terça-feira, 9 de novembro de 2021

Palácio Capanema

A PEDRA FUNDAMENTAL E A RUÍNA
Um marco do modernismo mundial entra nos planos de demolição da cultura do governo Bolsonaro

Fernando Serapião, piaui, Edição 181, Outubro 2021

Lá embaixo, no jardim suspenso do Ministério, a estátua de mulher nua de Celso Antônio, reclinada, conserva entre o ventre e as coxas um pouco de água da última chuva, que os passarinhos vêm beber, e é uma graça a conversão do sexo de granito em fonte natural. Utilidade imprevista das obras de arte. (Carlos Drummond de Andrade)

O bafo do verão carioca adentrou a cabine da aeronave da Air France no instante em que o comissário de bordo destravou a porta do Caravelle recém-chegado de Paris. Eram 9h50, e o calendário marcava o penúltimo sábado de 1962. No pátio de pouso do Galeão, uma comitiva liderada pelo embaixador francês aguardava o desembarque do arquiteto franco-suíço Le Corbusier – seu nome de batismo era Charles Édouard Jeannéret-Gris. Enquanto a maioria dos passageiros viajava com a intenção de passar o Natal no país, Le Corbusier, desdenhando a cerimônia religiosa, tinha outro objetivo: encontrar no Brasil um solo fértil para sua obra vanguardista.

Era a terceira visita que fazia ao país. Na primeira, em 1929, nada foi fecundado. Mas na segunda, sete anos depois, o arquiteto deixou um fruto precioso: um prédio desenhado com sua consultoria, considerado por críticos estrangeiros o edifício público moderno mais importante das Américas. No intervalo entre 1936 e 1962, quase tudo havia mudado no mundo. A começar pelo meio de transporte, pois foi um dirigível, o Graf Zeppelin, que trouxe o arquiteto ao Rio de Janeiro nos anos 1930. O próprio Le Corbusier não estava imune ao tempo: já não tinha mais a energia dos seus 48 anos, como na célebre segunda visita.

Quem desembarcava agora no Galeão era um senhor de 75 anos, mas que não dera por encerrada a sua carreira. Apesar de seus feitos mundo afora, devia estar consciente do pouco tempo que lhe restava e talvez carregasse no peito a angústia de não ter feito tudo que ambicionava, embora houvesse desfrutado de pequenas conquistas. Tanto assim que desceu do Caravelle segurando orgulhosamente uma foto colorida de Chandigarh, a cidade projetada por ele alguns anos antes na Índia.

Ao sair do avião, o vento despenteou os poucos fios brancos que lhe restavam na cabeça. Salvo os sinais da idade, como a calvície, seu physique du rôle não mudara. Alto e elegante, de terno e gravata-borboleta, os óculos de grosso aro negro que lhe valeram o codinome “o corvo”, Le Corbusier parou no alto da escada da aeronave e observou a paisagem.

Muita coisa também mudara no Brasil nos 26 anos que separavam a sua nova visita da anterior. Para ficar somente nas questões arquitetônicas, os imberbes colegas cariocas que Le Corbusier havia orientado em 1936 agora gozavam de prestígio internacional. Sobretudo Lucio Costa e Oscar Niemeyer, quinze e vinte anos mais novos que ele, mas autores, talvez para sua inveja, do urbanismo e dos prédios da nova capital do país, Brasília.

Quando o arquiteto pisou no solo brasileiro, o embaixador francês logo perguntou: “E o senhor Costa, onde está?” Como de hábito, Lucio Costa não estava à frente do proscênio. Encontrava-se um pouco atrás da comitiva, em segundo plano, até ser trazido à frente das pessoas que aguardavam Le Corbusier no Galeão.

O visitante foi enlaçado afetuosamente por Lucio Costa, que o recepcionara também em 1929. Le Corbusier fez questão de mostrar ao colega a foto de Chandigarh. Competitivo, o gesto parecia querer dizer: “Vocês, os discípulos, fizeram sua capital, mas, eu, o mestre, não fiquei atrás…” Ao caminhar em direção à alfândega, Le Corbusier foi assediado por estudantes e jornalistas. Para fugir das perguntas, elogiou a natureza exuberante do Rio de Janeiro, que sempre lhe impressionou.

A evasiva não o impediu de escutar perguntas incômodas, como a do repórter que fez a indagação que todos queriam fazer, sobre o que achava de Brasília. “Não tenho opinião a respeito nem quero me imiscuir nos problemas dos outros, pois tenho bastante dificuldade com os meus próprios”, respondeu, com a mesma aspereza de seu concreto. A pergunta seguinte lhe daria uma razão extra para aumentar o ódio que tinha de jornalistas: seria verdade que, antes do concurso do Plano Piloto de Brasília, ele tinha escrito uma carta ao presidente Juscelino Kubitschek oferecendo-se para projetar a nova capital? O recém-chegado tentou desconversar, enquanto Lucio Costa segurava o sorriso embaixo do espesso bigode, pois sabia da existência da carta. Diante da insistência do jornalista, o visitante replicou, lacônico: “Oh, mas isso é história…”

Com o passaporte carimbado, Le Corbusier se deu conta de que sua mala estava sendo levada para o carro de Lucio Costa. “É um homem precioso”, comentou, sobre o colega brasileiro, enquanto o carregador acomodava a bagagem no automóvel, um Hillman bege.

