Louverture, líder da maior rebelião negra da história
Biografia mostra como ex-escravo se tornou a liderança mais radical da Era das revoluções
Thiago Krause, FSP, 08/10/2021
Resumo: Nova biografia ilumina o radicalismo potencial da Era das Revoluções (1776-1825) a partir da trajetória de um personagem excepcional: Toussaint Louverture, líder da maior e mais bem-sucedida rebelião escrava da história. Escravo até os 25 anos, tornou-se governador da ilha francesa de Saint-Domingue (atual Haiti) nos anos 1790 e um dos mais eloquentes defensores da liberdade.
A escrita biográfica coloca questões incômodas ao historiador. Utilizar um personagem como fio condutor da narrativa pode esconder fatores econômicos, culturais e sociais mais amplos e colocar um peso desproporcional nas ações de um indivíduo.
Esse perigo é ainda maior quando se trata de uma figura de destaque: um livro sobre um general e governante soa perigosamente próximo da “história dos grandes homens”, abandonada há quase um século pela historiografia de ponta.
Entretanto, essas mesmas características tornam biografias um dos gêneros preferidos de leitores não especializados, pois tendem a adotar estratégias narrativas lineares e a produzir empatia para com o biografado, facilitando a imersão na época retratada.
Há muito interessado em líderes franceses, como Charles de Gaulle e Napoleão, mas também no republicanismo do século 19, o professor de Oxford Sudhir Hazareesingh, 59, nascido no arquipélago africano das Ilhas Maurício, oferece ao leitor um belo exemplo do gênero biográfico em "O Maior Revolucionário das Américas".
Baseado em ampla pesquisa de arquivo, o livro é um poderoso exame da Era das Revoluções (1776-1825) a partir de um de seus personagens mais importantes: Toussaint Louverture.
Nascido escravizado em um engenho de açúcar na ilha francesa de Saint-Domingue (atual Haiti) em torno de 1740, baixo e magro, ascendeu a líder rebelde, general e governador na década de 1790, tornando-se um dos homens mais famosos da época. Mesmo assim, é menos conhecido hoje do que George Washington, Robespierre e Napoleão Bonaparte, com quem foi frequentemente comparado em vida.
É parte do silenciamento a que a Revolução Haitiana foi submetida: como notou o antropólogo Michel-Rolph Trouillot, o racismo e o eurocentrismo tornaram tão difícil compreender como uma revolução negra havia vencido os impérios coloniais e abolido a escravidão que acabaram por apagá-la da história.
Nas últimas décadas, porém, sua centralidade foi novamente reconhecida, tanto pela importância de Saint-Domingue, a maior exportadora de produtos tropicais em 1790, quanto pelo radicalismo do movimento, que reverberou por todo o mundo atlântico.
Do tamanho de Alagoas, a parte francesa da ilha devia sua prosperidade à violenta exploração de 500 mil escravizados. Eles representavam 90% da população, enquanto o restante era dividido entre brancos e livres de cor. Estes estavam sujeitos a uma legislação crescentemente discriminatória; mesmo assim, eram proprietários de um quarto dos cativos da colônia.
Já na época pré-revolucionária é possível entrever a excepcionalidade de Toussaint: herdara o prestígio do pai (membro de uma linhagem importante do reino africano Daomé) e conquistara fama como um exímio cavaleiro. Obteve a confiança do gerente da plantation e conseguiu a alforria com cerca de 25 anos, alfabetizando-se em seguida.
Era famosamente católico, mas também interessado em saberes africanos. É difícil determinar as fontes de sua oposição à escravidão, mas o biógrafo a localiza na experiência do cativeiro e nas formas de resistência insulares, como o quilombismo (formação de comunidades de escravizados fugitivos) e o vodu.
Se o autor exagera ao identificar “uma cultura revolucionária madura” (pág. 61) antes de 1790, no que era apenas resistência perene ao cativeiro, afasta-se corretamente do eurocentrismo ao não atribuir o antiescravismo à difusão das ideias iluministas, mesmo porque os negros de Saint-Domingue iriam além dos maiores sonhos, ou pesadelos, dos filósofos franceses.
A revolta surgiu da interação entre práticas negras e a singular conjuntura revolucionária iniciada em 1789, que permitiu a radicalização de ideias já existentes, mas que não encontravam espaço em razão da dominação escravocrata. Como notou o historiador Reinhard Koselleck, esta era uma época de aceleração do tempo, em que as transformações ocorriam em velocidade inédita.
