domingo, 11 de setembro de 2022

A morte da rainha

1. 'Obsessão com morte de Rainha dá a real medida de nossa emancipação', Milly Lacombe, UOL, 11/09/2022; 2. 'Relação da monarquia britânica com suas ex-colônias do Caribe precisa mudar', Sylvia Colombo 11/09/2022 – FSP e 3. 'Rei Charles 3º, apenas abdique ao trono', DW, Zulfikar Abbany , 11/09/2022

1. Obsessão com morte de Rainha dá a real medida de nossa emancipação

Estamos acompanhando o minuto-a-minuto da morte da Rainha Elizabeth e talvez devessemos nos perguntar por que sua morte gera tanto interesse. A Rainha do Reino Unido não era exatamente conhecida por ser uma pessoa ligada a causas sociais, o que talvez justificasse o apego em relação a sua passagem.

 
Corpo da rainha Elizabeth é levado em caixão de carvalho. Imagem: Jeff J Mitchell / Equipe via getty

A Rainha, muito pelo contrário e para dizer o mínimo, foi uma pessoa que compactuou com o Apartheid, com a ditadura e com todos os horrores do colonialismo e da colonialidade que até hoje colocam nações inteiras como territórios a serem explorados e saqueados. Tendemos a simpatizar com pessoas que vivem muito, que envelhecem e adquirem um ar de delicadeza e de doçura, verdade. Tendemos a apreciar pessoas de gestos curtos, de poucas palavras, de vestimentas elegantes, outra verdade.

E, claro, tendemos a supervalorizar pessoas muito ricas por nenhum outro motivo que não seja sua riqueza, especialmente se elas podem legalmente ser chamadas de Rainha. Mas, olhada de perto, a Monarquia é em si um horror. Uma família que vive nababescamente e há séculos de rendas acumuladas por saques, guerras e exploração colonial.

Não temos, a rigor, nada a ver com a Rainha. Isso não nos desobriga de prestar solidariedade a quem de direito porque perder pessoas que amamos é sempre dolorido. Perdi minha avó aos 99 anos e devo dizer que, ainda assim, me pareceu inesperado e precoce que ela me deixasse. A morte de Diana talvez justificasse o frenesi midiático: jovem, ligada a causas sociais, um fim trágico.

Mas a da Rainha não precisaria de uma cobertura tão extensa, tão detalhada, tão colonizada. O papel da Inglaterra durante todos os anos em que o Brasil (ainda legalmente uma colônia portuguesa) foi explorado e saqueado não pode ser chamado de amigável ou de saudável. Nossas riquezas, fruto do incansável trabalho dos povos escravizados, eram extraídas para proveito da Inglaterra e de sua Monarquia.

O arrebatamento com a morte de uma pessoa que nunca fez nada para resgatar os povos oprimidos e explorados desse planeta, ainda que tivesse poder para isso, dá a real medida de nossa independência. Sete de setembro não significa grande coisa. A data, sequestrada por Jair Bolsonaro para celebrar sua suposta virilidade, é mais ou menos isso: uma data que, de tão irreal, é desprezível a ponto de ser sequestrável.

Um dia, quando virarmos uma nação de fato independente, derrubaremos todas as estátuas dos Bandeirantes, arrancaremos os nomes das ruas que homenageiam torturadores e encerraremos a comemoração de datas mentirosas. No lugar delas, colocaremos no calendário oficial os feriados do dia do nascimento de Carolina Maria de Jesus, o dia de Zumbi dos Palmares, de Dandara dos Palmares, de André Rebouças, de Marielle e de tantas e tantos outros. Nesse dia, teremos encontrado nossos reis e rainhas aqui mesmo.

Porque elas e eles estão aí, na luta do dia a dia, nos transportes públicos, nas fábricas, enterrando seus filhos sem direito a pedir justiça mas também nos terreiros, nas florestas, nas festas de rua e na violenta, ainda que silenciosa, luta por um Brasil de fato emancipado.

