terça-feira, 30 de novembro de 2021

Deus no futebol

Qual o lugar de Deus no futebol?

Milly Lacombe, UOL, 29/11/2021

Minha irmã uma vez me contou uma piada que nunca esqueci e que me ocorreu usar para começar esse texto. Numa cidadezinha do interior do Brasil havia dois irmãos muito endiabrados que tocavam o terror. O mais velho tinha 10, o menor tinha 8. Os garotos eram tão arruaceiros que um dia, depois da missa, os fieis pediram que o padre os chamasse para uma conversa que pudesse corrigi-los. O padre chamou apenas o mais velho e, depois de uma bronca, disse a ele: "E agora eu te pergunto, meu filho: onde está Deus?". O garoto ficou pálido e emudeceu. O padre, se sentindo confrontado, falou mais alto: Onde está Deus? A criança entendeu que estava em apuros e, tremendo, silenciou mais uma vez. O padre perdeu a cabeça e berrou: Onde está Deus? Onde está? Me diga! O menino saiu correndo da Igreja, chegou em casa esbaforido, puxou o irmão para o quarto e disse: Dessa vez a gente se ferrou total. Deus sumiu e estão achando que foi a gente.

Conto isso para dizer que Deus anda sumido. Da vida, do jogo. Isso, claro, se a gente acreditar num Deus feito à nossa imagem e semelhança: um velho de barbas que, dependendo do dia e do humor, pode ser mais punitivo do que o Diabo. Um Deus que, a depender do jogo, escolhe um time, senta e torce muito - mas que nem precisava porque, né, trata-se de Deus.

De fato, ao final da Libertadores, Palmeirenses e Flamenguistas devem ter falado com Deus de jeitos bastante diferentes. 

Quando escutei o goleiro Weverton, na entrevista que deu saindo de campo, falar de um Deus bastante específico, a quem ele, de três em três segundos, dedicava a vida, a vitória, as defesas, o título, enfim, tudo o que há de bom e de justo nessa vida, me senti incomodada. Enquanto o incômodo me invadia, uma voz dentro de mim dizia: quem é você para saber pelo que esse cara passou para ter Deus em tão alta conta? Quem é você para dizer como Weverton deve se relacionar com o divino?

Claro que há limites para tudo e se esse discurso feito em nome de Deus vier acompanhado de LGBTfobia, racismo, machismo e misoginia essa segunda voz que tentava me acalmar seria imediatamente silenciada. Só que o que escutei foi apenas uma louvação a Deus, um agradecimento - bastante longo e repetitivo, mas, ainda assim, apenas um agradecimento. 

A relação com Deus é dessas coisas que não deveria chegar às nossas vidas embaladas em regras. Num mundo bacaninha e justo, cada um de nós entenderia como falar com Deus partindo de uma ideia de Deus, e de comunicação, que fizesse sentido a quem somos.

Para mim, por exemplo, Deus é Ela porque, se existir uma entidade que criou tudo isso, só faz sentido que Ela seja mulher. Homens, como a gente tem visto, são bons em destruir, mas não muito em tecer, erguer, criar. Não muito em colaborar e se solidarizar. 

Então, esse Deus que parece ter se mandado daqui só poderia ter sumido se ele fosse alguma coisa que criamos a nossa imagem e semelhança, e eu não acho que tenhamos criado Deus; a relação deveria ser a oposta.

Eu acredito no Deus de Espinosa, essa que se manifesta em todas as coisas, que é responsável pelas flores e pelas órbitas do Planeta, pelo por do sol e pelas florestas, pelas marés e pelas chuvas. Pelo amor, pelos encontros, pela vida. 

Durante um jogo de futebol, esse Deus em que acredito se manifesta quando uma torcida entra em transe coletivo, aparece a cada convulsão, a cada triangulação perfeita, a cada gol, a cada tabela improvável. Deus está nos gritos de olé, que surgiram justamente emprestados dos gritos de "Ala", ecoado por nossos ancestrais em volta do fogo todas as vezes que, durante danças, alguém parecia estar invadido por uma força encantada, misteriosa e divina. "Ala, ala, ala", com o tempo, foi para as touradas, para o futebol e virou "Olé, olé, olé".

Esse meu Deus que é mulher está nos dribles, na ousadia, na criatividade dentro de campo. Está na jogada impossível, nas viradas de última hora, no gol feito no minuto derradeiro, nas conquistas e também nas derrotas porque elas formam caráter. 

Mas essa sou eu. E a gente constrói uma ideia de Deus com base em nossas experiências particulares. Exatamente por isso o Deus de Weverton é muito diferente do meu - que é minha.

O importante aqui é não tentar enfiar nosso Deus goela abaixo da outra pessoa e, em vez de dizer como aquela pessoa deve levar a vida dela com base nas regras de um Deus que eu imagino ser o verdadeiro, apenas levar as nossas vidas guiadas pela cartilha de crenças que consideramos ser a correta. Por isso, não sem razão, se critica a atuação das religiões no Brasil, especialmente das evangélicas, mas pouco se fala sobre o papel de amparo e acolhimento que elas oferecem nos lugares em que o estado ou falta ou só entra armado e para matar.

É uma pena que tenhamos que conviver com o que algumas dessas religiões oferecem como preconceitos, intolerâncias, cagações de regras e mercantilização da fé - e falo de todas as religiões aqui -, mas seria importante compreender que populações abandonadas vão se apegar ao que for conveniente para se salvar. 

O que não gostamos de dizer, nem de reconhecer, é que com a pregação que envolve preconceito e intolerância muitas vezes vêm um pão, um abraço, um teto. Papel do Estado, sem dúvida. Mas no Brasil, a cada dia que passa, o estado só serve mesmo para destruir, isolar e metralhar.

Então, se o que Weverton disse ao final do jogo incomodou, talvez a gente devesse parar para pensar como viemos parar aqui; o que ele disse - e como ele disse - explica muito do caminho que percorremos para chegarmos ao ponto de elegermos um presidente que, em nome de Deus, comete as maiores atrocidades e, ainda assim, é aplaudido pelo cidadão de bem e pelo homem de fé. 

Termino com uma história que envolve meu sobrinho Francisco. Ele tinha oito anos quando comeu alguma coisa que o fez vomitar. Depois de vomitar, Francisco perguntou se no dia seguinte estaria bem para ir à aula e alguém que estava com ele, e que não lembro mais quem era, disse: "se Deus quiser você amanhã estará ótimo". Francisco então perguntou: "Mas então por que Deus quis que eu vomitasse tanto hoje?".

Em tempo

'Nunca sofri intolerância assim', diz Weverton após ator compará-lo a Bruno

Diego Iwata e Eder Traskini, UOL, 29/11/2021

Campeão da Copa Libertadores da América no último sábado com o Palmeiras, o goleiro Weverton agradeceu a Deus em entrevista logo após o título. A atitude foi duramente criticada pelo ator Paulo Betti, que chegou a comparar o palmeirense ao goleiro Bruno, ex-Flamengo e condenado pelo assassinato de Eliza Samudio.

"O discurso do goleiro do Palmeiras depois do jogo, aquela falação sobre Deus quando devia estar comemorando, aquela cena dele rezando antes de começar o jogo, me faz lembrar do goleiro Bruno, que rezava antes do jogo e depois ia matar a moça e jogar pros cães. Explica muito o Brasil", escreveu Betti em sua conta no Twitter. Ele depois apagou a postagem.

Em entrevista exclusiva ao UOL Esporte na manhã de hoje (29), Weverton afirmou que nunca sofreu intolerância dessa forma e que o ator estava equivocado. "Eu nunca sofri esse tipo de intolerância. Eu jamais posso aceitar e jamais vou me calar. Acho que deve existir respeito. Eu tenho a minha crença, eu acredito em Deus e acredito na bondade de Deus. Quem me conhece e acompanha sabe que eu falo de Deus não só nas vitórias. Toda vez que o time ganha, perde ou empata, eu sempre me ajoelho e agradeço a Deus. Lógico que nas vitórias as pessoas te dão mais voz, deixam você falar muito mais do que nas derrotas, isso faz parte do processo." O goleiro do Palmeiras, no entanto, assegurou que perdoa Paulo Betti pela postagem. (...)

domingo, 28 de novembro de 2021

Garimpo no rio Madeira

O rio Madeira voltou ao noticiário. Agora a invasão de garimpeiros a procura de ouro.
Centenas de balsas de garimpo ilegal desafiam fiscalização e tomam conta de trecho do rio Madeira, na Amazônia. Exibição em 24 nov 2021.

A ocupação começou há cerca de 15 dias em Autazes, a 113 quilômetros de Manaus. Os danos ao meio ambiente já começam a aparecer nas encostas, mas ainda não houve nenhuma ação dos órgãos de fiscalização.
Dezenas de balsas de garimpo ilegal atracam no Rio Madeira no AM 

O rio Madeira, coitado, tem história. Hoje, o garimpo. No passado: a ferrovia Madeira-Mamoré e o complexo hidrelétrico Santo Antônio – Jirau

HOJE

Invasão de garimpeiros no rio Madeira: o que se sabe e o que falta esclarecer
Grupo instalou centenas de dragas e balsas na região, há pelo menos 15 dias, para exploração ilegal de ouro. No local, foi formada uma espécie de 'vila flutuante' para a atividade.

Por g1 AM, 25/11/2021

Garimpeiros invadiram o Rio Madeira, no interior do Amazonas, com centenas de dragas e balsas para exploração ilegal de ouro. Há pelo menos 15 dias, eles se instalaram na região e formaram uma espécie de "vila flutuante" para a atividade.

 
Presença de garimpeiros assustou moradores de comunidade no rio Madeira, no Amazonas. — Foto: REUTERS/Bruno Kelly

Nesta reportagem, você entenderá o que se sabe e o que falta esclarecer sobre a situação:

1.        Por que os garimpeiros ocuparam o local agora?
2.        Em qual trecho do rio eles realizam o garimpo ilegal?
3.        A exploração de ouro é permitida na região?
4.        O que os órgãos de controle estão fazendo para impedir a invasão?
5.        Por que a presença das dragas irregulares não foi impedida até agora?
6.        Além da exploração ilegal, há outros crimes praticados na área?

Por que os garimpeiros ocuparam o local agora?
A presença de garimpeiros com balsas atuando na extração de ouro ao longo do rio Madeira não é novidade. Porém, a grande quantidade de dragas e balsas atuando no mesmo trecho chamou atenção, e a imagem impressiona.
 