O que trazia Le Corbusier novamente ao Brasil era o convite do governo francês para que desenhasse os prédios da embaixada e da chancelaria na nova capital. Havia ainda duas outras oferendas na mesma cidade, articuladas por brasileiros. Mas a viagem resultaria num tremendo fracasso: nenhum desses projetos foi construído. O único consolo para Le Corbusier, ao fim da jornada, foi a oportunidade de visitar Brasília, cidade responsável por um novo capítulo do urbanismo mundial. Ele também viu de perto os edifícios no Rio traçados por seus discípulos e, mais importante do que tudo, matou a vontade de conhecer o edifício-sede do Ministério da Educação e Saúde, em cujo projeto havia colaborado em 1936.

Amalgamando disposição e ansiedade, pediu para visitar o prédio antes mesmo de ser levado ao Hotel Glória, onde se hospedaria. O trajeto entre o Aeroporto do Galeão e o Centro levou pouco menos do que uma hora e foi testemunhado por dois arquitetos com menos de 30 anos acomodados no banco de trás do automóvel inglês de Lucio Costa: Maria Elisa Costa, filha do arquiteto brasileiro, e Ítalo Campofiorito, um assistente de Niemeyer escalado para ser o cicerone do visitante. 

Ao chegar ao prédio, na Rua da Imprensa, número 16, Lucio Costa, que trabalhava ali no oitavo andar, estacionou o Hillman na alça destinada ao ministro e o quarteto desceu. Todos caminharam em direção ao pilotis – o conjunto das colunas que sustentam um edifício –, tão lentamente quanto quem degusta com parcimônia o doce preferido. Os jovens mantinham, respeitosamente, a distância cerimonial de três ou quatro passos, para deixar restrita a conversa entre as duas lendas da arquitetura.

Além do pilotis, o prédio continha outros ingredientes do ideário corbusiano, como o teto-jardim, as fachadas livres e os brise-soleils, mas tudo estava temperado à brasileira. Ao se aproximar de um dos famosos pilares com 10 metros de altura, Le Corbusier, ladeado por Lucio Costa, diminuiu o ritmo ainda mais, até postar-se ao lado de uma das peças estruturais que alicerçou a moderna cultura arquitetônica brasileira. Enquanto o anfitrião discorria sobre o edifício, Le Corbusier levantou o braço lentamente e, como se estivesse cumprimentando um filho do qual sabia tudo a respeito, mas que nunca havia abraçado, deu incontáveis palmadas carinhosas no pilar e depois o acariciou, sentindo a materialidade do granito como se fosse um ser vivo. Emocionado, o mais discursivo dos arquitetos de seu tempo só conseguiu dizer uma frase: “É lindo, é lindo…”


 

“Inacreditável.” Foi com esse título que Maria Elisa Costa, hoje com 86 anos e a única testemunha viva da visita de Le Corbusier ao prédio do Ministério da Educação e Saúde, abriu sua postagem no Facebook. Publicado na metade de agosto passado, o texto foi das primeiras reações a uma informação veiculada no mesmo dia pelo jornal Valor Econômico e logo replicada em outros veículos. Sem se ater à data macabra – era sexta-feira, 13 de agosto –, o jornal informou, em texto sumário, que uma das “estrelas do ‘feirão de imóveis’” públicos na lista de 2 263 estabelecimentos ofertados ao mercado pelo governo federal era o Palácio Gustavo Capanema, nome atual do antigo edifício do Ministério da Educação e Saúde. Maria Elisa Costa alertou, indignada com a notícia do leilão, que o prédio “foi um marco definitivo na consolidação da arquitetura moderna não apenas no Brasil, mas no mundo. Ignorar este fato é um atestado de ignorância que o Brasil não merece”.

A repercussão internacional não tardou, e alguns dos principais críticos e historiadores da matéria tomaram contundentes posições, prontamente divulgadas no Brasil pelo site de arquitetura Vitruvius.
Para o francês Jean-Louis Cohen, “o edifício não é de forma alguma um bem imobiliário que pudesse ser mais rentável, como o atual governo brasileiro parece querer. Não é simplesmente um capital a ser valorizado, mas uma obra de arte de alcance universal, que não pode ser recheada de atividades banais e comerciais”. 

O historiador inglês da arquitetura William Curtis declarou que “a ideia proposta de entregar esta obra-prima aos interesses imediatistas da propriedade privada constitui um ataque ideológico aos valores cívicos e à própria história da nação, mais um ataque desse regime contrário à esfera pública e aos valores progressistas em geral, seja na escala das florestas tropicais, seja no da saúde pública nacional. Tudo deve ser feito para proteger esta obra-prima universal de um ato de vandalismo que ignora os valores da memória de longo prazo na sociedade brasileira.”

Já o inglês Kenneth Frampton escreveu ser “difícil imaginar qualquer evento neoliberal mais bárbaro do que a decisão peremptória de leiloar o Ministério da Educação e Saúde no Rio de Janeiro”.
A notícia também contaminou o ambiente cultural brasileiro, uma vez que a importância do prédio transpassa o mundo da arquitetura. 

Adriana Varejão publicou em sua página no Instagram uma imagem dos azulejos que Candido Portinari criou para o edifício. Lacônica, a artista plástica – cuja obra alimenta-se do imaginário do próprio azulejo – nomeou o edifício sem tecer comentários, ação prontamente realizada por seus indignados seguidores, que escreveram frases como “não tem preço” ou “Patrimônio nacional! Não se vende!”. Perante o absurdo, as pessoas propuseram campanhas de mobilização, abaixo-assinados e até um protesto diante do edifício.

