme parecia ir em um sentido diferente do anterior. A contradição não deixa de ser uma forma de arte.
Além de Raoul Coutard, o fotógrafo, sua companheira nessa primeira fase foi a atriz dinamarquesa Anna Karina, por quem se encantou vendo um filme publicitário e com quem se casaria pouco depois, lançando-a, já, em "Uma Mulher É uma Mulher" (1961). O casamento duraria menos que a parceria. "Alphaville" (1965) é o primeiro filme que fazem depois da separação (e em não poucos momentos uma declaração de amor do cineasta por sua musa). Fariam ainda "Made in USA" (1966) juntos.
A única fidelidade de Godard, desde então e até agora, foi à atualidade: podemos vasculhar sua filmografia. É sempre do presente, de algo que o atrai ou inquieta que seus filmes estão falando. Entre outras coisas. No mais, permitiu-se sempre ser contraditório. A contradição atingiu também sua vida pessoal, como relata sua segunda ex-mulher, Anne Wiazemsky. Tão revolucionário na arte, podia ser doentiamente ciumento em casa. Casa que, por sinal, podia usar como locação, ao mesmo tempo em que morava lá. É Wiazemsky, de novo, quem relata a dureza de ser forçada a retomar pelo diretor, em cena, na manhã seguinte, a mesma discussão que tivera com ele, e no mesmo lugar, na noite anterior.
Para o bem e para o mau, assim construía sua arte. Seu amigo Eric Rohmer, também diretor, dizia que Godard era como um ladrão, que pilhava uma imagem aqui, uma citação literária ali, depois um trecho de música, depois a imagem de um outro filme, juntava tudo e transformava numa ideia própria. Assim montava seus painéis, colando pedaço a pedaço, às vezes desorientando o espectador que por vezes procurava ali uma profundidade que Godard mesmo nunca procurou. Sua arte era a do olhar, a da pele.
Era, também, do momento. Cada filme de Godard é uma espécie de documentário sobre o momento em que é feito: "O Pequeno Soldado", a Guerra da Argélia; "Alphaville", o totalitarismo informativo; "O Demônio das Onze Horas", a sociedade de consumo; "Weekend", a sociedade automobilística e seus congestionamentos-monstro; "A Chinesa" e a ascensão do maoísmo.
A esse último, por sinal, Godard aderiu nos idos de 1968. Renegou sua obra anterior, deixou o cinema comercial, passou a fazer filmes coletivos destinados à classe operária, que, verdade seja dita, não se sensibilizava muito com eles. Godard passou daí às séries em vídeo, quando nenhum cineasta ousava usar essa tecnologia. Que importa? Godard experimentava. Foi experimentando que chegou à TV, com as séries "Seis Vezes Dois" (1976) e "France, Tour, Détour, Deux Enfants" (1977).
A partir daí, seus filmes podem ser definidos, cada vez mais, por um novo gênero: o ensaio cinematográfico. Nem ficção, nem documentário, às vezes os dois, às vezes nenhum. Voltou ao circuito comercial com "Salve-se Quem Puder (A Vida)". Ora trouxe grandes estrelas (Johnny Halliday, Isabelle Huppert), ora lançou talentos (Marushka Detmers). Cada vez mais solitário, recolheu-se à sua casa na Suíça, e, não raro, apenas juntando pedaços de filmes de outros, soube impor, pela montagem, sua visão das coisas: falou das guerras na Europa, da ascensão do neoliberalismo, da América, do socialismo.
Desde "Acossado" até os mais recentes filmes-ensaio de Godard, pode-se gostar ou não de sua arte, pode-se "entender" ou não o que está lá, pode-se achar chato ou não, três coisas não se poderá negar: 1) contam-se nos dedos os artistas com a inteligência e a inquietude de Godard; 2) cada vez que ele colocou a câmera para filmar, combinou cores, moveu seus atores, produziu beleza; 3) desde que Godard começou a filmar o cinema nunca mais foi o mesmo.
O solo em que pisamos, quem o fecundou foi Godard. Com chatices e erros, mas também e sobretudo com gênio e grandeza.
Morre o ousado gênio da nouvelle vague, aos 91
Estadão Conteúdo Luiz Carlos Merten, especial para o Estadão, 14/09/2022
Cannes o homenageou por duas vezes. O pôster do festival de 2016 ostenta uma imagem de O Desprezo, de 1963. O de 2018, a imagem de outro clássico de Jean-Luc Godard, Pierrot le Fou ou O Demônio das Onze Horas, de 1965. É estranho falar em "clássico" de Jean-Luc Godard. Ele foi, talvez, o maior revolucionário da linguagem - e da política - no cinema. No Dicionário de Cinema, Jean Tulard inicia seu verbete sobre ele com duas interrogações: "Pergunta-se se Godard não foi o coveiro do cinema? Ou um gênio inovador?" A polêmica sempre acompanhou Godard. Resumidamente, o jovem de origem suíça que foi estudar em Paris, na Sorbonne, frequentou mais a Cinemateca do que a universidade, ligou-se a André Bazin e François Truffaut, com o pseudônimo de Hans Luca fez a crítica em Arts e na Cahiers du Cinéma, que foi o grande celeiro do movimento de renovação da cinematografia francesa conhecido como nouvelle vague.