2. Relação da monarquia britânica com suas ex-colônias do Caribe precisa mudar

Jamaica, Belize e outros querem deixar de ter o monarca inglês como chefe de Estado

Sylvia Colombo 11/09/2022 - FSP

Era para ser um daqueles momentos em que William e Kate, agora príncipe e princesa de Gales, manejam tão bem. Diante das câmaras, são pura doçura e simpatia com o público. Porém, um encontro mal-arranjado na Jamaica quase destrói o esforço da família real de estreitar laços com suas ex-colônias caribenhas. Organizadores previram um encontro com jovens e crianças que estariam separados do casal real apenas por uma... grade.

A imagem acabou sendo um desastre, pois o público parecia engaiolado e acabou sendo uma referência clara e direta ao que foi o Caribe durante boa parte do Império Britânico, um local onde a escravidão causou imensos sofrimentos e ainda marca de modo negativo os índices sociais até hoje. Tudo isso para que países europeus, como o Reino Unido, vivessem em pujança econômica.

 
William e Kate em momento saia-justa na Jamaica, cumprimentando crianças negras por meio de uma grade - Chris Jackson/Reuters

Tanto a viagem de William e Kate, que passou por Jamaica, Belize e as Bahamas, em março, como a de Edward (irmão mais novo do agora rei Charles 3o) e sua mulher, Sophie, que visitou Santa Lucia, Saint Vincent & the Granadines, e Antigua & Barbuda, em abril, acabaram tendo resultados adversos para a Coroa. Na época, a ideia era estimular os festejos pelo Jubileu da Rainha, que comemorava 70 anos de reinado. Ambos os casais foram celebrados pelo público de um modo geral, mas também foram vistos em vários pontos pessoas carregando faixas dizendo "reparação agora", ou "Reino Unido, sua dívida conosco continua aberta".

Embora tenha havido festa, recepção calorosa e multidões carinhosas para receber os membros da família real, o gosto amargo ficou por conta das manifestações de grupos que desejam um pedido de desculpas público do Estado britânico pelos males causados pela colonização e que países continuem tendo a Coroa britânica, no caso agora o rei Charles 3o, como chefe de Estado, eliminem esse vestígio do passado. Isso já aconteceu em Barbados, em novembro do ano passado, quando o país removeu a figura de Elizabeth 2a do posto de chefe de Estado, transformando-se em uma república _e com uma mulher, a ex-juíza Sandra Mason, como presidente do país. Na cerimônia, estava o então príncipe Charles, que desejou sorte ao país.

Assim como em Barbados, o sentimento republicano já existe há tempos nos outros países caribenhos que, embora independentes, ainda mantêm a figura do monarca britânico como chefe de Estado. O movimento para livrar-se deste vestígio de um passado doloroso se acirrou, porém, com o assassinato de George Floyd nos EUA, em maio de 2020, e a ascensão do movimento Black Lives Matter.
Tanto o novo rei como o novo príncipe de Gales, em suas visitas recentes ao Caribe, referiram-se à escravidão como "uma aberração" e algo "que nunca deveria ter ocorrido". Além disso, o novo monarca e sua antecessora, a rainha Elizabeth 2a, afirmaram ver com bons olhos e apoiar as decisões das nações que desejem desvincular-se do Reino Unido.

Os gestos de boa-vontade, porém, são pouco para os grupos mais radicais que desejam, além de um corte de laços políticos, também uma reparação financeira. Isso poderá ser uma pedra no sapato do reinado de Carlos 3o e, obviamente, também ao recém-iniciado governo da conservadora Liz Truss, uma vez que este último item teria de ser aprovado pelo Parlamento britânico, se levado adiante.
A Jamaica é o país que avança de modo mais acelerado nessa direção. Na mesma viagem de William e Kate, o primeiro-ministro jamaicano, Andrew Holness, falou abertamente ao lado do príncipe sobre a necessidade de uma reparação financeira. O país já é independente desde 1962, mas agora tem um novo chefe de Estado, o rei Charles 3o, o que salta como uma anacrônica falta de lógica. William, em uma resposta educada, apenas celebrou a história de lutas dos jamaicanos, a independência, e a cultura locais, além de condenar a escravidão, mas não falou sobre dinheiro.