Dragas atracam no Rio Madeira, próximo ao município de Autazes. — Foto: Silas Laurentino
Moradores da região relatam que garimpeiros começaram a compartilhar, nas últimas semanas, a informação de que haveria ouro naquele trecho específico, de forma informal. Eles começaram a chegar no local há cerca de 15 dias.

'Operando naturalmente à luz do dia sem ser incomodada por ninguém', diz ativista do Greenpeace sobre invasão de garimpo ilegal no Rio Madeira

FOTOS: Centenas de balsas e dragas bloqueiam trecho do Rio Madeira para garimpo ilegal

 
Dragas e balsas atracaram no meio do rio Madeira, no Amazonas, para exploração ilegal de ouro. — Foto: REUTERS/Bruno Kelly

Em qual trecho do rio eles montaram a "vila flutuante" para o garimpo ilegal?
A situação ocorre próximo à comunidade de Rosário, no município de Autazes, distante 113 quilômetros de Manaus. O trecho ocupado é usado para deslocamento de moradores de Nova Olinda do Norte, Borba e Novo Aripuanã para chegar a Manaus em lanchas. O trajeto é mais curto do que utilizando a BR-319, que é conhecida por estar muito deteriorada.

A exploração de ouro é permitida na região?

O Instituto de Proteção Ambiental do Amazonas (Ipaam) informou, em nota, que atividades de exploração mineral naquela região não estão licenciadas, portanto, se existindo de fato, são irregulares. O Ministério Público Federal (MPF) também ratificou que a extração de ouro na região do rio Madeira não é amparada por licença ambiental expedida pela autoridade ambiental competente ou por título de lavra emitido pela Agência Nacional de Mineração, o que torna essa atividade ilegal.


Mineiros ilegais se reuniram em uma corrida do ouro no Rio Madeira, em Autazes (AM); em áudio, garimpeiros falam em montar 'paredão' de balsas contra fiscalização Foto: Bruno Kelly/Reuters - 23/11/2021

Por que a presença das dragas irregulares não foi impedida até agora?
Essa é uma das questões que ainda não foram esclarecidas. O ativista do Greenpeace Danicley de Aguiar denunciou que a falta de fiscalização permitiu o avanço da atividade ilegal.

 "Nós estamos vendo aqui um conjunto de mais de 300 balsas colocadas numa ponta de rio, sem licença ambiental alguma, mas operando naturalmente à luz do dia sem ser incomodada por ninguém. São 300 balsas a menos de 30 minutos de voo da maior cidade da Amazônia e elas colocam aí em risco também toda a saúde pública da região", afirmou Aguiar.

 
Garimpeiros instalaram centenas de dragas e balsas nos últimos 15 dias no rio Madeira, no Amazonas. — Foto: REUTERS/Bruno Kelly

O que os órgãos de controle estão fazendo para impedir a invasão?
Até então, nenhuma ação concreta foi feita para retirar os garimpeiros do local. Questionados pelo g1, órgãos de controle informaram que estavam apurando a situação. O Instituto de Proteção Ambiental do Amazonas (Ipaam) informou, nesta quarta-feira (24), que está buscando informações, com intuito de planejar e realizar as devidas ações no âmbito de sua competência, integrado aos demais órgãos estaduais e federais. O órgão também afirmou que comunicaria o fato ao comando da Segurança Pública do Amazonas (SSP), além de pedir apoio federal para apurar a ocorrência.

O Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) informou que teve ciência do caso e, nesta terça-feira (23), reuniu-se com o Ipaam para alinhar as informações, a fim de tomar as devidas providências e coordenar uma fiscalização de garimpo na região. A Polícia Federal informou que tomou conhecimento das atividades ilícitas que estão ocorrendo no Rio Madeira, e "juntamente com outras instituições, estabelecerá as melhores estratégias para o enfrentamento do problema e interrupção dos danos ambientais".

Além da exploração ilegal, há outros crimes praticados na área?

O Instituto de Proteção Ambiental do Amazonas - IPAAM destacou que, além da mineração, pode haver outras possíveis ilegalidades que devem ser investigadas, tais como: mão de obra escrava, tráfico, contrabando e problemas com a capitania dos portos.
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Em tempo

Operação da PF queima embarcações ilegais de garimpo que tomam Rio Madeira e destrói 31 balsas
Ações federais tiveram inicio na madrugada deste sábado; ao menos 31 balsas já foram apreendidas e parte dos equipamentos estão sendo queimados pelos agentes

André Borges, O Estado de S.Paulo, 27 de novembro de 2021 

De Autazes (AM) - As ações federais de repreensão ao garimpo ilegal ao longo do Rio Madeira, no Estado do Amazonas, tiveram início na madrugada deste sábado, 27. Ao menos 31 balsas já foram apreendidas pela Operação Uiara, que reúne agentes da Polícia Federal, Ibama, Marinha e Aeronáutica. Parte dos equipamentos está sendo queimada pelos agentes. Durante as abordagens, uma pessoa foi presa e conduzida para a superintendência do Amazonas. Ela estava com uma quantidade de ouro.

 
Foram destruídas ainda 38 lanchas e 69 dragas usadas para sugar o leito do rio. Operação da PF queima embarcações ilegais de garimpo que tomam Rio Madeira Foto: Policia Federal

Garimpeiros começam a se dispersar antes de serem alvos de ação policial na Amazônia

Rio Madeira teve 'invasão' de balsas; grupo falava em montar um 'paredão' para resistir à chegada de agentes do Ibama e da PF

André Borges, O Estado de S.Paulo, 26 de novembro de 2021

A demora das autoridades federais em reagir ao movimento de balsas de garimpeiros no Rio Madeira, na Amazônia, resultou na dispersão de grande parte das centenas de embarcações clandestinas que ficaram paradas há cerca de uma semana na região de Autazes (AM). Como revelou o Estadão, o grupo se concentra na região onde teria sido encontrada uma grande quantidade de ouro.
Informações obtidas pelo Estadão apontam que a maior parte das balsas já deixou o local. Trocas de mensagens entre os garimpeiros sinalizam que parte deles já está subindo o Rio Madeira, sentido Humaitá, na fronteira do Amazonas com Rondônia. A região é conhecida pela aglomeração dessas embarcações. Muitos garimpeiros deixaram Autazes e já estão próximos do município de Nova Olinda do Norte (AM).

Em áudios, garimpeiros em rio na Amazônia falam em fazer tocaia e 'largar bala' contra polícia

Desde a terça-feira, 23, reportagem feita pelo Estadão já trazia detalhes sobre a aglomeração de centenas de balsas, todas elas atuando em situação irregular, na extração de ouro do Rio Madeira. Na quarta-feira, os garimpeiros já trocavam mensagens entre si, a respeito de reações caso houvesse algum tipo de ação repreensiva por parte dos órgãos policiais e de repreensão.
Em mensagens de áudio divulgadas pelo Estadão, os garimpeiros falaram na possibilidade de montar um “paredão” de balsas para reter a ação policial, chegaram a falar em tocaias na floresta e em “mandar bala” nos agentes.

O Ministério da Justiça mobilizou a Polícia Federal, além das Forças Armadas e agentes do Ibama para realizarem uma ação na região. Até o momento, porém, nada ocorreu efetivamente. Informados sobre a mobilização, os garimpeiros também avaliavam a alternativa de deixarem o local.
Como seus equipamentos são irregulares, eles sabem que não há outra opção em casos de abordagem policial: tudo tem que se apreendido ou destruído no próprio local.

As autoridades federais não deram detalhes sobre seus planos na região, mas o que se articulava vinha sendo chamado internamente, pelos membros do governo, de uma “operação de guerra”, com bloqueio de passagens pelo Rio Madeira e por estradas que chegam à região onde estavam as embarcações.
Agentes ouvidos pela reportagem acreditam que a situação pode, de certa forma, facilitar a abordagem policial, porque evita conflitos com grande aglomeração. Além disso, as balsas se movem lentamente.
Foto Onde fica
Balsas de garimpo ilegal estão avançando pelas águas do Rio Madeira (AM)
 
Fim do Em tempo
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O acesso às balsas é feito, na maior parte das abordagens, pelas equipes de helicópteros. A aeronave se aproxima da balsa, os agentes descem e tomam o controle da embarcação. Nos casos em que há pessoas no local, seus documentos são fotografados. As pessoas são liberadas, com seus pertences. A balsa, então, é destruída no local. Para atear o fogo, os agentes utilizam o próprio combustível armazenado nas balsas. Antes de atear o fogo, os agentes revistam a embarcação para checar se há mercúrio armazenado, produto extremamente nocivo ao meio ambiente e que é utilizado no processo de separação do ouro.

A apreensão ocorreu nas águas do Madeira que cortam o município de Nova Olinda do Norte. Aglomeradas há mais de uma semana na região de Autazes, município que fica a 230 quilômetros de barco de Manaus, em viagem pelos rios Amazonas e Madeira, mais de 300 balsas se dispersaram ontem, após informações de que haveria, de fato, uma operação federal de grande porte. O deslocamento dessas balsas, porém, é lento.

 
O acesso às balsas é feito pelas equipes de helicópteros Foto: Polícia Federal e Ibama

Na tentativa de escapar da fiscalização, é comum a situação em que o garimpeiro recolhe a balsa para uma margem, retira o maquinário que puder e abandona a balsa. Em outros casos, tenta esconder o equipamento em pequenos afluentes do rio.
A operação dos órgãos federais reúne agentes do Paraná, Brasília, Amazonas, Paraíba e Pará. A debandada dos garimpeiros pode dificultar o trabalho de capturar todas as balsas. Por outro lado, facilita o trabalho de abordagem policial. Havia grande tensão sobre a forma como os garimpeiros seriam abordados. 

Por meio de trocas de mensagens, os garimpeiros já comentavam sobre a mobilização de repreensão desde a quarta-feira, 24. Ainda assim, permaneceram por mais três dias atracados em fileiras. Na sexta-feira, porém, desmobilizaram e se espalharam pela calha principal do Rio Madeira. O nome Uiara, escolhido para a operação, tem origem na língua tupi significa “mãe da água”. Não há data definida para a mobilização acabar.