NOVA ONDA
A nova onda veio, na segunda metade dos anos 1950, para sacudir as estruturas de um cinema que se fossilizara. Truffaut, num célebre artigo - Uma Certa Tendência do Cinema Francês -, investiu contra o que chamava de cinema de papai. Godard iniciou-se no curta. Opération Béton, Une Femme Coquette, Tous les Garçons sAppellent Patrick, Charlotte et Son Jules, Une Histoire dEau - este último em parceria com Truffaut. Foi ainda Truffaut quem lhe deu a história para seu primeiro longa, Acossado, de 1959. Unidos no começo, seguiram caminhos diferentes. Compartilharam o mesmo ator - Jean-Pierre Léaud. Truffaut morreu cedo, em 1984, aos 52 anos. Godard o ultrapassou em quase 40 anos. Morreu nesta terça, 13, aos 91 anos. Faria 92 em 3 de dezembro. Segundo o jornal Libération, ele teria optado pela eutanásia por sentir "cansaço".
Justamente a morte. Com exceção de Truffaut e Jacques Démy, que partiu aos 59 anos, os grandes da nouvelle vague foram quase todos longevos. Agnès Varda morreu a poucos meses de completar 91 anos, Eric Rohmer morreu faltando dois meses para 90 anos, Jacques Rivette, aos 88 anos, Claude Chabrol, aos 80. Por volta de 1960, os jovens futuros autores da nova onda reclamavam que a França era um país de velhos.
Há controvérsia. Alguns mantiveram a juventude na autoralidade, fazendo até o fim obras inovadoras, cheias de vigor. Justamente Truffaut virou o nó górdio. Fez filmes sobre o amor, baseados na observação cotidiana - uma tradição francesa, segundo Jean Tulard -, foi, ele sim, um clássico, para não dizer acadêmico.
DESCONSTRUÇÃO
Godard, não. Desde o começo questionou a linguagem. Acossado não deixa de ser um faroeste urbano; Um Homem, Uma Mulher é um musical sem canto nem dança. Mesmo quando parecia que ia fazer cinema de gênero, Godard, na verdade, desconstruía as formas. Sua obra foi se radicalizando ao longo dos anos 1960.
A radicalidade não estava só na forma. Masculino-Feminino, de 1965, é sobre sua geração, que Jean-Luc definia como filhos de Marx e da Coca-Cola, A Chinesa, de 1967, antecipa o célebre Maio de 68 ao colocar seus personagens dentro de um apartamento, dizendo palavras de ordem revolucionárias, Week-End à Francesa, de 1968, utiliza um engarrafamento de trânsito para filmar a derrocada do sistema.
Seguiu-se uma fase de militância, na qual o único filme comercial - nos termos de Godard - foi Tudo Vai Bem, com dois ícones da esquerda, Yves Montand e Jane Fonda. Longe de obter a unanimidade, Godard foi espinafrado pelos sindicatos. Em 2017, ele seria biografado por Michel Hazanavicius em O Formidável. Um recorte, apenas - Godard, interpretado por Louis Garrel, tenta ser aceito nos círculos mais radicais de Maio de 68, mas é rechaçado. O filme se baseia no relato da mulher de Godard na época, Anne Wiazemsky, que ele conheceu ao visitar o set de Au Hazard Balthazar/A Grande Testemunha, de Robert Bresson, de 1966.
AS MULHERES DE GODARD
Depois de transformar Jean Seberg em musa, em Acossado, e de subverter o mito de Brigitte Bardot em O Desprezo, Godard teve a sua fase Anna Karina, a fase Wiazemsky, até chegar a Anne-Marie Miéville. No Google, você encontra a definição: "Importante videomaker suíça". Por influência dela, ou não, Godard se volta ao vídeo e à TV, realiza Histoire(s) du Cinéma. O livro com esse título, História(s) do Cinema, foi editado no Brasil pela Círculo de Poemas.
Em matéria de colaborações, não se pode esquecer dos grandes papéis ofertados a Jean-Paul Belmondo, que morreu no ano passado, e até a Alain Delon. E se inicia a fase final. Carmen, Eu Vos Saúdo, Maria, Nouvelle Vague, Alemanha Nove Zero, Infelizmente para Mim, O Elogio ao Amor, Imagem e Palavra.
