sábado, 10 de setembro de 2022

Argentina

 Sérgio Augusto, 10/09/2021, O Estadão

E a Argentina, hein? Estamos, uma vez mais, sem moral para esnobá-la. Nosso porcentual de desempregados e famintos ainda é mais elevado, assim como nossa capacidade para produzir homicidas envenenados pelo fanatismo ideológico, cujo avatar mais recente por um triz não assassinou a vice-presidente Cristina Kirchner.

A história da Argentina é um contínuo banho de sangue, como a de tantos outros países, com uma particularidade: seu povo só parece encarar a morte com menos naturalidade que o mexicano. O primeiro rio que lá encontraram foi batizado de Matanza. A primeira narrativa nacional, escrita por Esteban Echeverría, intitulava-se El Matadero. Seus heróis são mais comemorados nos aniversários de morte. Acrescentem a essa tradição necrófila o sequestro do cadáver da primeira-dama Eva Perón. Nada disso, porém, abala a reverência que devemos à pátria de Jorge Luis Borges e Carlos Gardel, com a qual mantenho, desde menino, profundas relações culturais e afetivas.

'Houve tempo em que o ensino naqueles pampas superava em qualidade o de vários países europeus' Foto: Mariana Nedelcu/REUTERS

Shows de tango

Fui criado ao som dos tangos que minha mãe adorava, colecionava e cujas letras decorava lendo a revista portenha Sintonía. Quando a levei a Buenos Aires, dava gosto vê-la, nos shows de tango, identificar baixinho os músicos em cena: “Aquele bandoneonista começou na orquestra de Francisco Canaro”.

Depois, veio o futebol: Di Stéfano e os craques que atuaram nos gramados daqui, como José Poy e Oscar Basso (companheiro de Nilton Santos no Botafogo). E, por fim, sua poderosa literatura, seu cativante cinema (desde Leopoldo Torre Nilsson) e os quadrinhos criados por Oesterheld, Salinas, Quino, Breccia.

Coroa espanhola

Quando dom Pedro soltou aquele grito no Ipiranga, as Províncias Unidas do Rio da Prata já usufruíam seis anos de independência da coroa espanhola. Pouco menos de um século depois, o Produto Interno Bruto da Argentina já equivalia à metade do PIB da América do Sul.

Houve tempo em que o ensino naqueles pampas superava em qualidade o da maioria dos países europeus. Sexta potência econômica às vésperas da Grande Depressão, a Argentina desfrutava então de uma sólida classe média, havia praticamente zerado o analfabetismo, e tinha mais automóveis do que a França e mais linhas telefônicas do que o Japão. E muita carne. E muito trigo.

País do futuro

Não era, por supuesto, o “país do futuro”, como um que bem conhecemos e há quatro anos voltou à Idade Média, mas um país do presente - daquele bonançoso presente. Após a Segunda Guerra Mundial, a Argentina perdeu a tramontana. Seu Produto Interno Bruto e sua presença no comércio mundial despencaram, e ela adentrou este século como um país caro demais e de baixa relevância estratégica.

“Nós somos uma potência ou uma impotência, um destino ou um desatino, o pescoço do Terceiro Mundo ou o rabo do Primeiro?”, perguntou-se o escritor e jornalista Tomás Eloy Martinez, que morreu (em 2010) sem conhecer a resposta, ainda desconhecida de todos nós.

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