Alerta

A repreensão policial envolve equipes que entraram pelo rio, por meio de helicópteros e pelas estradas da região. Os garimpeiros, que se deslocaram para a região de Humaitá, na divisa de Amazonas e Rondônia, têm trocado alertas sobre a mobilização.
“Nova Olinda até Autazes, não tem lugar nem no chão nem na terra. Só eles que tá dando. Estão de helicóptero e o caralho... de voadeira. Tão até pelo fundo, eu acho”, afirma um garimpeiro, em mensagem obtida pela reportagem. Durante a semana, alguns garimpeiros chegaram a trocar mensagens sobre suposta mobilização para revidar às ações de fiscalização, mas recuaram diante da informação de que as autoridades estariam mobilizando um forte aparato policial.

Em tempo

Operação contra balsas de garimpo no Rio Madeira destruiu 131 dragas. Equipamentos eram utilizados ilegalmente na busca por ouro no Amazonas; garimpeiros chegaram a fazer protestos contra ação

29 de novembro de 2021, André Borges

Destruição de balsas de garimpo, no Rio Madeira, tem objetivo de inviabilizar crime ambiental

NO PASSADO

 Madeira-Mamoré, uma insensatez.

A saga começou em 1879, comandada pelo coronel estadunidense George Church e terminou com apenas 7,5 km construídos de estrada. O tratado de Petrópolis, assinado a 17 de novembro de 1903, com a Bolívia abriu as portas para a reativação do projeto Madeira- Mamoré, que permitiria que a borracha (e outras riquezas da floresta) descesse o Rio Madeira de trem, transpondo suas dezenove cachoeiras, e seguisse pelo rio Amazonas em navios a vapor até o Atlântico e, dali para a Europa e os Estados Unidos. O governo Afonso Pena, em 1907, assinou uma concessão para que outro estadunidense, Percival Farquhar, construísse a ferrovia em quatro anos. Farquahar era um negociador astuto e controlava ferrovias e outros negócios em diversos países. Com a borracha em seu apogeu, ele jogou duro com o governo e garantiu uma concessão de 69 anos que incluía a ferrovia e grandes seringais ao longo do rio Madeira (2).

A minissérie Mad Maria, da rede Globo (2005), baseada no livro homônimo de Márcio de Souza, descreve Percival como um crápula, além dos atributos acima. Tem sentido, já que a história do Brasil é recheada de falcatruas impostas pelos ditos (ou mal-ditos) países dominadores.

Os trabalhadores da construção da estrada formavam uma verdadeira babel: tinha brasileiros, alemães, estadunidenses (os gerentes e engenheiros), espanhóis, gregos, indianos etc. Dos EUA vieram os confederados, perdedores da guerra da secessão naquele país. Resultado da insensata aventura: para construir a estrada (com 336 km), em quatro anos, ligando Porto Velho a Guarajá-Mirim, mais de 30 mil trabalhadores foram hospitalizados e destes, 10 mil morreram infectados por malária, beribéri etc.
Com o fim do ciclo da borracha Madeira Mamoré ficou inútil poucos anos após sua inauguração em 1912. E hoje, em 2011, o que acontece por lá?

Cito dois exemplos: o complexo hidrelétrico do rio Madeira, Santo Antônio – Jirau, e a estrada sobre o território indígena Parque Nacional Isiboro Sécure (Tipnis) na Bolívia.


 
O complexo hidrelétrico Santo Antônio – Jirau

"No Brasil, para conceber e construir projetos como os do Rio Madeira ou Belo Monte, não é preciso ter conhecimento técnico apenas, tem que saber enganar bem, fornecer dados inconsistentes. Saber manipular informações, números, valores, desconstruir laudos de especialistas internacionais, estatísticas, convencer autoridades e, principalmente, bancar muitas campanhas eleitorais. Se fosse possível conceder um prêmio de manipulação ele seria dividido entre os idealizadores do projeto Madeira e o governo Lula". (Telma Monteiro)

"O documentário Entre a Cheia e o Vazio é um recorte de uma batalha de sentidos em torno dos efeitos de larga escala produzidos pelas Usinas Hidrelétricas de Santo Antônio e Jirau, no Rio Madeira, o afluente mais caudaloso do Amazonas. Batalha que se intensificou com a chamada "cheia histórica" de 2014, ampliada pela retenção de água nos dois reservatórios, e que prossegue nesse exato momento em que estudos preliminares indicam que os elevados níveis de assoreamento do rio podem resultar, em 2015, numa cheia de proporções similares, ainda que com menor volume de precipitações. As consequências do duplo barramento (e que pretende ser triplo com o aproveitamento da Cachoeira de Ribeirão - Guajará Mirim) de um rio com tamanha descarga sólida, em períodos muito concentrados de tempo, só estão sendo avaliadas a posteriori e muito limitadamente. Além de expropriarem o rio e seus usos sociais, procuram expropriar a capacidade de percepção e inteligibilidade do território recriado". (Luis Fernando Novoa Garzon)

Réquiem

 O que acontece em 2021 com o rio Madeira tem um alcançe geográfico e ecológico gigantesco. O garimpo ocorre a 890 km, rio abaixo, do complexo hidrelétrico Santo Antônio – Jirau.

Cayahuari Yacu, the jungle Indians call this country, the land where God did not finish creation. They believe only after man has disappeared will He return to finish His work. (do filme Fitzcarraldo)




sábado, 27 de novembro de 2021

O Ovo e a Galinha

Clarice Lispector

Quarta-feira, novembro 28, 2007

De manhã na cozinha sobre a mesa vejo o ovo.

Olho o ovo com um só olhar. Imediatamente percebo que não se pode estar vendo um ovo. Ver o ovo nunca se mantêm no presente: mal vejo um ovo e já se torna ter visto o ovo há três milênios. – No próprio instante de se ver o ovo ele é a lembrança de um ovo. – Só vê o ovo quem já o tiver visto. – Ao ver o ovo é tarde demais: ovo visto, ovo perdido. – Ver o ovo é a promessa de um dia chegar a ver o ovo. – Olhar curto e indivisível; se é que há pensamento; não há; há o ovo. – Olhar é o necessário instrumento que, depois de usado, jogarei fora. Ficarei com o ovo. – O ovo não tem um si-mesmo. Individualmente ele não existe.

Ver o ovo é impossível: o ovo é supervisível como há sons supersônicos. Ninguém é capaz de ver o ovo. O cão vê o ovo? Só as máquinas vêem o ovo. O guindaste vê o ovo. – Quando eu era antiga um ovo pousou no meu ombro. – O amor pelo ovo também não se sente. O amor pelo ovo é supersensível. A gente não sabe que ama o ovo. – Quando eu era antiga fui depositária do ovo e caminhei de leve para não entornar o silêncio do ovo. Quando morri, tiraram de mim o ovo com cuidado. Ainda estava vivo. – Só quem visse o mundo veria o ovo. Como o mundo o ovo é óbvio.

O ovo não existe mais. Como a luz de uma estrela já morta, o ovo propriamente dito não existe mais. – Você é perfeito, ovo. Você é branco. – A você dedico o começo. A você dedico a primeira vez.

Ao ovo dedico a nação chinesa.

O ovo é uma coisa suspensa. Nunca pousou. Quando pousa, não foi ele quem pousou. Foi uma coisa que ficou embaixo do ovo. – Olho o ovo na cozinha com atenção superficial para não quebrá-lo. Tomo o maior cuidado de não entendê-lo. Sendo impossível entendê-lo, sei que se eu o entender é porque estou errando. Entender é a prova do erro. Entendê-lo não é o modo de vê-lo. – Jamais pensar no ovo é um modo de tê-lo visto. – Será que sei do ovo? É quase certo que sei. Assim: existo, logo sei. – O que eu não sei do ovo é o que realmente importa. O que eu não sei do ovo me dá o ovo propriamente dito. – A Lua é habitada por ovos.

O ovo é uma exteriorização. Ter uma casca é dar-se.- O ovo desnuda a cozinha. Faz da mesa um plano inclinado. O ovo expõe. – Quem se aprofunda num ovo, quem vê mais do que a superfície do ovo, está querendo outra coisa: está com fome.

O ovo é a alma da galinha. A galinha desajeitada. O ovo certo. A galinha assustada. O ovo certo. Como um projétil parado. Pois ovo é ovo no espaço. Ovo sobre azul. – Eu te amo, ovo. Eu te amo como uma coisa nem sequer sabe que ama outra coisa. – Não toco nele. A aura de meus dedos é que vê o ovo. Não toco nele – Mas dedicar-me à visão do ovo seria morrer para a vida mundana, e eu preciso da gema e da clara. – O ovo me vê. O ovo me idealiza? O ovo me medita? Não, o ovo apenas me vê. É isento da compreensão que fere. – O ovo nunca lutou. Ele é um dom. – O ovo é invisível a olho nu. De ovo a ovo chega-se a Deus, que é invisível a olho nu. – O ovo terá sido talvez um triângulo que tanto rolou no espaço que foi se ovalando. – O ovo é basicamente um jarro? Terá sido o primeiro jarro moldado pelos etruscos ? Não. O ovo é originário da Macedônia. Lá foi calculado, fruto da mais penosa espontaneidade. Nas areias da Macedônia um homem com uma vara na mão desenhou-o. E depois apagou-o com o pé nu.

O ovo é coisa que precisa tomar cuidado. Por isso a galinha é o disfarce do ovo. Para que o ovo atravesse os tempos a galinha existe. Mãe é para isso. – O ovo vive foragido por estar sempre adiantado demais para a sua época. – O ovo por enquanto será sempre revolucionário. – Ele vive dentro da galinha para que não o chamem de branco. O ovo é branco mesmo. Mas não pode ser chamado de branco. Não porque isso faça mal a ele, mas as pessoas que chamam ovo de branco, essas pessoas morrem para a vida. Chamar de branco aquilo que é branco pode destruir a humanidade. Uma vez um homem foi acusado de ser o que ele era, e foi chamado de Aquele Homem. Não tinham mentido: Ele era. Mas até hoje ainda não nos recuperamos, uns após outros. A lei geral para continuarmos vivos: pode-se dizer “um rosto bonito”, mas quem disser “O rosto”, morre; por ter esgotado o assunto.