Por último, Godard recebeu a Palma de Ouro honorária em Cannes, em 2018, uma homenagem do festival. Ele venceu o Urso de Ouro, o Leão de Ouro, um César especial pelo conjunto da obra, outro prêmio honorário da Academia de Hollywood. A par de todas as homenagens - e a maioria ele nem se dignou a comparecer -, Godard foi extremamente importante. Marcou a segunda metade do centenário do cinema. Desde o fim dos anos 1950 é inimaginável a evolução do cinema sem as provocações desse gênio.
Godard, subversivo no mais puro sentido da palavra
Vítima da censura na ditadura e na Era Sarney, diretor foi rebelde
Sérgio Augusto, FSP, 17/09/2022
Duas eras chegaram ao fim este mês, com cinco dias de diferença: a era da rainha Elizabeth 2ª e a era de Jean-Luc Godard. Vi as duas nascerem, a primeira tão desinteressadamente quanto acompanhei seu desenrolar, a segunda com o entusiasmo juvenil de um cinéfilo já familiarizado com as ideias de Godard desde o tempo em que ele ainda assinava seus artigos na revista Cahiers du Cinéma e no semanário Arts com o pseudônimo de Hans Lucas.
Sua clássica definição de cinema como “a verdade 24 vezes por segundo” ganhou relevância oracular junto a cineastas do mundo inteiro. Mas de suas tiradas, entre as tantas, em geral peremptórias, que fez (“Nicholas Ray é o cinema”, por exemplo), as mais marcantes, para mim, foram sobre o estilo de Hitchcock (“ele filma caras como se fossem bundas e bundas como se fossem caras”) e o “maior equívoco” de Orfeu Negro. Por ele, Godard, Eurídice chegaria ao Rio não de barca, mas de avião, “aterrissando no aeroporto mais bonito do mundo”, o Santos Dumont de 64 anos atrás.
Para os cinéfilos cariocas, a Era Godard começou na noite de 24 de abril de 1961, quando da première de À Bout de Souffle (Acossado) no auditório da Maison de France.
Saímos da sessão entre fascinados e aturdidos com a avassaladora exibição de inventividade, souplesse, e desrespeito aos cânones narrativos da época. E ainda ganhamos, além de um novo gênero (o film noir existencialista) e um novo anti-herói (Michel Poiccard/Jean-Paul Belmondo) decalcado em Jean Gabin e Humphrey Bogart, uma paixão para a eternidade, Jean Seberg. Acossado foi a Sagração da Primavera para a geração que logo a seguir amaria os Beatles e os Rolling Stones. Cidadão Kane, descobriu-se, não havia sido o primeiro grande baile do cinema moderno, como se acreditava, mas o último grande baile do cinema antigo. Foi Godard quem, a rigor, introduziu o cinema à modernidade, pervertendo o thriller, o musical, o drama de guerra, a ficção científica e outros gêneros formatados e consagrados por Hollywood.
Sabíamos tudo sobre Acossado e seus bastidores, identificávamos os locais das externas em Paris e até os intérpretes bem mais obscuros que o do diretor Jean-Pierre Melville, o paródico Parvulesco, cujo sonho é morrer e tornar-se imortal. Reproduzíamos entre amigos as falas, os calemburgos de Belmondo (“Maintenant, je fonce, Alphonse”), as gírias e os palavrões disparados em cena, noves fora as citações literárias (Faulkner, Dylan Thomas), que depois perceberíamos indissociáveis da estética godardiana.
O amor pela leitura, a devoção às palavras, eis o que, no fundo, mais aprecio nos filmes de Godard. Personagens que leem – e até comentam o que leram – são cada vez mais raros na tela, monopolizada por gente que no máximo lê jornal e revista. Até brigar com livros os personagens de Godard já brigaram; não atirando brochuras uns nos outros, mas agredindo-se verbalmente com os títulos de obras literárias colhidos a esmo numa estante, como Anna Karina e Jean-Claude Brialy fizeram em Uma Mulher é Uma Mulher.
Godard irritou à beça os nossos milicos, que o consideravam um perigoso subversivo. Era mesmo – no melhor sentido da palavra. A ditadura proibiu A Chinesa, depois liberado porque o coronel que chefiava a Polícia Federal não entendera patavina do que Jean-Pierre Léaud e seus amigos maoistas discutiam diante da câmera, embora falassem em francês, não em chinês. Em Masculino-Feminino, Léaud lia um manifesto contra a prisão de intelectuais pelo governo Castelo Branco. Claro que deu galho.
Consta que Godard ajudou financeiramente a Aliança Libertadora Nacional, de Marighella. No entanto, o mais rumoroso atrito entre a censura brasileira e o cineasta ocorreu já na Nova República, quando o governo Sarney baixou a crista para as lideranças católicas e proibiu Je Vous Salue, Marie. R.I.P., Jean-Luc.
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