Em paralelo, a informação contaminou a esfera política, mobilizando parte da oposição ao governo. O deputado federal Marcelo Freixo, do PSB do Rio de Janeiro, foi um dos que se manifestaram, escrevendo que o edifício “nos remete a Oscar Niemeyer, Candido Portinari, Burle Marx e tantos outros. Paulo Guedes, por favor, recolha-se a sua insignificância”.

Vender bens federais supostamente ociosos é um dos planos de governo de Guedes, ministro da Economia, com o objetivo de tornar a máquina pública mais eficiente e arrecadar fundos. Se feita com critério e sapiência, a venda de imóveis públicos subutilizados pode ser benéfica à sociedade. É um tipo de iniciativa comumente identificada com as ações da direita liberal, mas vale lembrar que a esquerda, em geral avessa à venda de ativos públicos, deu recentemente um exemplo notável dos benefícios sociais que podem ser extraídos disso.

Refiro-me ao Réinventer Paris, projeto lançado pela atual prefeita da capital francesa, a socialista Anne Hidalgo. A prefeitura ofertou a venda para a iniciativa privada de 23 imóveis, desde prédios históricos até terreno aéreo (gleba situada sobre um trecho do anel viário). Justamente por dizer respeito a bens públicos, a venda não se ateve ao maior valor a ser pago: o objetivo foi potencializar o tecido urbano, estimulando o setor privado a inovar. Assim, a venda dos imóveis estatais subutilizados em Paris foi realizada para os empreendedores que apresentassem os projetos mais inovadores. Cada propriedade foi disputadíssima, e as propostas levaram em conta desde arranjos sociais complexos até experimentos ambientais de vanguarda.

Cada consórcio participante era composto necessariamente por dois braços. De um lado, investidores e agentes imobiliários; de outro, arquitetos, com importantes profissionais de vários países. Os vencedores foram escolhidos por um comitê do qual fazia parte o conselho de moradores de cada bairro impactado pela venda. Houve até a participação de um consórcio franco-brasileiro, o Urbem/Triptyque, que enviou doze propostas, duas das quais foram desenhadas pelo brasileiro Paulo Mendes da Rocha e pelo chileno Alejandro Aravena, ambos ganhadores do Pritzker, o principal prêmio de arquitetura do mundo – mas nenhuma delas foi escolhida.

A ação de Hidalgo foi lançada sete meses após ela assumir o governo (em 2014) e, com o sucesso da ação e a reeleição da prefeita (2020), já foi replicada mais duas vezes. A iniciativa demonstra que, para além das questões ideológicas, a venda de imóveis públicos pode ser benéfica ao bem comum. Mas um projeto assim é evidentemente muito complexo e sofisticado para ser empreendido pela gestão do presidente Jair Bolsonaro, que, provando mais uma vez sua ineficiência, levou mais da metade do mandato, ou seja, dois anos e meio, para começar a tirar do papel a proposta de venda simples e elementar dos bens da União, por meio de leilões pelo melhor preço.

Mas não cito a iniciativa parisiense como exemplo do que deveria ser adotado para o Palácio Capanema, que jamais deve ser alienado, tendo em vista a sua importância simbólica para o Brasil. Como definiu o deputado federal Marcelo Calero (Cidadania-RJ), ex-ministro da Cultura, o edifício é um expoente do processo civilizatório brasileiro. “Apenas uma gestão totalmente descolada de nosso arcabouço civilizatório e cultural poderia propor um absurdo desses”, escreveu ele, em uma rede social.



Uma vez que o Palácio Capanema se tornou agora objeto de uma guerra cultural, é fundamental lembrar outra batalha, a da sua própria construção, que Lucio Costa chamou de “guerra santa”. A expressão não tem a ver com princípios religiosos, como os que alicerçam a pauta conservadora dos costumes – um dos pilares do atual governo. Para Lucio Costa, “guerra santa” era somente uma metáfora do enfrentamento entre modernos – os arquitetos novos e progressistas, entre os quais ele se alinhava – e acadêmicos, que defendiam estilos retrógrados.

É evidente que a “guerra santa” da arquitetura envolvia ideologias políticas. No momento do início da construção do edifício, o governo Getúlio Vargas edificava e planejava outros prédios em áreas vizinhas, como os dos ministérios da Fazenda e do Trabalho. As paredes falam para aqueles que sabem ouvir. A diferença da arquitetura escolhida em cada ministério expõe de maneira clara e palpável as idiossincrasias e incongruências do próprio governo de Getúlio, ora avançado, ora retrógrado, a depender da situação. O edifício do Ministério da Educação e Saúde foi a materialização da face avançada da era Vargas e, em grande medida, isso pode ser creditado ao político Gustavo Capanema, que comandou a pasta entre 1934 e 1945.

Antes do Estado Novo (de 1937 a 1945), o governo instituiu a organização de concursos de arquitetura para a escolha de projetos de edifícios públicos. Tratava-se de uma maneira democrática de definir, por meio de seus prédios, que “cara” o governo de Getúlio teria e, ao mesmo tempo, de evidenciar que o novo regime não tinha arquitetos protegidos. A proposta, para o bem ou para o mal, não prosperou. E a prova do seu fracasso é a própria história conturbada do projeto do edifício do Ministério da Educação e Saúde.

Em abril de 1935, Capanema lançou um concurso de anteprojetos aberto a todos os arquitetos brasileiros. Houve 34 inscritos, e a vitória coube ao cearense Archimedes Memória, líder de um dos mais movimentados escritórios do Rio de Janeiro, então capital federal. Com 42 anos de idade, ele era o grande rival de Lucio Costa, que tinha nove anos a menos e fora seu aluno e estagiário, mas se debandara para a trincheira do moderno, opondo-se às escolhas de Memória, que enfileirava a artilharia dos acadêmicos.