Com o tempo, o ovo se tornou um ovo de galinha. Não o é. Mas, adotado, usa-lhe o sobrenome. – Deve-se dizer “o ovo da galinha”. Se eu disser apenas “o ovo”, esgota-se o assunto, e o mundo fica nu. – Em relação ao ovo, o perigo é que se descubra o que se poderia chamar de beleza, isto é, sua veracidade. A veracidade do ovo não é verossímil. Se descobrirem, podem querer obrigá-lo a se tornar retangular. O perigo não é para o ovo, ele não se tornaria retangular. (Nossa garantia é que ele não pode: não poder é a grande força do ovo: sua grandiosidade vem da grandeza de não poder, que se irradia como um não querer.) Mas quem lutasse por torná-lo retangular estaria perdendo a própria vida. O ovo nos expõe, portanto, em perigo. Nossa vantagem é que o ovo é invisível. E quanto aos iniciados, os iniciados disfarçam o ovo.

Quanto ao corpo da galinha, o corpo da galinha é a maior prova de que o ovo não existe. Basta olhar para a galinha para se tornar óbvio que o ovo é impossível de existir.

E a galinha? O ovo é o grande sacrifício da galinha. O ovo é a cruz que a galinha carrega na vida. O ovo é o sonho inatingível da galinha. A galinha ama o ovo. Ela não sabe que existe o ovo. Se soubesse que tem em si mesma o ovo, perderia o estado de galinha. Ser galinha é a sobrevivência da galinha. Sobreviver é a salvação. Pois parece que viver não existe. Viver leva a morte. Então o que a galinha faz é estar permanentemente sobrevivendo. Sobreviver chama-se manter luta contra a vida que é mortal. Ser galinha é isso. A galinha tem o ar constrangido.

É necessário que a galinha não saiba que tem um ovo. Senão ela se salvaria como galinha, o que também não é garantido, mas perderia o ovo. Então ela não sabe. Para que o ovo use a galinha é que a galinha existe. Ela era só para se cumprir, mas gostou. O desarvoramento da galinha vem disso: gostar não fazia parte de nascer. Gostar de estar vivo dói. – Quanto a quem veio antes, foi o ovo que achou a galinha. A galinha não foi sequer chamada. A galinha é diretamente uma escolhida. – A galinha vive como em sonho. Não tem senso de realidade. Todo o susto da galinha é porque estão sempre interrompendo o seu devaneio. A galinha é um grande sono. – A galinha sofre de um mal desconhecido. O mal desconhecido é o ovo. – Ela não sabe se explicar: “ sei que o erro está em mim mesma”, ela chama de erro a vida, “não sei mais o que sinto”, etc.

“Etc., etc., etc.,” é o que cacareja o dia inteiro a galinha. A galinha tem muita vida interior. Para falar a verdade a galinha só tem mesmo é vida interior. A nossa visão de sua vida interior é o que chamamos de “galinha”. A vida interior na galinha consiste em agir como se entendesse. Qualquer ameaça e ela grita em escândalo feito uma doida. Tudo isso para que o ovo não se quebre dentro dela. Ovo que se quebra dentro de galinha é como sangue.

A galinha olha o horizonte. Como se da linha do horizonte é que viesse vindo um ovo. Fora de ser um meio de transporte para o ovo, a galinha é tonta, desocupada e míope. Como poderia a galinha se entender se ela é a contradição de um ovo? O ovo ainda é o mesmo que se originou na Macedônia. A galinha é sempre tragédia mais moderna. Está sempre inutilmente a par. E continua sendo redesenhada. Ainda não se achou a forma mais adequada para uma galinha. Enquanto meu vizinho atende ao telefone ele redesenha com lápis distraído a galinha. Mas para a galinha não há jeito: está na sua condição não servir a si própria. Sendo, porém, o seu destino mais importante que ela, e sendo o seu destino o ovo, a sua vida pessoal não nos interessa.
Dentro de si a galinha não reconhece o ovo, mas fora de si também não o reconhece. Quando a galinha vê o ovo pensa que está lidando com uma coisa impossível. É com o coração batendo, com o coração batendo tanto, ela não o reconhece.

De repente olho o ovo na cozinha e vejo nele a comida. Não o reconheço, e meu coração bate. A metamorfose está se fazendo em mim: começo a não poder mais enxergar o ovo. Fora de cada ovo particular, fora de cada ovo que se come, o ovo não existe. Já não consigo mais crer num ovo. Estou cada vez mais sem força de acreditar, estou morrendo, adeus, olhei demais um ovo e ele me foi adormecendo.

A galinha não queria sacrificar a sua vida. A que optou por querer ser “feliz”. A que não percebia que, se passasse a vida desenhando dentro de si como numa iluminura o ovo, ela estaria servindo. A que não sabia perder-se a si mesma. A que pensou que tinha penas de galinha para se cobrir por possuir pele preciosa, sem entender que as penas eram exclusivamente para suavizar, a travessia ao carregar o ovo, porque o sofrimento intenso poderia prejudicar o ovo. A que pensou que o prazer lhe era um dom, sem perceber que era para que ela se distraísse totalmente enquanto o ovo se faria. A que não sabia que “eu” é apenas uma das palavras que se desenham enquanto se atende ao telefone, mera tentativa de buscar forma mais adequada. A que pensou que “eu” significa ter um si-mesmo. As galinhas prejudiciais ao ovo são aquelas que são um “eu” sem trégua. Nelas o “eu” é tão constante que elas já não podem mais pronunciar a palavra “ovo”. Mas, quem sabe, era disso mesmo que o ovo precisava. Pois se elas não estivessem tão distraídas, se prestassem atenção à grande vida que se faz dentro delas, atrapalhariam o ovo.

Comecei a falar da galinha e há muito já não estou falando mais da galinha. Mas ainda estou falando do ovo.

E eis que não entendo o ovo. Só entendo o ovo quebrado: quebro-o na frigideira. É deste modo indireto que me ofereço à existência do ovo: meu sacrifício é reduzir-me à minha própria vida pessoal. Fiz do meu prazer e da minha dor o meu destino disfarçado. E ter apenas a própria vida é, para quem viu o ovo, um sacrifício. Como aqueles que, no convento, varrem o chão e lavam a roupa, servindo sem a glória de função maior, meu trabalho é o de viver os meus prazeres e as minhas dores. É necessário que eu tenha a modéstia de viver.

Pego mais um ovo na cozinha, quebro-lhe a casca e forma. E a partir deste instante exato nunca existiu um ovo. É absolutamente indispensável que eu seja uma ocupada e uma distraída. Sou indispensavelmente um dos que renegam. Faço parte da maçonaria dos que viram uma vez o ovo e o renegam como forma de protegê-lo. Somos os que se abstêm de destruir, e nisso se consomem. Nós, agentes disfarçados e distribuídos pelas funções menos reveladoras, nós às vezes nos reconhecemos. A um certo modo de olhar, há um jeito de dar a mão, nós nos reconhecemos e a isto chamamos de amor. E então, não é necessário o disfarce: embora não se fale, também não se mente, embora não se diga a verdade, também não é necessário dissimular. Amor é quando é concedido participar um pouco mais. Poucos querem o amor, porque o amor é a grande desilusão de tudo o mais. E poucos suportam perder todas as outras ilusões. Há os que voluntariam para o amor, pensando que o amor enriquecerá a vida pessoal. É o contrário: amor é finalmente a pobreza. Amor é não ter. Inclusive amor é a desilusão do que se pensava que era amor. E não é prêmio, por isso não envaidece, amor não é prêmio, é uma condição concedida exclusivamente para aqueles que, sem ele, corromperiam o ovo com a dor pessoal. Isso não faz do amor uma exceção honrosa; ele é exatamente concedido aos maus agentes, àqueles que atrapalhariam tudo se não lhes fosse permitido adivinhar vagamente.

A todos os agentes são dadas muitas vantagens para que o ovo se faça. Não é o caso de se ter inveja pois, inclusive algumas das condições, piores do que as dos outros, são apenas as condições ideais para o ovo. Quanto ao prazer dos agentes, eles também o recebem sem orgulho. Austeramente vivem todos os prazeres: inclusive é o nosso sacrifício para que o ovo se faça. Já nos foi imposta, inclusive uma natureza adequada a muito prazer. O que facilita. Pelo menos torna menos penoso o prazer.

Há casos de agentes que se suicidam: acham insuficientes as pouquíssimas instruções recebidas e se sentem sem apoio. Houve o caso do agente que revelou publicamente ser agente porque lhe foi intolerável não ser compreendido, e ele não suportava mais não ter o respeito alheio: morreu atropelado quando saía de um restaurante. Houve um outro que nem precisou ser eliminado: ele próprio se consumiu lentamente na sua revolta, sua revolta veio quando ele descobriu que as duas ou três instruções recebidas não incluíam nenhuma explicação. Houve outro também eliminado, porque achava que “a verdade deve ser corajosamente dita”, e começou em primeiro lugar a procurá-la; dele se disse que morreu em nome da verdade com sua inocência; sua aparente coragem era tolice, e era ingênuo o seu desejo de lealdade, ele compreendera que ser leal não é coisa limpa, ser leal é ser desleal para com todo o resto. Esses casos extremos de morte não são por crueldade. É que há um trabalho, digamos cósmico, a ser feito, e os casos individuais infelizmente não podem ser levados em consideração. Para os que sucumbem e se tornam individuais é que existem as instituições, a caridade, a compreensão que não discrimina motivos, a nossa vida humana enfim.

Os ovos estalam na frigideira, e mergulhada no sonho preparo o café da manhã. Sem nenhum senso da realidade, grito pelas crianças que brotam de várias camas, arrastam cadeiras e comem, e o trabalho do dia amanhecido começa, gritado e rido e comido, clara e gema, alegria entre brigas, dia que é o nosso sal e nós somos o sal do dia, viver é extremamente tolerável, viver ocupa e distrai, viver faz rir.

E me faz sorrir no meu mistério. O meu mistério é que eu ser apenas um meio, e não um fim, tem-me dado a mais maliciosa das liberdades: não sou boba e aproveito. Inclusive, faço um mal aos outros que, francamente. O falso emprego que me deram para disfarçar a minha verdadeira função, pois aproveito o falso emprego e dele faço o meu verdadeiro; inclusive o dinheiro que me dão como diária para facilitar a minha vida de modo a que o ovo se faça, pois esse dinheiro eu tenho usado para outros fins, desvio de verba, ultimamente comprei ações na Brahma e estou rica. A isso tudo ainda chamo de ter a necessária modéstia de viver. E também o tempo que me deram, e que nos dão apenas para que no ócio honrado o ovo se faça, pois tenho usado esse tempo para prazeres ilícitos e dores ilícitas, inteiramente esquecida do ovo. Esta é a minha simplicidade.

