sábado, 27 de novembro de 2021

Nava

Luis Fernando Veríssimo

O suicídio é a única questão filosófica, disse Camus. O homem é o único animal que resolve se matar. Que resolve se resolver. O suicídio é ao mesmo tempo um gesto de desistência e de rebeldia. O homem nem sabota os desígnios que seus tecidos tinham para ele.

Se adianta, denuncia a trama na metade, conta o fim da história antes que ela acabe, corta essa. O suicídio é antinatural. Não estava previsto na criação. É um desfio ao sistema. O suicida não está sob nenhuma jurisdição salvo a da sua vontade. É como a masturbação: só cortando as mãos. O suicídio é o supremo paradoxo humano, porque é o último. Não é, como na piada, a autocrítica levada longe demais. O homem se mata para se preservar. Para se desagravar. Para dar uma lição nos outros cujo efeito nos outros ele não vai ver. O suicídio é uma usurpação. O suicida improvisa o próprio cadáver antes que o tempo o faça. É uma extrapolação. Nossa função não é esta.

Estamos aqui para ser, sem perguntas. O corpo não é nosso, só temos o usufruto. A vida é a despeito de nós. Este coração pulsando, esta fome, pertencem a outra ordem, que não é da nossa conta. O suicídio é uma intromissão indébita nesse processo lento e obscuro das células e dos astros. Já que não o desvendamos, explodimos. A gente não vive, a gente é vivida. Não somos as nossas células se decompondo, somos o que contempla a própria degeneração, perplexo. Não somos o cérebro nem a mão que leva a arma ao cérebro, mas somos, finalmente, definitivamente, o que puxa o gatilho. 

Mas porque um homem de 80 anos se suicida? Num homem de 80 anos o suicídio é quase tão escandaloso quanto uma aventura amorosa. Não se faz.

Aos 80 anos um homem já devia ter sua perplexidade ajustada, num lado, como uma hérnia inoperável. Já devia ter passado por todas as rupturas perigosas - do desepero, da auto-indulgência - que fazem os moços se matarem. Pode se suicidar de impaciente, mas a impaciência também é coisa de moço. Pensei que houvesse uma glândula, algum dispositivo, que na velhice nos reconciliasse com esta coisa que acontece em nós, e da qual não sabemos a metade, que é uma vida finita. Não há. Merda, não há.

Luis Fernando Veríssimo, A mãe do Freud, p. 131. L&PM Editores, 1987

NB: Pedro Nava

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