Chamado pelos modernos de “bolo de noiva” e de outros apelidos pouco lisonjeiros, o projeto de Memória era conservador – simétrico, escalonado e em estilo marajoara. Isso mesmo, marajoara, pois se relacionava ao grafismo geométrico da cultura pré-histórica da Ilha de Marajó. O uso bizarro e superficial dessa arte ancestral tinha uma explicação frágil: o nacionalismo, numa espécie de variante canhestra do neocolonial, corrente arquitetônica dos anos 1920. Os adeptos do neocolonial, que haviam sido inovadores em seu tempo, defendiam as raízes nacionais em oposição ao ecletismo exótico predominante no início do século XX, que amalgamava todos os estilos clássicos europeus.

Capanema presidiu o júri, composto por técnicos alinhados aos acadêmicos, e não estava certo de que a escolha tinha sido a mais acertada. Como gestor público, ele desejava um edifício que alicerçasse as ambições da pasta. Apostaria no marajoara? Por sorte, acabou convencido por amigos e pela ala reformista de seu gabinete que deveria encomendar outro projeto a Lucio Costa – o mais destacado entre os jovens projetistas modernos. Entre os conselheiros de Capanema estavam aqueles que podem ser considerados os padrinhos do edifício, quatro nomes que integram o alto escalão da cultura moderna brasileira: Carlos Drummond de Andrade, Mario de Andrade, Manuel Bandeira e Rodrigo de Melo Franco de Andrade, que viria a se tornar, em 1937, o primeiro diretor do Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Sphan).

Assim, Capanema comprou a briga pelo moderno, apostando nesse movimento como alavanca para a gestão que planejava. Pagou o prêmio em dinheiro a Archimedes Memória, mas não o contratou, situação prevista no edital. O vencedor protestou e, na qualidade de diretor da Escola Nacional de Belas Artes, cobrou uma posição de Getúlio Vargas. Memória tinha certo acesso ao presidente e era ligado à Ação Integralista Brasileira, um movimento de inspiração fascista que dava apoio ao governo. Ele escreveu uma carta a Getúlio, na qual disse que Lucio Costa era filiado à corrente moderna, cujo núcleo seria uma “célula comunista”. Temperando a guerra santa com temas religiosos, contou que Lucio Costa era sócio de Gregori Warchavchik, “judeu russo de atitudes suspeitas”. Getúlio não deu bola para o festival de fake news. Tudo isso aconteceu antes do Estado Novo.

Em discrepância com o lado progressista de Capanema e seu gabinete, o próprio presidente, apesar de fazer vista grossa a Archimedes Memória, não descuidava dos laços com as forças reacionárias. A posição pendular do governo se espelhava também na arquitetura, bastando lembrar que no projeto do edifício-sede do Ministério da Fazenda a história correu ao contrário. 

O vencedor do concurso apresentou uma proposta mais inclinada ao moderno, mas o ministro Arthur de Souza Costa enquadrou-o. Quando os desenhos estavam quase prontos, Souza Costa foi ao escritório de arquitetura, tirou do bolso do paletó uma foto com a imagem de um edifício neoclássico italiano e disse ao projetista: “É assim que eu quero a fachada.” O resultado é o mastodonte horrendo, sem pé nem cabeça, que polui com colunas clássicas a vizinhança do Palácio Capanema.


Os planos para o edifício do Ministério da Educação e Saúde seguiram em frente com Lucio Costa, que, entendendo se tratar de um projeto coletivo, preferiu não fazer sozinho: propôs formar uma equipe com arquitetos alinhados ao moderno. Nesse momento, entraram em cena mais cinco personagens. Dois deles também haviam participado do concurso: Affonso Eduardo Reidy e Jorge Machado Moreira, que impressionaram Capanema com suas propostas vanguardistas. Carlos Leão era sócio de Lucio Costa. Ernani Vasconcellos foi incorporado por Moreira, seu primo e associado. E, por fim, Oscar Niemeyer, que entrou para a equipe após protestar com Lucio Costa, argumentando que merecia participar do grupo, pois também colaborava em seu escritório, como Vasconcellos. Assim, devemos a Vasconcellos, o mais apagado dos seis, a inclusão de Niemeyer.

A equipe trabalhou seis meses no projeto, mas Lucio Costa ficou inseguro com o resultado e convenceu Capanema e Getúlio a contratarem Le Corbusier – o papa da arquitetura moderna – para uma consultoria. Como o próprio Getúlio havia promulgado pouco tempo antes uma lei proibindo a atuação de arquitetos estrangeiros no país, Le Corbusier aceitou ser remunerado oficialmente não pela consultoria, mas por palestras que faria no país.

A pedido de Capanema, ficou acertado que Le Corbusier também trabalharia com os arquitetos brasileiros no projeto para a Universidade do Brasil, que acabou não saindo do papel. É mais um caso que acrescenta contradições à era Vargas, pois, àquela altura, Capanema já havia pedido ao arquiteto de Benito Mussolini, o italiano Marcello Piacentini, que estudasse um projeto para o mesmo campus universitário.