O Belize, independente desde 1981, embora geograficamente localizado na América Central, mas administrado durante o jugo britânico junto aos países caribenhos, também vem expressando a vontade de deixar de ser uma monarquia constitucional parlamentária vinculada ao Reino Unido. O Belize tem um ativo grupo de acadêmicos que trabalha na preparação de documentos e pesquisas sobre o processo de descolonização e deseja ser chamado a conversar sobre o tema com a Coroa.

Em Antigua e Barbuda, também independente desde 1981, o primeiro-ministro Gaston Browne pediu ao príncipe Edward que "ajudasse na mediação" com a Coroa e o governo britânico para a negociação de reparações financeiras. "Continuamos a ter a (então) rainha como chefe de Estado, mas aspiramos em virar uma República. Não quero envergonhá-lo em sua visita, apenas avisá-lo. Esperamos contar com sua influência diplomática para que tenhamos uma justiça reparatória com relação ao que ocorreu no passado". E acrescentou: "Nossa civilização deve entender e reconhecer as atrocidades que ocorreram durante a colonização, só assim vamos trazer balanço para relação e poderemos debater temas em comum abertamente". Edward nada disse, mas anotou o recado.

Embora a maioria dos ex-territórios britânicos no Caribe sejam hoje países independentes, não é o caso de cinco deles, que permanecem sob as asas do Reino Unido: Anguilla, as Ilhas Virgens Britânicas, as ilhas Cayman, Montserrat e Turks and Caicos. Seu futuro também permanece incerto.
Quando se fala da influência da monarquia britânica hoje, estamos falando muito mais de símbolos do que de política. Afinal, esta é manejada pelos governos. O que pedem os países caribenhos nos dias de hoje têm muito mais a ver com o atual governo britânico do que com o atual monarca. Ainda assim, em tempos em que imagens e figuras emblemáticas têm tanto peso na geopolítica mundial, o que diga o novo rei terá influência direta nos rumos do Caribe. Num primeiro momento, tanto Charles como sua família não parecem querer colocar obstáculos nas decisões desses países soberanos. Já reparações financeiras e desculpas em nome do Reino Unido terão de convocar também outras esferas do poder e da sociedade.

Os países caribenhos que foram colonizados pelos britânicos hoje têm enormes problemas de pobreza e desigualdade, e não há como não atentar para o fato de que são uma herança daquela época. Se a dívida moral já era visível antes, será ainda mais com a mudança do titular do trono britânico. Não se trata de um assunto que deveria continuar aberto.

A descolonização não é apenas uma saída de cena do país colonizador. Mas também um processo de muitas fases, que podem ou não envolver uma reparação financeira. Este será um papo essencial em algum vindouro chá entre Charles e Liz.


3. Opinião: Rei Charles 3º, apenas abdique ao trono

Zulfikar Abbany, DW, 11/09/2022

Um resultado melhor, no entanto, seria acabar com a monarquia britânica

A Casa de Windsor tem visto muitos membros relutantes e Charles, certamente, se encaixa neste perfil. Momento é o ideal para melhorar a democracia no Reino Unido, opina o jornalista da DW Zulfikar Abbany.

Dois dias depois de cumprimentar a primeira-ministra Liz Truss, no último ato como chefe de Estado e soberana de 15 nações ao redor do mundo, a rainha Elizabeth 2ª morreu. É um momento triste para muitos, sem dúvida, mas também pode ser uma oportunidade para o Reino Unido.

Não consigo deixar de pensar na época em que aquela outra importante integrante da realeza – não, não me refiro ao marido da rainha, Philip –, mas, Diana, morreu. Tal como acontece com a morte da rainha, Diana faleceu logo após uma mudança de poder no governo em Londres. A única diferença era que Diana era uma pessoa voltada para o futuro, assim como o então primeiro-ministro Tony Blair – não que eu fosse um fã de ambos.  