Ou é isso mesmo que eles querem que me aconteça, exatamente para que o ovo se cumpra? É liberdade ou estou sendo mandada? Pois venho notando que tudo que é erro meu tem sido aproveitado. Minha revolta é que para eles eu não sou nada, eu sou apenas preciosa: eles cuidam de mim segundo por segundo, com a mais absoluta falta de amor; sou apenas preciosa. Com o dinheiro que me dão, ando ultimamente bebendo. Abuso de confiança? Mas é que ninguém sabe como se sente por dentro aquele cujo emprego consiste em fingir que está traindo, e que termina acreditando na própria traição. Cujo emprego consiste em diariamente esquecer. Aquele de quem é exigida a aparente desonra. Nem meu espelho reflete mais um rosto que seja meu. Ou sou um agente, ou é a traição mesmo.

Mas durmo o sono dos justos por saber que minha vida fútil não atrapalha a marcha do grande tempo. Pelo contrário: parece que é exigido de mim que eu seja extremamente fútil, é exigido de mim inclusive que eu durma como justo. Eles me querem preocupada e distraída, e não lhes importa como. Pois, com minha atenção errada e minha tolice grave, eu poderia atrapalhar o que se está fazendo através de mim. É que eu própria, eu propriamente dita, só tenho mesmo servido para atrapalhar. O que me revela que talvez eu seja um agente é a idéia de que meu destino me ultrapassa: pelo menos isso eles tiveram mesmo que me deixar adivinhar, eu era daqueles que fariam mal o trabalho se ao menos não adivinhassem um pouco; fizeram-me esquecer o que me deixaram adivinhar, mas vagamente ficou-me a noção de que meu destino me ultrapassa, e de que sou instrumento do trabalho deles. Mas de qualquer modo era só instrumento que eu poderia ser, pois o trabalho não poderia ser mesmo meu. Já experimentei me estabelecer por conta própria e não deu certo; ficou-me até hoje essa mão trêmula. Tivesse eu insistido um pouco mais e teria perdido para sempre a saúde. Desde então, desde essa malograda experiência, procuro raciocinar desse modo: que já me foi dado muito, que eles já me concederam tudo o que pode ser concedido; e que os outros agentes, muito superiores a mim, também trabalharam apenas para o que não sabiam. E com as mesmas pouquíssimas instruções. Já me foi dado muito; isto, por exemplo: uma vez ou outra, com o coração batendo pelo privilégio, eu pelo menos sei que não estou reconhecendo! Com o coração batendo de emoção, eu pelo menos não compreendo! Com o coração batendo de confiança, eu pelo menos não sei.

Mas e o ovo? Este é um dos subterfúgios deles: enquanto eu falava sobre o ovo, eu tinha esquecido do ovo. “Falai, falai”, instruíram-me eles. E o ovo fica inteiramente protegido por tantas palavras. Falai muito, é uma das instruções, estou tão cansada.

Por devoção ao ovo, eu o esqueci. Meu necessário esquecimento. Meu interesseiro esquecimento. Pois o ovo é um esquivo. Diante de minha adoração possessiva ele poderia retrair-se e nunca mais voltar. Mas se ele for esquecido. Se eu fizer o sacrifício de esquecê-lo. Se o ovo for impossível. Então – livre, delicado, sem mensagem alguma para mim – talvez uma vez ainda ele se locomova do espaço até esta janela que desde sempre deixei aberta. E de madrugada baixe no nosso edifício. Sereno até a cozinha. Iluminando-a de minha palidez. 

Tem um conto meu (O Ovo e a Galinha) que não compreendo muito bem (Clarice Lispector)

"O ovo, Clarice e a galinha" | Hora de Clarice 2015

Panorama com Clarice Lispector (1920 - 1977)

Depoimento de Paulo Gurgel Valente (filho) sobre Clarice Lispector

Nava

Luis Fernando Veríssimo

O suicídio é a única questão filosófica, disse Camus. O homem é o único animal que resolve se matar. Que resolve se resolver. O suicídio é ao mesmo tempo um gesto de desistência e de rebeldia. O homem nem sabota os desígnios que seus tecidos tinham para ele.

Se adianta, denuncia a trama na metade, conta o fim da história antes que ela acabe, corta essa. O suicídio é antinatural. Não estava previsto na criação. É um desfio ao sistema. O suicida não está sob nenhuma jurisdição salvo a da sua vontade. É como a masturbação: só cortando as mãos. O suicídio é o supremo paradoxo humano, porque é o último. Não é, como na piada, a autocrítica levada longe demais. O homem se mata para se preservar. Para se desagravar. Para dar uma lição nos outros cujo efeito nos outros ele não vai ver. O suicídio é uma usurpação. O suicida improvisa o próprio cadáver antes que o tempo o faça. É uma extrapolação. Nossa função não é esta.

Estamos aqui para ser, sem perguntas. O corpo não é nosso, só temos o usufruto. A vida é a despeito de nós. Este coração pulsando, esta fome, pertencem a outra ordem, que não é da nossa conta. O suicídio é uma intromissão indébita nesse processo lento e obscuro das células e dos astros. Já que não o desvendamos, explodimos. A gente não vive, a gente é vivida. Não somos as nossas células se decompondo, somos o que contempla a própria degeneração, perplexo. Não somos o cérebro nem a mão que leva a arma ao cérebro, mas somos, finalmente, definitivamente, o que puxa o gatilho. 

Mas porque um homem de 80 anos se suicida? Num homem de 80 anos o suicídio é quase tão escandaloso quanto uma aventura amorosa. Não se faz.

Aos 80 anos um homem já devia ter sua perplexidade ajustada, num lado, como uma hérnia inoperável. Já devia ter passado por todas as rupturas perigosas - do desepero, da auto-indulgência - que fazem os moços se matarem. Pode se suicidar de impaciente, mas a impaciência também é coisa de moço. Pensei que houvesse uma glândula, algum dispositivo, que na velhice nos reconciliasse com esta coisa que acontece em nós, e da qual não sabemos a metade, que é uma vida finita. Não há. Merda, não há.

Luis Fernando Veríssimo, A mãe do Freud, p. 131. L&PM Editores, 1987

NB: Pedro Nava

quinta-feira, 25 de novembro de 2021

O risco de abandonar os estudos depois da pandemia

Mais de 450 mil alunos do ensino fundamental ficaram sem atividade remota na pandemia. Número representa quase 15% dos matriculados no 5º e no 9º anos; grupo tem alto risco de evasão

Isabela Palhares, 25/11/2021

Apenas nos anos finais do ensino fundamental, nas turmas de 5º e 9º anos, mais de 450 mil alunos das redes municipais do Brasil estão em alto risco de abandonar os estudos depois da pandemia.

Em Paraisópolis, na zona sul da capital paulista, crianças ficaram meses sem ir à escola e sem acompanhar atividades remotas - Marlene Bergamo - 15.dez.2020/Folhapress

Isso representa quase 15% do total de matriculados nestes dois anos somados. São estudantes que passaram mais de um ano sem acompanhar nenhuma atividade remota durante o fechamento das escolas no país.

O levantamento de crianças em risco de abandono escolar foi feito por técnicos de 29 Tribunais de Contas do país, em parceria com o Iede (Interdisciplinaridade e Evidências no Debate Educacional) e o CTE-IRB (Comitê Técnico da Educação do Instituto Rui Barbosa).

A pesquisa, divulgada nesta quinta (25), foi feita diretamente com as redes municipais e estaduais de ensino de todo o país, já que o Ministério da Educação não realizou nenhum diagnóstico sobre a evasão escolar durante a pandemia.

O processo de coleta dos dados indica que o número de alunos em risco pode ser ainda maior, já que a maioria das localidades teve dificuldade de apresentar um diagnóstico do acompanhamento das atividades escolares durante o fechamento de escolas.
Segundo o levantamento, a média de participação dos alunos do 5º ano do ensino fundamental nas escolas municipais foi de 92,5%, o que significa 144 mil crianças sem nenhum acompanhamento das atividades escolares. Já no 9º ano, 90,1% tiveram alguma participação, deixando 94 mil alunos de fora.

A pesquisa não permite dizer que esses alunos já abandonaram os estudos, mas que eles estão em alto risco de não retornar à escola depois de mais de um ano sem acompanhamento. A saída desses estudantes pode levar o país a um retrocesso de anos, já que o acesso educacional de crianças e adolescentes nessa etapa, dos 6 aos 14 anos, estava praticamente universalizado antes da pandemia — era de 99%.

"Corremos o risco de um enorme retrocesso caso esses alunos não voltem para a escola. Por isso, precisamos de uma ação coordenada em todo o país para melhorar as ferramentas de acompanhamento, identificar quem ainda está fora e fazer ações de busca ativa", diz Cezar Miola, conselheiro do Tribunal de Contas do Rio Grande do Sul e presidente do CTE-IRB.

O levantamento mostra ainda as desigualdades regionais do risco de abandono escolar. Enquanto na região Sul a média de participação dos alunos de 5º ano foi de 96,2%, no Nordeste, o índice foi de 88%. O mesmo ocorre com a média do 9º ano.

"A pandemia reforçou ainda mais as desigualdades que já existiam, ela atuou mais forte contra quem estava mais vulnerável e isso vale também para as redes de ensino. As redes com menos recursos tiveram mais dificuldade de adaptação tecnológica, de ter professores para a busca ativa", diz Ernesto Faria, diretor-fundador do Iede.

 
Ainda que a maioria das redes públicas de ensino no país já tenha reaberto suas escolas, uma pesquisa do Datafolha, divulgada em outubro, indicou que a retomada tem ocorrido de forma desigual no país. São exatamente as regiões com maior risco de evasão que têm demorado mais para retornar às aulas presenciais.

Enquanto na região Sul, 90% dos estudantes já puderam voltar a frequentar a escola, no Nordeste só 40% tiveram essa opção. A demora também tem prejudicado mais os estudantes negros e pobres.
Em setembro, 65% dos alunos do país tiveram suas escolas reabertas, ainda que parcialmente. Entre os estudantes brancos, o índice chegou a 72%, mas ficou em 61% para os negros.

Entre as três faixas de maior nível socioeconômico, a retomada das aulas presenciais alcançou 73% dos alunos. Mas era de apenas 41% para aqueles que estão nas três menores faixas de renda. "Quanto mais demoramos para identificar quem está fora da escola, mais difícil será trazê-los para dentro depois", diz Faria.