No dia seguinte à sua chegada de Zeppelin, Le Corbusier examinou o projeto do ministério criado pelo grupo dos seis. Elogiou a aplicação de seus conceitos, mas fez críticas à simetria da planta em formato de U, ao caráter maciço, ao desenho do quebra-sol e a aspectos acadêmicos remanescentes na proposta. Por achar que as duas alas (cada perna do U) eram muito pesadas, parecendo dois braços engessados, apelidou o projeto dos brasileiros, com ironia, de “múmia”.

O lote escolhido para a construção, uma quadra recém-urbanizada resultante do desmonte do Morro do Castelo, não pareceu adequado para Le Corbusier, pois a visibilidade do prédio seria prejudicada pelos futuros vizinhos. Por iniciativa própria, ele saiu em busca de alternativas e só ficou satisfeito ao encontrar, após dez dias de busca, um lote em frente à Praia de Santa Luzia, que seria aterrada duas décadas mais tarde para dar lugar ao Aterro do Flamengo. Teimoso, ele desenvolveu um desenho para a nova área, que no entanto não pertencia ao governo federal, mas à prefeitura.

Nos seus 33 dias cariocas, Le Corbusier hospedou-se no Hotel Glória e madrugava para poder se banhar nas águas da Baía da Guanabara, após atravessar a Avenida Beira-Mar (desaparecida com a construção do Parque do Flamengo). Era o primeiro a chegar ao escritório e esperava os demais com impaciência, repreendendo-os pelo atraso. O QG da equipe ficava num edifício novo, em estilo protomoderno, com salas pequenas e janelas com persianas de enrolar, a 450 metros do local onde seria construído o Ministério da Educação e Saúde.

O projeto da Universidade do Brasil corria em paralelo, e Le Corbusier proferiu ainda oito palestras. Exausta com a disposição do visitante, a equipe, apesar disso, o acompanhava em jantares à beira-mar, onde ele comia peixe e proibia conversas sobre arquitetura. Invariavelmente, a noite terminava em bares e cabarés da Lapa – sem a companhia de Lucio Costa –, onde Le Corbusier deslumbrava-se com as negras, que registrou em seus cadernos de desenho. Também conheceu a Ilha de Paquetá e visitou a favela de Santa Teresa – que conhecera na primeira viagem, em 1929 –, onde fotografou um menino montado num porco.

Por desenhar muito bem, Niemeyer “passou a ser o sacristão de Le Corbusier”, que “não fazia nada sem o Oscar”, declarou Capanema. O jovem aprendiz, então com 28 anos, além de ser a companhia mais frequente nas noitadas da Lapa, fazia a arte-final de todos os desenhos do mestre franco-suíço. Com isso, absorveu o ensinamento de Le Corbusier.

Poucos dias antes de deixar o país a bordo de um navio de bandeira italiana, Le Corbusier respondeu a uma carta de Capanema detalhando o projeto do prédio do ministério no lote da Praia de Santa Luzia. Mas o ministro argumentou que a alternativa não era viável e solicitou que ele fizesse uma adaptação para o terreno original, na Rua da Imprensa. Com pouco tempo e insatisfeito, o arquiteto atendeu ao contratante. Depois de sua partida, os brasileiros abandonaram a “múmia” e desenvolveram uma nova proposta baseada na que Le Corbusier havia feito na última hora, cheia de problemas.

A equipe trabalhou nos seis meses seguintes – até Niemeyer desabrochar. Em dezembro de 1936, quando o projeto estava quase todo detalhado, ele, timidamente, apresentou a Carlos Leão um esboço com uma nova proposta para o prédio. Quando Lucio Costa chegou ao escritório, Leão contou o que havia feito o pupilo, que, envergonhado, amassou o papelote e jogou pela janela do sétimo andar, onde todos trabalhavam. Mas Lucio Costa insistiu em ver o desenho, e o esboço foi recuperado. O projeto foi aceito, detalhado e é hoje o Palácio Capanema – nome dado após a morte do ministro, em 1985, por sugestão do próprio Niemeyer.

Em linhas gerais, Niemeyer sintetizou e reinterpretou as ideias de Le Corbusier, propondo modificações fundamentais. Deslocou o bloco mais alto – o prédio de catorze andares – para o meio da quadra (antes estava paralelo a uma das ruas), simplificou seu volume, tornando-o geometricamente mais potente, e elevou a altura do pilotis para os famosos 10 metros. Fora isso, já colocou em prática sua elegância ímpar, com proporções muito mais graciosas que as do mestre.

Além da base do pensamento corbusiano, o desenho incorporou materiais usados em construções luso-brasileiras, que, apesar da familiaridade de Lucio Costa com o assunto (devido ao seu flerte com o estilo neocolonial), foram sugeridos por Le Corbusier. “Quem vem de fora é sempre mais sensível e repara. Nós não estávamos pensando nisso, aquilo era tão só um revestimento que existia aqui. E ele [Le Corbusier] já veio com outra riqueza de abordagem”, contou Lucio Costa em entrevista. Como os azulejos nos notáveis painéis criados por Candido Portinari e Paulo Rossi e o uso do gnaisse – conhecido como pedra de galho, granito que Le Corbusier dizia parecer pele de onça – para revestir os pilares. O azul que predomina em alguns detalhes remete às construções do tempo do Brasil Colônia. E os jardins concebidos por Roberto Burle Marx dão à arquitetura parte de seu tempero tropical.

