Bolsonaro disse ‘Eu sou a Constituição’, mas Luís 14 nunca disse ‘O Estado sou eu’
Fábio Marton, 20/04/2020, Folha de São Paulo
Luís 14 é considerado uma espécie de encarnação do Absolutismo. Seu reinado de 72 anos e 110 dias é o maior de qualquer monarca Europeu (Elizabeth 2ª precisa de mais quatro anos para alcançá-lo). Ganhou o megalômano apelido de Rei Sol por escolher o Sol como seu símbolo, e gostar de ser comparado ao deus grego do Sol, Apolo. Também mencionavam a regularidade de seus horários.
Mas não porque, como se imagina hoje, o mundo girava em torno dele. O heliocentrismo, em 1643, quando ascendeu ao trono, ainda era polêmico entre católicos. Mas não seria mais na era do Iluminismo, quando Luís passou a simbolizar o que havia de errado com o Antigo Regime absolutista: centralizador, mercantilista, personalista, teocrático. Lembrado por episódios como quando expulsou os protestantes da França.
Foi nessa época que acabou registrada a frase que supostamente representava sua concepção de governo: L‘état, c’est moi, “O Estado Sou Eu”. Ninguém sabe quem escreveu isso primeiro, mas não há qualquer menção até o final do século 18, muitas décadas após o fim de seu reino, em 1715. Já denunciada como apócrifa no século 19, a frase continua a ser repetida como uma verdade de conhecimento comum até hoje. No rol de frases como: “Se eles não têm pão, que comam brioches!” (Maria Antonieta quase certamente jamais disse isso) e “Os fins justificam os meios” (Maquiavel escreveu um bem mais inofensivo: “É preciso considerar o resultado final”).
O CONSTITUCIONALÍSSIMO
A frase falsa leva a uma frase real de Jair Messias Bolsonaro. O presidente apareceu de manhã (dia 20/04/2020) dizendo: “A constituição sou eu”. Ou, mais exatamente: “Eu sou, realmente, a Constituição”. Isso foi comparado ao que Luis 14 não disse. Bolsonaro se pondo no lugar de um líder autocrático dizendo que ele determina o que é Constituição.
Mas o contexto era uma negação de ser alguém assim. Na mesma entrevista, afirmou: “Peguem o meu discurso. Não falei nada contra qualquer outro Poder. Muito pelo contrário. Queremos voltar ao trabalho, o povo quer isso. Estavam lá saudando o Exército brasileiro. É isso, mais nada. Fora isso é invencionice, tentativa de incendiar a nação que ainda está dentro da normalidade”. Chegou a repreender um fã que falou em fechar os outros poderes.
Enfim, o que ele quis dizer, provavelmente, é que é ultra-constitucional. O mais constitucional de todos. Constitucionalíssimo.
Mas a gente sabe o que Jair fez domingo passado. Liderou uma manifestação pedindo precisamente por rasgar a Constituição e realizar uma intervenção militar contra os outros poderes, em frente à sede do Exército, não menos. Gritou palavras de ordem como: “Nós não queremos negociar nada! Nós queremos ação pelo Brasil!” e “Chega da velha política! Agora é Brasil acima de tudo e Deus acima de todos!” Se não falou abertamente em golpe, não deve nem ser por medo das instituições, que continuam a deixar claro que absolutamente nada que fizer terá consequências além de protestos impotentes. Mas porque os golpes preferem chamar a si de “revolução”.
REI TREVAS
Se me permitem, vamos concluir com um desvio para a opinião. A fala de hoje se insere numa estratégia de negação plausível, escapar da responsabilidade, poder formalmente “provar” sua inocência
A mensagem não é endereçada ao bolsonarista profundo, que o considera um enviado pelo Divino, e possivelmente não entende a fala “democrática” como razão para frustração. Ao contrário, é uma prova dele ser um homem bom demais para este mundo, que mantém a democracia como generosa concessão – até onde durar sua paciência.
A mensagem é para direitistas de outras estirpes na base, como guedistas, moristas e, mais que tudo, militares. A função dessa defesa formal é dar “provas” de que a oposição está sendo histérica, injusta, golpista, que só discorda dele por ter perdido as eleições. Que não há nada de anormal acontecendo. É o mesmo método usado quando uma fonte no governo solta alguma informação para, logo após a imprensa publicar, Bolsonaro aparecer negando ruidosamente, descreditando a “mídia lixo”. Para confirmar a notícia um tempo depois.
Carteiradas de Bolsonaro violam princípio republicano
Só nesta semana descobrimos três carteiradas recentes suas
Hélio Schwartsman, Folha de São Paulo, 05/11/2021
O termo "república" vem do latim "res publica", que significa "coisa pública". A expressão latina não é gratuita. Repúblicas se caracterizam por dar às questões de Estado o tratamento de coisa pública, em oposição ao de negócio particular de seus dirigentes, como é frequente em monarquias. A fórmula "L’état, c’est moi" apocrifamente atribuída a Luís 14 ilustra bem a diferença.
São várias as implicações do princípio republicano. Uma das principais é a igualdade de todos diante da lei. Numa república, não há lugar para privilégios, palavra que vem do latim "privilegium", significando "lei privada" ou "lei individual". O dirigente de uma república não está acima dos demais cidadãos, mas é igual a eles. Os romanos também tinham uma expressão para isso: "primus inter pares", "primeiro entre iguais".
Bolsonaro não entende isso. Só nesta semana descobrimos três carteiradas recentes suas. Na mais acintosa, arranjou para que seu status militar fosse alterado (de reformado para reservista), de modo que sua filha pudesse ser matriculada no colégio castrense para o qual obteve vaga sem passar pelo processo seletivo regular.
Ele também mandou a Apex, a agência de exportações, criar um cargo em seu escritório de Miami para abrigar o médico da Presidência. O profissional, por razões particulares, está de mudança para os EUA. Por fim, Bolsonaro armou um teatro com a PF para prestar seu depoimento no inquérito que apura interferências no órgão sem passar por maiores questionamentos.
Carteiradas são um jogo de mão dupla. Elas só se materializam com a anuência da autoridade que as sofre. No caso, os comandos do Exército, da Apex e da PF são tão responsáveis quanto o presidente. E há mais. Bolsonaro nunca escondeu ser um "ignoramus" sem a menor noção dos limites e obrigações do cargo que ocupa.
Nesse contexto, os 58 milhões de brasileiros que o elegeram também têm seu naco de culpa.
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