A rainha Elizabeth, por outro lado, era mais como um adorno oxidado. O mesmo vale para o restante da realeza e sua classe dominante e conservadora. Eles são guardiões de uma política e sociedade do passado e um lembrete constante – seja em moedas, selos ou pacotes de biscoitos e chá – de que somos seus súditos e estamos na parte inferior de uma hierarquia totalmente antidemocrática.

Mas os tempos mudaram, e eles também deveriam mudar.

Uma realeza relutante a mudanças

O príncipe – agora rei – Charles esperou toda a sua vida adulta, até o que deveria ser sua aposentadoria, para assumir o trono. Ao ser coroado, Charles deve sentir que não terá muito tempo para servir à monarquia. De fato, se algum de seus comportamentos nos últimos 35 anos pudesse ser tomado como evidência, eu sugiro que a última coisa que ele quer é ser rei. Sua esposa Camilla também não expressou muito interesse pelo posto de rainha consorte.

Expressar opiniões não é algo que cabe a realeza, e será que Charles não terá que aprender essa lição atrasado? Em junho, ele foi criticado por ter descrito os planos do governo de enviar migrantes para Ruanda como "deploráveis".

Parece que Charles é menos filho de sua mãe do que dita a linha de sucessão. E isso pode não ser ruim: Charles ainda pode entregar o reinado a seu filho mais velho, William. Afinal, ele é rei – e deveria ser capaz de fazer o que quiser. É mais difícil de avaliar William. Apesar de toda a antipatia anterior à realeza e aos males da mídia, o príncipe William e sua esposa, Catherine, duquesa de Cambridge, tornaram-se o epítome da realeza moderna – pelo menos externamente.

Ao contrário de seu irmão Harry e da sua esposa Meghan, que vivem nos Estados Unidos, e seu tio desonrado, o príncipe Andrew, William deu passos decisivos para subir ao trono. Poucos dias antes da morte de Elizabeth 2ª, William e Kate disseram que mudariam a casa da família para mais perto da residência da rainha.Assim, Charles pode abdicar e deixar os espólios para William e Kate. 

Um resultado melhor, no entanto, seria acabar com a monarquia britânica.

Chances reais de sobrevivência

A rainha era a patrona da minha escola secundária. Fundada em 1856, ela tinha um lema em latim — non sibi sed omnibus (não para um, mas para todos) – o que era uma mentira terrível, também, para uma instituição real.

Acredito que a rainha Elizabeth 2ª visitou a escola apenas uma vez, no ano em que nasci (1974), e nunca mais foi vista. Mas continuamos enviando cartões de aniversário para ela – quer dizer, pequenos atos de dever impensado. Ainda hoje, ouvimos pessoas nas ruas elogiarem um servo altruísta do povo, uma pessoa e uma família que formam o "tecido" da nação. Mas eu não sinto isso.

Naquele verão, quando Diana morreu, fui ao Palácio de Kensington por um capricho e para olhar a multidão. O palácio ficava do outro lado da rua da loja de roupas masculinas dos meus pais, então era bem perto. Lá encontrei com dois velhos amigos de escola que foram participar da vigília. Um deles, Michael, era do sul da Ásia, e eu lhe perguntei: "Por que você veio aqui com flores? Por que você honra essas pessoas que oprimiram o seu povo?" Ambos me olharam como se eu fosse um pária. A conversa parou ali, e nunca mais falamos sobre o assunto.

Ainda não conversamos sobre isso, porque somos súditos da monarquia – e cabe a nós ficarmos em silêncio e aceitar. Tenho sorte de estar agora na Alemanha, onde é possível criticar a monarquia. Mas, mesmo aqui, é preciso ter cuidado.

Os alemães amam a rainha como se ela tivesse sido a deles. Mas eles nunca viveram sob a monarquia como eu vivi – e muitos outros ainda vivem, ou como meu pai viveu no Quênia quando era ainda uma colônia. Mas nem ele fala sobre isso.

Tudo isso é uma tragédia para uma união democrática de nações, como o Reino Unido. Mas, agora, é a mãe de todas as oportunidades de mudança.

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Zulfikar Abbany é jornalista da DW. O texto reflete a opinião pessoal do autor, não necessariamente da DW.


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