Pesquisa inédita mostra que, em meio ao avanço do crime organizado, homicídios cresceram quase 10% em áreas da Amazônia de 2018 a 2020 – enquanto caíram em outros municípios rurais
Renato Sérgio de Lima, Samira Bueno e David Marques, piaui, 03 nov 2021
Ilustração: CarvallNão bastasse o Brasil ter sido relegado ao papel de pária internacional no debate socioambiental que está decidindo o futuro do planeta este mês, em Glasgow, na COP26, alguns dados iniciais do estudo Cartografia das Violências na Região Amazônica, elaborado pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP) em parceria com o iCS (Instituto Clima e Sociedade) e o Grupo de Pesquisa Territórios Emergentes e Redes de Resistência na Amazônia (Terra), da Uepa (Universidade Estadual do Pará), demonstram que a Amazônia tem sido palco de um intenso e violento processo de sobreposição de ilegalidades e crimes. As respostas militarizadas adotadas até aqui não conseguem garantir soberania verde, ou seja, o desenvolvimento de uma economia verde que alie segurança como direito fundamental e soberania do Estado brasileiro nos territórios do bioma.
Segundo relatório parcial do estudo, a taxa de violência letal nas zonas rurais/floresta na região amazônica apresentou crescimento de 9,2% entre 2018 e 2020, na contramão do que ocorreu no restante dos municípios rurais brasileiros, onde houve queda de 6,1%. Nos municípios intermediários da região, ou seja, aqueles que estão na faixa de transição entre cidades e floresta, também foi registrado crescimento de 13,8% no período, contra queda de 3,4% no país.
Já nos municípios urbanos, observa-se, entre 2018 e 2020, redução da violência letal tanto na região amazônica como no restante do território nacional, com uma queda de 25,7% na Amazônia Legal, 16,2% nos demais municípios e 17,7% se considerarmos o agregado em todo o território nacional. Sem os municípios da Amazônia Legal, a taxa de mortalidade violenta nos municípios urbanos da região foi de 32 homicídios por 100 mil habitantes em 2020, bastante superior à média nacional, de 22 por 100 mil habitantes.
Em termos mais amplos, enquanto a taxa de mortalidade por homicídio no Brasil cresceu 85% entre os anos de 1980 e 2019, na região Norte o crescimento foi de 260,3% no mesmo período, muito acima da média nacional. Esse crescimento veio acompanhado de um fenômeno de interiorização da violência no país, que começou a ser observado por pesquisadores e pela mídia a partir dos anos 2000, quando os grandes centros urbanos deixaram de ser os principais focos da violência letal.
Além disso, a taxa média de violência letal dos municípios da região Norte é 40,8% superior à verificada nos demais municípios brasileiros. Para se ter uma ideia da dimensão do problema, as cidades que compõem a Amazônia Legal registraram 8.729 mortes violentas intencionais (soma de homicídios dolosos, latrocínios, mortes decorrentes de intervenção policial e morte de policiais) em 2020, ano em que os estados da região apresentaram taxas de violência letal mais altas que a média nacional.
E, para compreender esse movimento, o estudo completa a análise adotando metodologia proposta pelo Imazon, que classifica os municípios da região em três categorias: áreas sob pressão do desmatamento; áreas desmatadas; áreas não florestais e áreas florestais. Por essa metodologia, observamos que o problema não está na floresta preservada mas, sobretudo, nas áreas sob pressão de desmatamento, onde os homicídios atingem uma taxa de 37,1 mortes para cada grupo de 100 mil habitantes e indica disputas, conflitos fundiários e tensões. Nas áreas de floresta, a taxa de mortes é bem menor, de 24,9 mortes para cada grupo de 100 mil habitantes.
Ou seja, o avanço do desmatamento e a intensificação de conflitos fundiários resulta também no crescimento da violência letal, considerando outros dados recentes divulgados por organizações que atuam na agenda ambiental. O relatório do MapBiomas de 2020, por exemplo, aponta crescimento do desmatamento nos seis biomas brasileiros em 2020, resultando na perda de 24 árvores por segundo em 2020. Especificamente na Amazônia, o aumento é de 9%, e a entidade calcula que 99,4% das áreas desmatadas apresentam sinais de irregularidade, ou seja, são fruto de ações ilegais.
Já o Sistema de Alerta de Desmatamento (SAD) do Imazon mostra que o desmatamento na Amazônia cresceu 39% de janeiro a setembro de 2021 quando comparado ao mesmo período do ano anterior, o pior índice em 10 anos. Já o último relatório da CPT mostra o ano de 2020 como o que teve maior número de conflitos no campo desde 1985. Segundo a entidade, houve crescimento de 8% do número de conflitos no campo em todo o país em 2020, quando comparado a 2019. O relatório mostra ainda que a região da Amazônia Legal concentrou 62,4% dos conflitos por terra no Brasil em 2020.