Segundo Miola, os tribunais de conta do país pretendem, a partir dessas informações, cobrar e colaborar com as redes de ensino para a elaboração de procedimentos para identificar alunos sem participação escolar e de ações que ajudem no retorno.

Enquanto estados e municípios enfrentam dificuldade para identificar os alunos em risco e desenvolver ações para que retomem as atividades escolares, o MEC tem se ausentado do assunto durante a pandemia.

Nesta quarta (24), a Comissão Externa da Câmara dos Deputados, que acompanha as ações do MEC, apresentou relatório apontando que, mais de 20 meses após o fechamento das escolas, o órgão do governo federal não realizou nenhum diagnóstico sobre as perdas de aprendizagem dos alunos e evasão escolar.

Procurado, o MEC não respondeu se pretende adotar alguma medida para evitar o aumento do abandono escolar no país.

Diretora vai de casa em casa chamar alunos de volta à escola


 




quarta-feira, 24 de novembro de 2021

Vida de gado

Mariliz Pereira Jorge, 23.nov.2021, Folha de São Paulo

Por que petistas acreditam que Lula e o PT não podem ser cobrados por suas declarações quando relativizam ou enaltecem ditaduras? O ex-presidente deve ser um dos protagonistas da eleição que tem a missão de recuperar a esfacelada democracia no Brasil. O declínio foi também identificado por um levantamento da organização International Idea.

Não é opcional que Lula, além de todos os partidos e políticos de esquerda, se posicione sem titubear em relação a governos autoritários. É assim que já são listados Nicarágua, Venezuela e Cuba no relatório em que o Brasil é apontado como o que mais perdeu atributos democráticos em 2022.

Jair Bolsonaro é um autocrata que flerta com um golpe desde antes da eleição. Para se opor a ele e abraçar um compromisso com as instituições não cabe concessões ou espaço para que se trace paralelos estapafúrdios, como fez Lula ao comparar os 16 anos de governo de Angela Merkel aos do ditador Daniel Ortega.

O ex-presidente diz que não pode julgar o que aconteceu na Nicarágua. Mentira. Pode e deve condenar uma ditadura, inclusive em aceno a eleitores que desconfiam das intenções de sua possível volta.
À direita ou à esquerda, quem acha que não cabe à imprensa e a seus articulistas cobrar da classe política o compromisso irrestrito com a democracia, fala em regulamentação dos meios e demoniza profissionais, vai muito além do direito de exigir que o jornalismo seja imparcial. Mostra que se pudesse colocaria um cabresto e que a cobertura seria, sim, puro chorume ideológico.

Para os extremistas não basta que se critiquem os arroubos autoritários, a incompetência, os crimes contra a população, que sejam denunciados o aparelhamento de órgãos e a corrupção do governo Bolsonaro. Para o petista de cabresto, a imprensa que presta é aquela que Jamais desaprova o partido e muito menos Lula. Gado é gado. E gado sempre acha feio o que não é espelho.


Em tempo: Precisamos conversar sobre Nicarágua, Cuba, Venezuela e China. São ou não são ditaduras?

O que é antipetismo? Jones Manoel


LULA NÃO GOSTA DA DEMOCRACIA? [CONVERSA SOBRE A NICARÁGUA]



terça-feira, 23 de novembro de 2021

4ª onda de covid-19

Mundo está entrando em quarta onda de covid-19, diz diretora da OMS

Aumento no número de casos da doença tem levado países, como a Áustria, a adotar lockdown e a ampliar o cerco contra não imunizados

Ítalo Lo Re, O Estado de S.Paulo, 23 de novembro de 2021

A diretora-geral adjunta de acesso a medicamentos e produtos farmacêuticos da Organização Mundial da Saúde (OMS), a médica brasileira Mariângela Simão, disse nesta segunda-feira, 22, que o mundo está entrando em uma quarta onda da pandemia de covid-19. A declaração foi dada na conferência de abertura de um evento realizado pela Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco).
“O mundo, na verdade, está entrando em uma quarta onda, mas as regiões tiveram comportamento diferente em relação à pandemia”, apontou Mariângela. “Na região das Américas, há uma transmissão comunitária continuada, com pequenos picos, enquanto a Europa está entrando de novo em uma ressurgência de casos”, explicou. A médica não fez previsões específicas para o Brasil, que tem assistido nas últimas semanas a uma queda sustentada de internações e mortes, além de ver avanço significativo na vacinação.

 
A diretora-adjunta da OMS Mariângela Simão. Em evento realizado nesta segunda, a médica brasileira disse que o mundo está entrando em uma quarta onda da pandemia de covid Foto: UNAIDS

O aumento no número de casos da doença tem levado países a ampliar o cerco contra não imunizados — a Áustria, por exemplo, impôs um lockdown específico contra esse grupo. A estratégia visa a evitar o surgimento de novas cepas, como a Delta, identificada originalmente na Índia e depois responsável por acelerar o contágio em diversas regiões do planeta.

UE amplia cerco a não imunizados e grupos antivacina protestam com violência 

“A OMS tem o entendimento neste momento que é provável que a gente tenha uma transmissão continuada do vírus por conta das variantes”, disse a diretora da OMS. Segundo se observa nas curvas epidêmicas, a médica destacou que há países com ondas repetidas, outros com transmissão contínua e há ainda aqueles que tiveram um controle não sustentado no início da pandemia e que agora têm picos agudos de contaminação.

Entre os fatores que continuam influenciando na transmissão do Sars-Cov-2, Mariângela destacou quatro pontos. O primeiro são as variantes mais transmissíveis, como a Delta. Atualmente, conforme mapeamento genético realizado pelo Instituto Todos pela Saúde (ITpS), a Delta corresponde a mais de 97% das variantes em circulação no País.

O segundo aspecto é o fato de grande parte da população seguir sem acesso às vacinas. Dados da OMS apontam que menos de 5% das pessoas de países de baixa renda — grande parte na África e na Ásia — receberam ao menos uma dose de vacina anticovid, mesmo com mais de 7,5 bilhões de doses tendo sido aplicadas no mundo. “A inequidade no acesso à vacina é o maior desafio ético do nosso tempo”, disse Mariângela.

Por fim, o terceiro e quarto fatores seriam o aumento das interações sociais, com o fim das medidas de isolamento, e ainda a desinformação em relação às formas de lidar com o vírus. “A mensagem correta, no momento certo, em formato adequado, vinda da pessoa certa (...) pode auxiliar muito”, apontou a médica.

Entre domingo e segunda, conforme apontou Mariângela, foram confirmados mais de 440 mil casos em todo mundo e um total de 6,7 mil óbitos. Com isso, o planeta chegou a 255 milhões de diagnósticos positivos da doença e já contabiliza 5,1 milhões de vítimas. “É claro que isso reflete uma enorme subnotificação em vários continentes”, disse a diretora da OMS.

Futuro da pandemia

Sobre os possíveis cenários para o futuro, Mariângela destacou o papel das vacinas e disse que, mesmo não tendo impacto significativo na transmissão, elas “diminuem a severidade da doença e a mortalidade”. “A gente já tem dados robustos, como do Reino Unido, que mostram uma dissociação de casos e óbitos, por conta da vacinação”, destacou.

A diretora da OMS apontou que, pelo que se observa pelas informações de hoje, havendo altos níveis de imunidade populacional em todos os países, a mortalidade pela doença poderá reduzir significativamente. Os surtos de contaminação pela doença, acrescentou, até podem continuar acontecendo entre grupos suscetíveis, como os não vacinados, mas para este caso é necessário intensificar o processo de conscientização.

Mariângela reforçou ainda que “a vacinação sozinha não consegue conter transmissão”, o que torna também importante o monitoramento contínuo da situação epidemiológica e a adoção de medidas. “Me preocupa bastante quando vejo no Brasil a discussão sobre o Carnaval, é uma condição extremamente propícia para o aumento da transmissão comunitária. Precisamos planejar as ações para 2022”, disse a diretora da OMS.

Segundo Mariângela, um outro ponto é que há uma “associação forte” entre a cobertura vacinal e o uso de máscaras, o que também acaba sendo um fator de atenção até para países cuja vacinação avançou. “Quanto maior é a cobertura vacinal, menor é o uso de máscaras”, destacou.

domingo, 21 de novembro de 2021

ENEM censurado

MAFALDA É REPROVADA NO ENEM

De Laerte a Ferreira Gullar, de Chico Buarque a Madonna – o que diziam as questões que o governo Bolsonaro censurou em 2019 no Exame Nacional do Ensino Médio

Luigi Mazza, 18 nov 2021,piaui

Mafalda, personagem de quadrinhos criada pelo cartunista argentino Quino, é um sucesso conhecido no mundo inteiro e traduzido em mais de 20 países. Em conversas com a mãe, com o pai e com os amigos de escola, a menina expressa seu inconformismo diante do mundo. Numa dessas tirinhas, publicada originalmente cinquenta anos atrás, Mafalda, prestes a entrar para o jardim de infância, nota que sua mãe está apreensiva com a nova fase na vida da filha. Por isso, Mafalda tenta tranquilizá-la: “Sabe, mamãe, eu quero ir para o jardim de infância e estudar bastante. Assim, mais tarde não vou ser uma mulher frustrada e medíocre como você!” A mãe fica desolada e Mafalda sai andando, feliz. “É tão bom confortar a mãe da gente!”

 
Tirinha excluída da prova do Enem em 2019, Montagem: Paula Cardoso

Famoso, esse diálogo entre Mafalda e sua mãe não agradou a uma comissão montada pelo governo Bolsonaro para avaliar as questões que seriam aplicadas na versão 2019 do Enem, o Exame Nacional do Ensino Médio. “Gera polêmica desnecessária”, concluiu a comissão, ao justificar por que decidiu censurar a questão que trazia a personagem argentina.

Naquele ano, atendendo aos desejos do presidente Jair Bolsonaro, o então presidente do Inep, Marcus Vinícius Rodrigues, montou uma equipe para analisar ideologicamente as questões do exame. O grupo, composto por um procurador de Justiça, um diretor do Inep e um ex-aluno de Ricardo Vélez Rodríguez, então ministro da Educação, se reuniu ao longo de dez dias em março de 2019 e usou carimbos de “sim” e “não” para aprovar ou rejeitar questões. Ao final dos trabalhos, eles excluíram 66 questões da prova, sem consultar a equipe técnica do Inep, que já havia aprovado todos aqueles itens. Numa planilha de Excel, os censores apresentaram justificativas sucintas – e mal explicadas – para suas escolhas.