Aproveitando as possibilidades abertas pelo colapso do Antigo Regime, cada grupo buscou implementar seu projeto político particular para a ilha: latifundiários reivindicavam autonomia, brancos pobres queriam representação política e livres de cor demandavam igualdade civil, esgrimindo a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão.
Estes se rebelaram contra a intransigência branca, mas seu movimento foi violentamente reprimido. Enquanto isso, os abolicionistas não passavam de um grupo gradualista e ineficaz na metrópole.
Mesmo assim, o lema do discurso revolucionário — liberdade, igualdade e fraternidade — ecoava entre os escravizados, que aproveitaram a fragilidade momentânea dos setores dominantes para dar início a uma gigantesca rebelião em agosto de 1791.
Profundamente radical ao questionar a estrutura socioeconômica escravista, o movimento não era necessariamente republicano: pelo contrário, inicialmente o monarquismo predominava.
O autor da biografia, Sudhir Hazareesingh, atribui essa característica à percepção de que o rei podia servir como um contrapeso aos escravocratas e à fraqueza do abolicionismo entre os revolucionários, mas minimiza um fator fundamental salientado há quase 30 anos pelo historiador John Thornton: os escravizados (em sua maioria oriundos da região Congo-Angola) traziam consigo uma cultura política monarquista, que pressupunha a reciprocidade entre governantes e governados e também influenciou a ação política subalterna em Saint-Domingue.
Toussaint provavelmente exerceu um papel decisivo desde o início e demonstrou mais convicção que seus companheiros na defesa da abolição. Essa ideia ganhou força primeiro, portanto, entre os negros, mais do que entre os europeus supostamente civilizados. Ao mesmo tempo, Toussaint protegeu os brancos da violência servil, prenunciando seu projeto de “fraternidade entre homens de todas as cores”.
O envio de uma força repressora francesa empurrou os revolucionários negros para a aliança com os espanhóis (que controlavam a outra metade da ilha, atual República Dominicana). Toussaint ascendeu em meio ao caos, demonstrando extraordinária coragem, excepcional carisma e genialidade estratégica.
Aqui é preciso pedir desculpas pelo excesso de adjetivos (pecado que o livro comete com ainda mais frequência que este resenhista), mas a vida do biografado o exige.
Acossados por espanhóis, uma invasão britânica, colonos escravocratas e escravizados rebelados, os novos comissários republicanos (a essa altura, Luís 16 já havia sido guilhotinado) em Saint-Domingue aceitaram a abolição como preço a pagar para a manutenção do domínio sobre a ilha.
Assim, Toussaint passou para o lado francês em 1794 e liderou a expulsão de invasores e rivais nos anos seguintes, tornando-se o líder inconteste da ilha no final da década através de manobras militares, políticas e diplomáticas descritas em detalhe no livro.
Seu carisma excepcional impressionava franceses e estrangeiros, brancos e negros: um jornal londrino o descreveu em 1798 como “um negro nascido para justificar as reivindicações de sua raça, e para demonstrar que o caráter de um homem independe de sua cor” (pág. 204).
Um dos pontos altos da biografia é demonstrar, através do extenso uso de cartas e discursos de Toussaint, a construção de uma ideologia centrada na liberdade e na disciplina que se pretendia eminentemente francesa.
Hazareesingh aproveita a riqueza da documentação legada por seu biografado, sem paralelo entre figuras negras nas Américas coloniais. O efeito colateral é que acaba por assumir demasiadamente o ponto de vista de seu protagonista.
Ainda mais inovadora é sua análise de como esse discurso republicano de liberdade foi incorporado por soldados e pela população da ilha a partir de meados da década de 1790: é o que autor chama de “ordem louverturiana”, refletindo a ênfase, por vezes excessiva, que dá a seu personagem como motor dos processos históricos.
Tratava-se de uma fusão das ideias libertárias oriundas da experiência colonial-escravista e da decomposição do Antigo Regime europeu. Nesse sentido, eram mais do que os “jacobinos negros” descritos na clássica obra de C. L. R. James, pois autores de uma síntese original mais radical que a da matriz metropolitana, livre do racismo paternalista dos brancos. Toussaint enfatizou essa diferença, astutamente observando que os verdadeiros bárbaros eram os que se julgavam civilizados, mas defendiam a escravidão.
O abolicionismo negro era mais convicto, pois não derivava de sentimentos humanitários para com indivíduos distantes, mas da rejeição à violência do cativeiro a partir da própria vivência. Leitores especializados sentirão, porém, falta de uma contextualização comparativa que insira Saint-Domingue na Era das Revoluções, da qual foi parte crucial.
