Rio, 16 de julho de 1950
Armando Nogueira, Jornal do Brasil, 18 de agosto de 1996
'Esta crônica saiu, aqui, há mais ou menos três anos. A morte de Obdulio Varela, semana atrasada, me impõe a republicação. É um depoimento patético. A história da noite da final de 50, no Maracanã, contada por Obdulio Varela ao escritor argentino Oswaldo Soriano. Foi a primeira vez que El Gran Capitãn abriu a boca pra falar da Copa de 50. Primeira e última.'
Na noite de 16 de julho de 50, o velho capitão não quis comemorar com o resto do time. Convidou o massagista da Celeste Olímpica a sair com ele. Os dois deixaram o hotel sem destino certo. O Rio era um vasto cemitério. Nem alma do outro mundo se via pelas ruas da cidade.
Obdulio e o massagista entram num bar da Avenida Copacabana. O dono do bar é um velho conhecido de outras passagens da seleção uruguaia pelo Brasil. Obdulio, que já saíra do hotel um tanto calibrado, quer tomar chope. Está sem um tostão no bolso. Pergunta se tem crédito. O próprio dono traz duas canecas, espumando. Obdulio, ainda em pé, bebe de um só fôlego a primeira caneca.
Já sentado, Obdulio vê entrar no salão um rapaz. Um rapaz que é a própria máscara da desolação. Nas raras mesas ocupadas, as pessoas ouvem, desconsoladas as lamúrias do moço. Ressoa pela sala a tristeza cósmica do povo brasileiro.
– O Obdulio derrotou o Brasil – dizia, em prantos, o torcedor.
O desabafo bateu de mal jeito no coração de Obdulio Varela. De repente, ele se sente o carrasco de um povo. O próprio Obdulio narra, na primeira pessoa, o drama que passaria a viver naquela noite sombria do futebol brasileiro.
“Eu olhava aquele rapaz sofrido. Foi me dando um mal-estar. O povo desse país tinha preparado o maior carnaval do mundo e nós arruinamos tudo. De repente, eu estava tão amargurado quanto ele. Teria sido bonito ver uma noite de carnaval dos brasileiros. Teria sido emocionante ver a multidão delirando com uma coisa tão simples, tão singela. Nós tínhamos estragado a festa e, a bem da verdade, não tínhamos ganhado nada. Conquistamos um título, muito bem. Mas, que seria isso comparado com a tristeza imensa de uma gente tão simpática? Pensei no Uruguai. Certamente, o povo lá estaria muito feliz. Mas, eu, Obdulio, eu estava no Rio, no meio de uma profunda decepção nacional. Me lembrei da raiva que tive quando os brasileiros nos fizeram o gol. E, no entanto, a bronca que dei no campo iria doer em mim também”.
O dono do bar foi à mesa do campeão, levando pelo braço o rapaz, ainda choroso.
– Sabe quem é este? Este é o Obdulio Varela. – E apresentou um ao outro.
– Tive a súbita sensação de que aquele rapaz podia me matar – confessa Obdulio – e, se me matasse, talvez merecesse absolvição.
– Por favor, Obdulio – disse, reverente, o rapaz -, você quer tomar um chope comigo?
Obdulio aceitou. Mudou de mesa. “Se tiver de morrer aqui, não pode existir noite mais apropriada” – pensou.
À noite do triunfo, Obdulio Varela passou-a, inteirinha, esvaziando canecas e consolando aquela alma penada que acabara de conhecer. Um pobre coração destroçado. E a quem, lá pelas tantas da madrugada, talvez tivesse confessado, como confessaria, mais tarde, ao escritor Oswaldo Soriano:
– Se tivesse de jogar, de novo, aquela final do Maracanã, não se assombre com o que eu vou lhe dizer: eu faria um gol contra. Um gol contra, sim senhor!
O final do surpreendente depoimento é um libelo contra dirigentes do futebol uruguaio. Recorda Obdulio, enfurecido, que os cartolas ficaram com as medalhas de ouro da copa de 50; que jamais respeitaram os campeões mundiais. Nem os de 24, nem os de 28, nem os de 30 e muito menos os de 50. Obdulio não perdoa tão pouco a crônica esportiva.
– Os jornalistas sempre se meteram na minha vida privada. Rompi com todos eles, pra sempre.
Quem viveu o futebol dos anos 40/50 lembra-se de Obdulio. Um caudilho majestoso. Centromédio e capitão da equipe, ele encarnava o espírito encrespado da camisa Celeste. Cansei de vê-lo jogar pelos campos do mundo. Era um mulato forte. Hercúleo. O torso parecia um armário, dos grandes. Craque nunca foi, mas jogava o corpo e a alma em cada disputa de bola. Era um épico. Corria pelo campo, altivo, como se estivesse empunhando a bandeira do Uruguai. Jamais esquecerei a metáfora poética com que definiu Antônio Maria, descrevendo a epopéia do Maracanã: "Obdulio amarra as chuteiras não com cadarços, mas com as próprias veias."
Não ousaria interpretar o coração de Obdulio Varela. É demais para um sobrevivente da catástrofe de 16 de julho. Sempre imaginei El Capitãn, numa festança, tomando Champanhe na taça efusiva da vitória uruguaia. E, no entanto, fico sabendo agora, que o herói da batalha do Maracanã; o general que tramou o gol de Gighia, nossa maldição, acabaria a noite metido num botequim de Copacabana, bebendo conosco, no chope aguado, as lágrimas da nossa desventura.
......
NB: 1. Esta crônica de Armando Nogueira corresponde à publicada na versão impressa do Jornal do Brasil em 18/08/1996. Uma versão reduzida aqui e 2. A citação de Antônio Maria desta crônica é também a de Nelson Rodrigues: "O escritor Nélson Rodrigues escreveu que Varela “não atava as chuteiras com cordões, mas com as veias”. O golo que silenciou 200.000 espectadores
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