Como a comissão só usou três palavras, não fica claro o motivo de terem achado “polêmica” a tirinha de Mafalda. É possível deduzir que ficaram incomodados com uma interpretação feminista da história em quadrinhos. Também não se sabe mais detalhes da questão. Nenhuma das perguntas foi divulgada. Isso porque elas não foram deletadas do Banco Nacional de Itens; elas apenas não foram utilizadas na prova daquele ano. No futuro, essas questões poderão aparecer no Enem, e, por isso, precisam permanecer em sigilo.

A piauí, no entanto, teve acesso a um documento até hoje não divulgado em que servidores do Inep pediram a reabilitação de parte das questões censuradas em 2019. Esse contraparecer, ainda que não revele todo o conteúdo das perguntas, permite saber os assuntos que incomodaram o governo, assim como as alegações usadas para retirá-los da prova. Os servidores responsáveis pelo Enem pediram que 38 das 66 questões fossem reabilitadas ou reconsideradas, e concordaram com a exclusão de 28 itens. O contraparecer até hoje não foi avaliado pela presidência do Inep. Com isso, as questões censuradas, embora ainda pertençam ao banco de itens, estão num limbo: não estão totalmente descartadas, mas também não podem ser utilizadas até que haja uma nova decisão.

Os registros de 2019 talvez ajudem a elucidar o que o presidente Jair Bolsonaro quis dizer, na última segunda-feira (15), quando afirmou que o Enem deste ano terá “a cara do governo”. A prova será aplicada nos próximos dois domingos, dias 21 e 28 de novembro, em meio a uma crise sem precedentes no Inep, que levou 37 servidores a entregarem seus cargos. Eles acusam o atual presidente do instituto, Danilo Dupas, de assédio moral, de desrespeito às decisões técnicas dos servidores e de interferência indevida no exame.

Assim como Mafalda, a cantora Madonna foi censurada no Enem de 2019. Uma questão da área de linguagens usava a letra da música Papa Don’t Preach para falar de gravidez na adolescência. Na música, Madonna interpreta uma adolescente que confessa para seu pai que está grávida. “Gera polêmica desnecessária”, disseram novamente os censores. Essa foi a justificativa mais usada de todas: serviu para excluir 28 questões da prova.

No contraparecer, os servidores responsáveis pelo Enem pediram que a questão fosse reabilitada. Explicaram que a música ajuda a explorar “as tensões associadas ao contexto” da gravidez adolescente, e que a questão utiliza os conhecimentos de língua estrangeira “como meio de ampliar as possibilidades de acesso a informações, tecnologias e culturas”. Argumentaram em vão, já que até hoje a questão continua barrada no banco de itens.

Outras seis questões foram censuradas por fazerem referência à ditadura militar. Uma delas citava o poema “Maio 1964”, escrito por Ferreira Gullar, que fala sobre a violência e as prisões políticas ocorridas nas semanas seguintes ao golpe. “Mas quantos amigos presos! / quantos em cárceres escuros / onde a tarde fede a urina e terror”, diz uma das estrofes. No gabarito desse item constava apenas que a poesia tratava do “contexto em que o Brasil se encontrava após o golpe militar”. A comissão de censura do Inep, ainda assim, decidiu excluir a questão do exame. A justificativa? “Descontextualização histórica do texto.”

A suposta “descontextualização histórica” também foi usada pelos censores para excluir uma pergunta que se baseava num poema de Paulo Leminski e tratava da ditadura. Uma outra questão, que citava uma letra de música escrita por Chico Buarque (não se sabe qual), foi censurada com a seguinte explicação: “Leitura direcionada da história / Sugere-se substituir ditadura por regime militar.” Os servidores pediram que a exclusão fosse revista.

 Charge censurada no Enem em 2019 — Crédito: Reprodução/Autor desconhecido

Em alguns casos, os servidores – talvez sabendo que não poderiam comprar todas as brigas – aceitaram os argumentos dos censores. Na questão que falava de Ferreira Gullar, eles concordaram que o gabarito era inadequado porque, segundo eles, o poema revela o “sentimento” de Gullar, “mas não necessariamente esse texto revela o contexto brasileiro”. Também foi censurada uma questão sobre a prática de tortura pelos militares. Ao consentir com a exclusão da pergunta, os servidores comentaram: “Um instrumento que apresente itens que se refiram apenas a um lado da história se mostraria inadequado e polêmico.”

Não foram poucas as charges barradas na prova do Enem. Uma delas mostrava uma pessoa na igreja, se confessando para um padre. “Padre, eu pequei”, diz o personagem. O padre, sentado em frente ao computador, acessando o Facebook, responde: “Eu já sabia…” A religião não era o assunto central da questão. Na avaliação pedagógica feita pelos servidores, o item “provoca o estudante a analisar criticamente e lançar mão de outros recursos linguísticos”. Ainda assim, a comissão de censura excluiu a questão, dizendo que ela “fere o sentimento religioso”.

A mesma justificativa foi usada para censurar uma poesia de Manoel de Barros, usada em uma das questões. A partir da descrição feita pelos servidores, pode-se deduzir que se tratava do poema VII, de O Livro das Ignorãças, em que Barros faz alusão à Bíblia: “No descomeço era o verbo”, diz o primeiro verso do poema, numa referência ao Gênesis. Diante dessa heresia, os censores excluíram a questão e justificaram: “Fere sentimento religioso e a liberdade de crença.”

A comissão de censura do Inep usou a palavra liberdade para proteger sentimentos religiosos. Mas ignorou-a ao excluir da prova de ciências humanas uma charge da cartunista Laerte que, segundo o registro dos servidores, propunha uma “reflexão crítica sobre o reconhecimento à diversidade na sociedade contemporânea”. Ao censurar a charge, a comissão fez o seguinte comentário: “Leitura direcionada da história / Direcionamento do pensamento.” Ao excluir uma outra questão, dessa vez na prova de matemática, os censores do Inep foram além: disseram que o item “gera polêmica desnecessária em relação à ideia de casal”.

Não faltam exemplos exóticos. Uma outra questão, dessa vez na prova de ciências da natureza, falava sobre os cuidados com relação ao vírus HIV e afirmava que o uso de camisinha é “o meio de prevenção mais barato e eficaz” contra a Aids. “Gera polêmica desnecessária / Direcionamento do controle de saúde”, assinalou a comissão de censura do Inep. Na mesma toada, foi excluída uma questão que falava sobre a proliferação de doenças. O item explicava que a hanseníase tende a se espalhar com facilidade em presídios no Brasil, devido à superlotação e às condições precárias em que vivem os presos. “Gera polêmica desnecessária em relação ao sistema penal”, disse a comissão.

Nem mesmo uma questão sobre agricultura escapou à caneta dos censores. Ao se deparar com uma charge sobre a produção de milhos transgênicos, os bolsonaristas não titubearam: “Gera polêmica desnecessária em relação à produção no campo.” A questão foi excluída.

Acomissão de censores foi fiel ao pensamento de Bolsonaro. Questões sobre escravidão, violência policial ou movimentos sociais foram parar na gaveta em 2019. Três questões que falavam de “conflitos sociais” foram excluídas do Enem com a alegação de que faziam “leitura direcionada da história” (essa justificativa foi usada para censurar 19 itens). Um item que falava sobre a abolição da escravatura e a “persistência das condições precárias dos pobres negros no Brasil” foi excluída da prova porque, segundo a comissão, houve uma “descontextualização histórica do texto”. Uma outra questão que falava sobre segurança pública mencionava, em uma das alternativas de resposta, a violência da polícia na Bahia. Por isso, também foi censurada. “Ofensivo à força policial baiana”, explicou o trio de censores.

Discutir feminismo foi proibido na prova. Uma questão de ciências humanas que falava sobre a Marcha das Vadias, mostrando uma foto de mulheres de sutiã durante uma manifestação do grupo, foi barrada por gerar “polêmica desnecessária”. Outra questão que debatia a maioridade penal foi excluída do exame. “Gera polêmica desnecessária a favor da não redução da maioridade penal”, escreveu a comissão de censura, alinhada com o pensamento do presidente. Naquele ano, Bolsonaro pressionava o Senado para aprovar um projeto que reduzisse a maioridade penal para crimes hediondos, uma velha bandeira de campanha.

Também houve cuidado com os assuntos de política externa. Uma questão da área de ciências humanas que falava sobre as relações entre o governo Donald Trump e Israel foi cortada do exame. A justificativa da comissão de censura foi a seguinte: “Leitura direcionada da história / Interferência desnecessária na soberania de outro país.” Já uma pergunta que falava sobre a Liga das Nações e a “implantação da sociedade judaica na Palestina do início do século XX” – tema relevante para uma prova de ciências humanas – foi excluída porque, segundo a comissão, fazia “leitura direcionada de geografia / história”.

Os censores fizeram questão de mostrar sua preocupação com a juventude. Excluíram da prova uma questão de ciências da natureza que versava sobre o canibalismo entre animais. “Induz o jovem a comportamento antissocial”, justificou a comissão de censura do Inep.

O governo também garantiu que não se falasse sobre armas de fogo no Enem. Na área de linguagens, um texto falava sobre uma tragédia ocorrida em 2013, na cidade de Burkesville, nos Estados Unidos: um menino de 5 anos disparou acidentalmente um fuzil que havia ganhado de presente e matou sua irmã mais nova dentro de casa. O objetivo do item, segundo os servidores, era discutir o risco existente “em ambientes domésticos em que há a possibilidade de acesso à arma por crianças”. Mas a comissão de censura do Inep não achou que o tema deveria ser apresentado aos 5,1 milhões de alunos que se inscreveram no Enem em 2019. A questão foi banida da prova sob a alegação quase onipresente nas justificativas dos censores: “polêmica desnecessária.”

......

O novo Enem
Presidente Jair Bolsonaro anunciou que finalmente o Exame Nacional do Ensino Médio está a cara do seu governo

Marcelo Rubens Paiva, O Estado de S.Paulo, 19 de novembro de 2021

Depois de uma limpa no Inep, órgão infiltrado por comunistas, petistas e gays, o presidente Jair Bolsonaro anunciou que finalmente o Exame Nacional do Ensino Médio está a cara do seu governo. Abaixo, perguntas que poderão estar na próxima prova.