Dito de outra forma, em áreas sob pressão do desmatamento, a violência explodiu na Amazônia. Mas há outros fatores que ajudam a compreender essa explosão. O primeiro é que a violência cresce pela sobreposição de tais crimes com opções político-institucionais frágeis e com o domínio territorial cada vez mais amplo da região pelas facções de base prisional que passaram a utilizá-la e disputá-la como rota estratégica para o tráfico internacional de drogas, armas, animais e pessoas.
No que diz respeito às facções de base prisional, é possível reconhecer que a própria geografia da região contribui para essa sobreposição com os crimes ambientais, visto que as rotas utilizadas, sejam fluviais, rodoviárias e aéreas, muitas vezes são as únicas existentes em determinadas territorialidades, contribuindo para que o mesmo modal seja utilizado com diferentes finalidades. Hoje existem na região mais de vinte facções que disputam e dominam territórios, muitas delas com conexões com as redes de narcotráfico e de armas que as ligam às facções e grupos armados dos países fronteiriços ao Brasil.
É nesse contexto que a região se torna tão estratégica para o narcotráfico, com atuação de grupos criminosos brasileiros e de outros países. O estabelecimento de organizações criminais nos estados da região, bem como a expansão de grupos criminosos do Sudeste (PCC e CV) e suas alianças com os grupos locais impuseram novos desafios aos territórios. A proximidade dos estados da região com os principais produtores de cocaína do mundo fez do Rio Solimões e sua conexão com outros rios uma rota para o escoamento de drogas que partem do Peru, da Bolívia e da Colômbia, e que tem como destino tanto o mercado brasileiro quanto o internacional.
De igual forma, outra conclusão do estudo é que os déficits de governança e de estrutura do aparato de justiça e de segurança pública, sobretudo na capacidade de investigação criminal dos ilícitos/delitos cometidos na região, deixam a região refém das alianças e conflitos próprios da dinâmica do crime organizado e das suas sobreposições e trocas com crimes ambientais (desmatamento, garimpo ilegais, grilagem de terras, etc).
De acordo com a publicação, dos seis estados brasileiros com efetivos policiais e de bombeiros com menos de 10 mil pessoas, quatro localizam-se na Amazônia. Mais que isso. Em todos os nove estados amazônicos, as Polícias Civis, essenciais à investigação criminal, têm efetivo inferior a 3 mil pessoas. O Acre, onde existem ao menos quatro grupos ligados ao negócio da droga mapeados, só tem oitenta delegados para atender todas as ocorrências do estado e avaliar se as transformam em inquéritos, bem como para chefiar investigações (o que significa que o estado tem apenas cerca de vinte delegados por turno).
Enquanto isso, a opção do governo federal tem sido militarizar o combate aos crimes ambientais sem levar em consideração o domínio e a influência das facções. Entre 2018 e 2021, houve 108 operações da Força Nacional de Segurança Pública na Amazônia, sendo 41 apenas no Pará. Já entre 2018 e 2019, foram cinco operações de GLO exclusivas na Amazônia, incluindo a operação Verde Brasil 1, que custou 124,5 milhões de reais aos cofres federais. Se somarmos a esse valor o custo das Operações Verde Brasil II e Samaúma, ocorridas entre 2020 e 2021, que custaram 460 milhões de reais, o Governo Federal gastou 584,5 milhões de reais durante a gestão de Jair Bolsonaro com operações de GLO na Amazônia e não conseguiu reduzir a violência e os crimes ambientais ou retomar territórios das facções nas áreas remotas da Floresta.
Em resumo, o estudo é explícito em mostrar que a dinâmica da violência letal na região amazônica diferencia-se do restante do país pela acentuada interiorização da violência, agravada pela intensa presença de facções do crime organizado e pelos déficits de governança e estrutura do aparato de segurança pública. Assim, o governo Bolsonaro erra feio mais uma vez, pois a mera militarização e/ou envio de forças de segurança de fora da região para suprir demandas pontuais de comando e controle não só é extremamente cara como também é pouco efetiva.
É preciso investir no fortalecimento de mecanismos integrados de comando e controle, que conectem esferas federal e estadual e, em especial, diferentes órgãos e Poderes (Polícias, MP, Defensorias, Ibama, ICMBio, Judiciário, entre outros). Para garantir soberania e desenvolvimento, a lógica que permitirá redução de crimes e violência deve ser a de construção de capacidades institucionais e não de ocupação militarizada e temporária do território. E, para tanto, é preciso sair da retórica da guerra para assumir compromissos efetivos com cooperação e soberania verde.
Renato Sérgio de Lima
Professor da FGV EAESP e diretor presidente do Fórum Brasileiro de Segurança Pública
Samira Bueno
É socióloga e diretora-executiva do Fórum Brasileiro de Segurança Pública. Tem mestrado e doutorado em administração pública e governo pela FGV
David Marques
Coordenador de Projetos do Fórum Brasileiro de Segurança Pública
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