O desenho se caracteriza por uma grande sensibilidade urbana. As ideias urbanísticas de Le Corbusier contrastavam com o modelo da cidade-quarteirão, a quadra tradicional da cidade europeia feita com maciços de prédios sem recuo. Como a vizinhança do ministério foi construída conforme as normas do Plano Agache – feito pelo arquiteto francês Alfred Agache para remodelar áreas do Rio na década de 1920 –, que tinha a alma da cidade-quarteirão, o Palácio Capanema se destaca como uma célula do urbanismo moderno dentro da cidade tradicional por conter espaços livres, em contraste com os vizinhos alinhados à rua.

Outro destaque impressionante são as duas fachadas maiores. Do lado Sul, onde não bate sol, a face é inteiramente de vidro, a primeira do mundo a ser construída dessa maneira em tal escala – não havia nada parecido em Nova York, Chicago, Londres ou Paris. Na fachada Norte, por sua vez, os vidros são protegidos da forte incidência da luz solar por anteparos móveis, conhecidos como brise-soleil (ou quebra-sol), uma invenção corbusiana que nunca havia sido colocada em prática. Graças a Jorge Moreira – o exímio detalhista do grupo dos seis –, os brises móveis possuem um requintado funcionamento.

Por isso tudo, o grupo dos seis inaugurou a vertente da escola brasileira de arquitetura, que agregou a sensibilidade nacional às lições de Le Corbusier. Pela excelência e o cuidado da construção, o edifício alicerçou a gestão de Capanema e seu pilotis foi chamado por pesquisadores de “colunas da educação”. Tornou-se, assim, não só a pedra fundamental da arquitetura moderna no país – e de toda sua relação com as artes plásticas e o paisagismo –, como o emblema público do ministério.



A construção começou em 1937 e demorou oito anos, atravessando a Segunda Guerra Mundial. Foi acompanhada com lupa por Capanema. Pouco antes de ficar pronto, o projeto foi uma das estrelas da exposição Brazil Builds, no Museu de Arte Moderna (MoMA), em Nova York, sendo louvado pelo curador norte-americano como o edifício público mais importante do continente. 

Durante a guerra, Le Corbusier teve poucas notícias da construção e surpreendeu-se ao ver uma foto do prédio pronto. Ao editar um novo volume de suas obras completas, incluiu um croqui seu a partir da versão elaborada pelo grupo dos seis, dando a entender que era o pai da criança. Em carta ao antigo mestre, escrita no final de 1949, Lucio Costa não deixou o assunto passar batido: “O esboço feito a posteriori, baseado nas fotos do edifício construído, e que você publica como se se tratasse de uma proposição original, nos causou, a todos, uma triste impressão.”

Apesar de construído num país distante do centro do debate arquitetônico, o edifício colaborou na discussão internacional a respeito da monumentalidade da arquitetura moderna. Em grande medida, essa arquitetura tinha como fundamento a questão utilitária, expressa, por exemplo, na proposição “a casa é uma máquina de morar”, do próprio Le Corbusier. Mas no prédio do ministério, em que afloraram pela primeira vez as características da obra de Niemeyer, o funcionalismo deixou de ser a única questão e, muito menos, a predominante. 

Para não alimentar a anedota que trata Niemeyer como escultor, é importante ressaltar que ele foi um exímio organizador de programas arquitetônicos e que o Palácio Capanema é perfeitamente funcional. O fato é que a monumentalidade moderna, graças a essa construção, ganhou também sentido simbólico, por se tratar no caso de um edifício público, fruto da ambição de um ministério que agregava temas fundamentais ao país.


Em menos de uma década, e antes mesmo de o prédio ser inaugurado oficialmente, em 1945, a carreira de Niemeyer deslanchou: o membro júnior da equipe, último nome a ser incluído, foi consagrado como o principal arquiteto do país, figurando entre as promessas do cenário internacional.
Ao ficar pronto, no apagar das luzes da era Vargas, a construção foi louvada em poema de Vinicius de Moraes. Sem imaginar que o edifício acabaria num feirão de imóveis, o poeta escreveu: Sombras projetadas/Em mansuetude/Sublime colóquio/Da forma com a eternidade. 

Quem deu o mote do poema foi o escritor Pedro Nava, que numa passagem de Beira-Mar, o quarto volume de suas memórias, desenrolou o fio condutor que leva do Palácio Capanema até Brasília:
Assim como na pintura italiana o Rafael não seria possível sem a anterioridade de Sandro Botticelli, nem este sem a precedência do Giotto di Bondone – sem o edifício do Ministério da Educação não seria possível o conjunto monumental da Pampulha [projeto de Niemeyer inaugurado em 1944] e tampouco sem este o prodígio do Cerrado que é a Brasília do Nonô Kubitschek.

Parte dos modernos não recebeu Brasília com o mesmo entusiasmo que dedicou ao edifício do ministério. Uma coisa era uma célula moderna no meio da cidade tradicional, o que todos louvaram. Outra, um novo mundo por completo. Carlos Drummond foi um dos que trocaram o entusiasmo pela crítica. Ele vivenciou como poucos o dia a dia do ministério após a inauguração, por ser chefe de gabinete de Capanema e depois funcionário do Sphan, que funcionava no local.

Assim que começou a frequentar o prédio, ainda em 1944, Drummond escreveu em seu diário (publicado em O Observador no Escritório): “Dias de adaptação à luz intensa, natural, que substitui as lâmpadas acesas durante o dia; às divisões baixas de madeira, em lugar de paredes; aos móveis padronizados (antes, obedeciam à fantasia dos diretores ou o acaso do fornecimento).” Mas o ambiente moderno não foi unanimidade entre os funcionários do ministério. Um colega de trabalho chegou a desabafar: “Prefiro o antigo…” O poeta fez ainda uma observação que poderia escandalizar os puritanos da gestão Bolsonaro:


Lá embaixo, no jardim suspenso do Ministério, a estátua de mulher nua de Celso Antônio, reclinada, conserva entre o ventre e as coxas um pouco de água da última chuva, que os passarinhos vêm beber, e é uma graça a conversão do sexo de granito em fonte natural. Utilidade imprevista das obras de arte.