Complete a frase. A floresta Amazônica não queima porque ____________.
( ) chove muito ( ) é úmida
( ) é molhada ( ) governo Bolsonaro não deixa

A Amazônia hoje está igual a _______.
( ) 1500 ( ) 1490 ( ) 1501 ( ) quando Cabral chegou

Quem traiu o Messias foi ________.
( ) Judas ( ) CNN ( ) General Santa Cruz ( ) Sérgio Moro

Resolva a questão. “Se 5% é positivo e o ano passado foi 4% negativo, crescemos __.”

( ) 9% ( ) 3 ao quadrado%  ( ) mais do que no tempo do PT ( ) 5 + 4%

O regime comunista brasileiro foi liderado por ____________.
( ) William Bonner ( ) Lula  ( ) Dilma ( ) Marighella

O pior amigo do homem é __. ( ) a mídia ( ) a ema ( ) João Doria ( ) Wagner Moura

O melhor amigo do homem é ________.

( ) militar ( ) Véio da Havan () Arthur Lira ( ) a cloroquina

Coronel Brilhante Ustra é considerado herói porque combateu _________.

( ) comunismo ( ) Renan Calheiros ( ) esquerdas ( ) Felipe Neto

Todo jornalista ____________.

( ) tem cara de boiola ( ) deveria perguntar antes para a mãe ( ) faz mimimi ( ) é comunista

A Rede Globo é ________.

( ) lixo ( ) caca ( ) porcaria ( ) comunista

Complete a frase: “_______ acima de tudo”.

( ) Carlos ( ) Jair Renan ( ) Eduardo ( ) Flávio

Vacina contra covid _________.

( ) causa autismo ( ) transmite aids ( ) transforma em jacaré ( ) tem chip comunista

Os índios querem ____________.

( ) shopping ( ) garimpeiros ( ) comer Torre de Pizza ( ) plantações de soja

Em 7 de setembro de 2021 na Paulista houve a ________ manifestação da História:

( ) maior ( ) mais cheia  ( ) mais bonita ( ) mais lotada

Os melhores presidentes da História foram Jair Bolsonaro e _______.

( ) Médici ( ) Costa e Silva ( ) Geisel ( ) Figueiredo

A China é _________.

( ) inimiga, porra! ( ) comunista ( ) do MBL ( ) de gente daquilo pequeno

Todo artista ________.

( ) mama ( ) faz mimimi ( ) é boiola ( ) é petista


sábado, 20 de novembro de 2021

Tólstoi - Dostoievski

Tolstói-Dostói

Esse foi um dos vários Fla-Flu com que topei na vida; nunca me fez sentido cotejar aqueles dois gigantes do século 19

Sérgio Augusto, O Estado de S.Paulo, 20 de novembro de 2021

Era assim, com atrevida intimidade e ditongos acentuados, que nos meus tempos de colégio nos referíamos à granítica zaga da literatura russa. Tolstói vs. Dostói foi um dos vários Fla-Flu com que topei na vida. Outros: Marlene-Emilinha, Drummond-João Cabral, Machado-Alencar, Clair-Renoir, Pelé-Garrincha. Sempre indiferente ao resultado. Até que um dia, no confronto Tólstoi-Dostoievski, alguém replicou "Turgueniev", e a brincadeira mixou para sempre.

 
Autor de obras como 'Crime e Castigo' e 'Os Irmãos Karamazov' e 'O Idiota', Fiódor Dostoiévski (1821-1881) é um dos principais escritores russos de sua geração Foto: Reprodução

Nunca me fez sentido cotejar aqueles dois gigantes do século 19, menos ainda em escala futebolística. Nem sequer agora com o bicentenário de Dostoievski coincidindo com a volta do Botafogo à Série A. (Segundo o devaneio taxonômico do poeta e alvinegro Paulo Mendes Campos, Dostoievski era – ou teria sido – botafoguense e Tólstoi torceria pelo Flamengo.)

A rivalidade é antiga, despontou na Rússia e, aqui, durante o Estado Novo, quando as livrarias se encheram de romances russos traduzidos do francês, do italiano e do inglês, praxe rompida preliminarmente pela editora Cultura, do letão Georges Zelkoff, bem ruinzinho de português, e, para valer, só mesmo depois que Boris Schnaiderman traduziu Os Irmãos Karamazov para a Editora Vecchi, em 1944.

Leitura da alta adolescência, familiarizei-me com Dostoievski não pelas edições da José Olympio, assinadas por escritores como Rachel de Queiroz e Rosário Fusco, e sim quando a Aguilar lançou suas obras completas.

Nossas esquerdas, de algum modo influenciadas pela implicância dos soviéticos com Dostoievski, apegaram-se mais a Tólstoi. O restante do espectro – onde cabiam nacionalistas, carolas e até comunistas – preferiu o controverso gênio de São Petersburgo, que mais fundo mergulhou na alma humana e seus conflitos com o vício, a solidão, a pobreza, a sordidez e a redenção, e diagnosticou melhor do que Tólstoi as insânias da modernidade.

Aprendi com Edmund Wilson que “raskolnik” quer dizer dissidente em russo. Por suas ideias algo raskolnikovianas (via o socialismo ateu e o capitalismo como galhos da mesma árvore), Dostoievski caiu em desgraça nas duas primeiras décadas do domínio bolchevique. “Não perco tempo com porcaria”, reagiu Lênin a uma pergunta sobre o autor de Crime e Castigo, que, aliás, qualificou de “vômito moralizante”. Que eu saiba, só reconheceu algum valor no verismo de Recordações da Casa dos Mortos. No calor dos expurgos stalinistas, os ataques ao “inimigo ideológico” aumentaram. Vilipendiado nos congressos de escritores soviéticos, em 1934 e 1935, só acabou reabilitado depois da morte de Stalin.

A quem duvidar que ele seja mais atual do que Tólstoi, recomendo a leitura de O Grande Inquisidor, no final de Karamazov. Até o bolsonarismo aquela metafórica narrativa inquisitorial, ambientada na Sevilha do século 16, é capaz de explicar. 


O botafogo de Dostoievski e outros intelectuais na terrinha

 João Moreira Salles foi quem mais entendeu a alma botafoguense

Sérgio Augusto, O Estado de S. Paulo, 27 de novembro de 2021

 
Time do Botafogo retratado pelo pintor Rubens Gerchman nos anos 1970. Imagem: Rubens Gerchman

"Com base em que Paulo Mendes Campos deduziu que Dostoievski era botafoguense?”, cobrou-me um leitor depois de ler um comentário sobre Dostoievski e Tolstoi que aqui fiz no sábado passado.
Bem, o poeta explicou sua idiossincrática taxonomia lítero-futebolística numa crônica para a revista Manchete com o título de O Botafogo e Eu (tem, de graça. no Portal da Crônica do Instituto Moreira Salles), publicada em agosto de 1962, poucas semanas depois do bicampeonato mundial do Brasil no Chile e a quatro meses do bicampeonato do Botafogo no certame carioca daquele ano. Torcedor do Glorioso, Paulinho se orgulhava de “partilhar defeitos e qualidades comuns” com o clube da estrela solitária. 

“A mim e a ele” – escreveu –“soem acontecer sumidouros de depressão, dos quais irrompemos eventualmente para a euforia de uma tarde luminosa”. Luminosa como a tarde do último domingo, quando o Botafogo, quebrando penoso jejum, conquistou mais um campeonato, com uma rodada de antecedência. 

Este título, porém, o cronista-poeta, morto há 30 anos, não pôde, hélàs!, comemorar. Mas eu, que me afastara do futebol há uns três anos, por não suportar mais a ruindade dos times e a cafonice dos atletas, não apenas do Botafogo, voltei provisoriamente às lides, mais em deferência a alvinegras glórias passadas e à memória do poeta-cronista do que por qualquer outra motivação. O que havia de comum entre Paulinho e o Fogão? 

“O Botafogo, às vezes, se maltrata, como eu; é meio boêmio, como eu; tem um pé em Minas Gerais, como eu; tem um possesso, como eu; é mais surpreendente do que consequente, como eu; é um tanto tantã (que nem eu); e a insígnia de meu coração é também uma estrela solitária”, alinhou o poeta.
O aludido “possesso” era o atacante Amarildo, apelido que lhe deu Nelson Rodrigues durante a Copa do Chile, pensando, é claro, nos demônios de Dostoievski. 

Segundo Paulinho, também seriam botafoguenses Michelangelo, Stendhal, Bach e Rimbaud. Influenciado pela capa de uma publicação que em 1968 incrustou Orson Welles num escudo do Botafogo, ousei acrescentar o cineasta àquela formidável torcida imaginária. Pelos triunfos e revezes que sofreu na carreira, pelas tragédias que protagonizou, no palco, na tela e na vida real, Welles, convenhamos, não podia torcer por outro clube carioca.

 E não torceu, aderindo ao Glorioso ao passar seis meses no Brasil em 1942, para filmar o malfadado É Tudo Verdade. Soube da história por meu amigo Nelson Paes Leme, que a ouviu de seu pai, Luiz, um dos fundadores da UNE, que, com outros jovens ligados à alvinegra família Aranha, convenceu Welles a “virar Botafogo”. 

A cabala consumou seu objetivo na Festa da Mocidade, uma espécie de Congresso de Ibiúna do Estado Novo, realizada no legendário Calabouço, vizinho ao Aeroporto Santos Dumont. Do resto da catequese deve ter-se ocupado o também poeta, boêmio e botafoguense Vinicius de Moraes, inseparável cicerone de Welles em sua estada no Rio. 

Vinicius era um dos craques do imaginário time que sublimei, com a camisa do Botafogo, para um livro sobre o Fogão, publicado há quase 20 anos. Era um ‘dream team’ formado por artistas e intelectuais que – eis a diferença – de fato torceram ou ainda torcem pelo alvinegro. No gol, Augusto Frederico Schmidt; na zaga, ao lado de Vinicius, outro bardo, Olavo Bilac; na intermediária, Paulo Mendes Campos, Fernando Sabino e Clarice Lispector; no ataque, Glauber Rocha, Otto Lara Resende, Luís Fernando Verissimo, Ivan Lessa e o professor Antonio Candido. 

No banco, mais um punhado de craques. Técnico: João Saldanha. Comissão técnica: Armando Nogueira e Sandro Moreira. Agachadinho na frente do brioso esquadrão, no desenho que o alvinegro Aroeira fez para o livro, o mascote da equipe, João Moreira Salles, que, diga-se, entende o Botafogo e sua transcendência melhor do que ninguém.