Como somos de carne e osso, e não de granito, Drummond registrou em poema do livro O Fazendeiro do Ar (1954) um encontro amoroso com sua amante, tendo como cenário a deslumbrante escada entre o térreo e a sobreloja do prédio: Na curva desta escada nos amamos,/nesta curva barroca nos perdemos…
Quando o governo planejava a mudança para o Planalto Central, o poeta, entretanto, foi um dos que, de maneira sutil, criticaram o urbanismo de seus colegas do movimento moderno. No poema Os Materiais da Vida (no livro A Vida Passada a Limpo, 1959), em que cita materiais de construção anunciados na revista de arquitetura Módulo, dirigida por Niemeyer, ironizou o que seria o amor na nova capital: Drls? Faço meu amor em vidrotil/nossos coitos são de modernfold/até que a lança de interflex/vipax nos separe […].

E Le Corbusier, afinal, o que achou de Brasília? Segundo relatou Ítalo Campofiorito, o rapazote escalado como cicerone, o mestre aprovou. Enquanto percorria a cidade, o arquiteto fez uma observação curiosa. Disse que era um camponês – “um bruto” – e que os brasileiros são delicados. Sua sensibilidade identificou delicadeza na construção daquele Brasil moderno, uma utopia idealizada por uma geração de arquitetos e gestores públicos, um sonho que começou com o Palácio Capanema.
Isso tudo é surpreendente, visto desde o Brasil atual. Surpreendente pelo alto nível que conseguimos alcançar, pela força da imaginação política e arquitetônica que havia na época, pela capacidade que tivemos um dia de sonhar o futuro. É também surpreendente pelo contraste entre essa delicadeza anterior e o obscurantismo que floresceu no país e hoje ocupa os palácios antes iluministas.

Nos dois dias que passou em Brasília, Le Corbusier visitou os terrenos, conheceu os edifícios e passou a noite de Natal na casa do antropólogo Darcy Ribeiro. Quando voltou ao Rio, foi homenageado com um almoço no Museu de Arte Moderna (MAM), com a presença, entre outros, de Capanema, Lucio Costa e dos artistas plásticos Maria Martins e Antônio Bandeira. No fim do almoço, enquanto serviam o cafezinho, Capanema discursou. “Você é um poeta”, disse a Le Corbusier, que se emocionou com as palavras do ministro.

Depois de uma semana no país, na véspera do retorno a Paris, intuindo que não mais voltaria, Le Corbusier escreveu uma carta de despedida. Nela classificou o Brasil como um desses lugares acolhedores e generosos que gostamos de chamar de “amigo”. Escreveu que Brasília era “magnífica de invenção, de coragem, de otimismo; e fala ao coração”, ressaltando que, no mundo moderno, era um caso único. Após mencionar o ministério, finalizou: “Minha voz é a de um viajante da terra e da vida. Amigos do Brasil, deixem que eu lhes diga obrigado.”

Os tapumes que hoje cercam o Palácio Capanema, arrematados por arame farpado, não estão ali para protegê-lo de uma suposta depredação que possa sofrer durante o leilão. O edifício está fechado há sete anos para um restauro que já custou cerca de 100 milhões de reais aos cofres públicos. É provável que esse valor tenha chamado a atenção da equipe de Paulo Guedes e a levado a incluir o imóvel no feirão. Afinal de contas, se o restauro custou essa quantia, quanto será que vale o edifício?

Há outras duas hipóteses para a inclusão do Palácio Capanema: ou esse governo, no rastro de ignorância que o norteia, desconhece a importância do prédio ou simplesmente despreza o valor histórico e artístico que ele tem.

 

O Palácio Capanema não faz parte do imaginário de grande parte dos cariocas, como a Biblioteca Nacional ou a Igreja da Candelária – mas deveria. Muita gente desconhece a relevância do prédio porque o uso burocrático acaba restringindo o acesso aos visitantes. O prefeito do Rio de Janeiro, Eduardo Paes, afirmou que 99,9% das pessoas que defendem a preservação do edifício nunca chegaram perto dele. O escritor Milton Hatoum respondeu ao alcaide, dizendo que, “provavelmente, 99,9% das pessoas nunca entraram no Palácio Itamaraty (Brasília) nem na Reserva de Desenvolvimento Sustentável de Mamirauá, no Médio Solimões (AM). Mas nem por isso o projeto de Niemeyer e um pedaço paradisíaco da natureza amazônica devem ser privatizados”.

Se no passado o edifício teve grande importância na vida cultural do Rio de Janeiro – abrigando palestras e exposições, além de ter servido como sede temporária ao MAM –, nas últimas décadas foi muito pouco usufruído pelo público. Idealmente, no pós-trevas, mesmo que ainda mantenha repartições públicas ligadas à cultura, seria útil dar um uso exemplar ao pilotis, ao mezanino e ao auditório. O espaço tem vocação para ser a plataforma pública da cultura brasileira, desde que haja um governo interessado em transformar o Palácio Capanema na ponta de lança de uma sociedade mais justa, igualitária, inclusiva e também – não custa sonhar – impregnada por aquela alegria dos blocos que costumam brincar no pilotis na época do Carnaval.

Outra hipótese para a inclusão do Palácio Capanema no feirão é que talvez isso faça parte da estratégia do governo federal de demolir as pautas sociais e culturais do país. Talvez seja superestimar a inteligência alheia, mas nesse caso não estaria havendo uma articulação dos blocos de direita que sustentam Bolsonaro? De um lado, o liberalismo do Posto Ipiranga; de outro, o conservadorismo e a guerra cultural que orquestrou o desmonte do Ministério da Cultura – onde ouvimos, nos últimos tempos, desde um pronunciamento à la Goebbels (pelo secretário especial Roberto Alvim) até a comparação da cultura com o “pum do palhaço” (feita pela atriz Regina Duarte). Sem esquecer, é claro, do “Eu não conheço nada, desculpa! Me ajude”, apelo do atual secretário especial da Cultura, Mário Frias, quando perguntado sobre a arquiteta Lina Bo Bardi, na 17ª Mostra Internacional de Arquitetura da Bienal de Veneza.

Tenho um pesadelo em que imagino um passeio macabro pelo Palácio Capanema: Paulo Guedes caminha pelo pilotis, seguindo o faro do dinheiro, de mão dada com Damares Alves, que segura a Bíblia e procura o pé de goiaba no jardim de Burle Marx. À distância, Olavo de Carvalho grita palavrões, xinga Caetano Veloso e diz que tudo isso é coisa de veado. Em vez de acariciar o granito, como fez Le Corbusier, os três personagens sinistros, em meu pesadelo, estão irmanados no plano de arruinar os pilares da civilização brasileira.

Enquanto o pesadelo não passa, temos a lei. Especialistas garantem que existe um entrave jurídico na venda de imóveis públicos protegidos pelo patrimônio histórico. Segundo o artigo 11 do decreto-lei nº 25, de 30 de novembro de 1937 – mesmo ano do início da construção do Palácio Capanema –, os bens tombados que pertencem ao Estado, sejam os da esfera federal, estadual ou municipal, são inalienáveis por natureza e não podem ser vendidos a particulares: só podem ser transferidos para outra esfera. Ou seja, a venda para a iniciativa privada é ilegal.

Nesse ponto, levanto mais uma hipótese para o anúncio da venda do edifício: seria apenas uma cortina de fumaça, como diariamente ocorre nesse governo, para esconder desmandos e malfeitos. O alarme disparado na sociedade para evitar a venda do prédio serviria de publicidade para o leilão de outros bens. Corrobora com essa hipótese o fato de Paulo Guedes, após a polêmica, ter garantido a interlocutores que o Palácio Capanema não seria colocado à venda – no dia 20 de agosto, o Ministério da Fazenda publicou uma nota afirmando que o edifício estava fora do edital.

Todavia, segundo o Valor Econômico, apesar de estar fora da lista, o Palácio Capanema permanece liberado para ofertas. Durante o lançamento do feirão, o secretário especial de Desestatização, Desinvestimento e Mercados, Diogo Mac Cord – responsável pelo leilão –, garantiu ao jornal que não há impedimento para a venda de um bem tombado e citou uma nova lei que a autoriza. Feliz da vida, declarou: “O recado que eu queria dizer hoje é: mercado, façam suas apostas.”

Fernando Serapião
Crítico de arquitetura, curador e editor, finaliza a biografia de Oscar Niemeyer, a ser publicada em 2022 pela Companhia das Letras
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Escada de Carlos Drummond de Andrade

Na curva desta escada nos amamos,
nesta curva barroca nos perdemos.
O caprichoso esquema
unia formas vivas, entre ramas.

Lembras-te, carne? Um arrepio telepático
vibrou nos bens municipais, e dando volta
ao melhor de nós mesmos
deixou-nos sós, a esmo,
espetacularmente sós e desarmados,
que a nos amarmos tanto eis-nos morridos.

E mortos, e proscritos
de toda comunhão no século (esta espira
é testemunha, e conta), que restava
das línguas infinitas
que falávamos ou surdas se lambiam
no céu da boca sempre azul e oco?

Que restava de nós,
neste jardim ou nos arquivos, que restava
de nós, mas que restava, que restava?
Ai, nada mais restara,
que tudo mais, na alva,
se perdia, e contagiando o canto aos passarinhos
vinha até nós, podrido e trêmulo, anunciando
que amor fizera um novo testamento,
e suas prendas jaziam sem herdeiros
num pátio branco e áureo de laranjas.

Aqui se esgota o orvalho,
e de lembrar não há lembrança. Entrelaçados,
insistíamos em ser; mas nosso espectro,
submarino, à flor do tempo ia apontando,
e já noturnos, rotos, desossados,
nosso abraço doía
para além da matéria esparsa em números.

Asa que ofereceste o pouso raro
e dançarino e rotativo, cálculo,
rosa grimpante e fina
que à terra nos prendias e furtavas,
enquanto a reta insigne
da torre ia lavrando
no campo desfolhado outras quimeras:
sem ti não somos mais o que antes éramos.

E se este lugar de exílio hoje passeia
faminta imaginação atada aos corvos
de sua própria ceva,
escada, ó assunção,
ao céu alças em vão o alvo pescoço,
que outros peitos em ti se beijariam
sem sombra, e fugitivos,
mas nosso beijo e baba se incorporam
de há muito ao teu cimento, num lamento.

O fazendeiro do ar, 1954
Carlos Drummond de Andrade, Antologia poética


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