A confiança ilimitada na sua própria indispensabilidade fez com que Toussaint se tornasse cada vez mais autoritário, numa deriva reconhecida a contragosto pelo biógrafo. O constante embate contra os impulsos colonialistas da metrópole e as emergências militares muito contribuíram para esse desenvolvimento.
Sua principal manifestação foi a forma como lidou com os trabalhadores, pois buscou mantê-los nas plantações através de um sistema de vigilância brutalmente coercitivo: imaginava Saint-Domingue como uma exportadora de produtos agrícolas, que financiariam o exército e uma elite de colonos brancos e militares negros.
Um quarto da produção pertenceria aos libertos, mas estes desejavam, como em todas as sociedades pós-escravistas, tornar-se camponeses e produtores autônomos. Também haviam incorporado o discurso republicano, percebendo-se como cidadãos portadores de direitos.
Toussaint havia fomentado esse dinamismo democrático, mas não aceitava desafios ao seu poder, como se percebe pela Constituição autoritária que fez aprovar em 1801. Sua crença de que precisava de autonomia para defender os interesses de Saint-Domingue fez com que entrasse em rota de colisão com o general com metade de sua idade que havia tomado o poder na França em 1799: Napoleão Bonaparte.
A família de Josefina, esposa de Napoleão, tinha engenhos de açúcar, e seus aliados defendiam que o comércio colonial era essencial para a prosperidade da França. Napoleão também era declaradamente racista: “Sou a favor dos brancos, porque sou branco; não tenho outra razão, e esta me basta” (pág. 392).
Vila Fantasma no Haiti (Fotos de Andres Martinez Casares - Reuters)
A queda de Toussaint é bem narrada como uma tragédia no livro, que salienta as traições sofridas por seu protagonista. Rebeliões de trabalhadores e comandantes militares insatisfeitos (inclusive seu sobrinho) com o autoritarismo do governador enfraqueceram-no em 1801.
Em seguida, a paz entre França e Grã-Bretanha permitiu que Napoleão enviasse uma grande expedição para restaurar o domínio branco sobre a ilha e, em última instância, a própria escravidão. Toussaint foi atraiçoado por subordinados ressentidos, como Jean Jacques Dessalines, capturado e levado para a Europa, onde morreu maltratado em 1803.
A resistência iniciada por Toussaint continuaria, permitindo que Dessalines proclamasse a independência de Saint-Domingue em 1804, que se tornou então a nação independente do Haiti.
O primeiro Estado negro soberano das Américas seria, porém, muito diferente do imaginado por Toussaint. Em vez da integração ao mercado internacional através da exportação de açúcar, a população haitiana realizou o projeto sonhado por quase todos os libertos das Américas e transformou-se em um campesinato que produzia primariamente para subsistência.
Era uma forma de conquistar a autonomia que havia sido negada durante o cativeiro: se nas primeiras décadas do século 19 essa opção possibilitou o crescimento da população, a longo prazo dificultou a transição para uma economia moderna.
Em termos diplomáticos, Toussaint desejava uma ilha capaz de negociar em pé de igualdade com as potências imperiais, mas o Haiti acabou sendo forçado pela França a pagar uma enorme indenização — estimada pelo economista Thomas Piketty em 40 bilhões de euros em valores de hoje, ou três vezes o PIB do país — para ter sua independência reconhecida.
O pagamento da dívida não só extraiu riqueza do Haiti e enfraqueceu a capacidade de investimento do Estado, como também justificou as frequentes interferências estrangeiras no país, culminando na ocupação pelos EUA entre 1915 e 1934.
Ainda mais grave, a concentração de poder nas mãos do governante e o peso político do Exército não foram contrabalançados pela participação política local como na ordem louverturiana dos anos 1790: em consequência, regimes autoritários foram a norma, tendo como exemplo máximo a ditadura dos Duvalier (pai e filho) entre 1957 e 1986. O Haiti não seria, então, um Estado-Nação, mas um Estado contra a Nação, como escreveu com tristeza o antropólogo Trouillot.
Mesmo assim, o espectro de Toussaint e d“os desgraçados sucessos de São Domingos” (no dizer de José Bonifácio em 1823) continuaria a inspirar radicais das Américas e além: dentre outros, Frederick Douglass, Aimé Césaire, Fidel Castro, Pablo Neruda, e o poeta angolano Viriato da Cruz expressaram sua admiração pelo revolucionário caribenho.
Como disse Toussaint ao ser degredado para a França, evidenciando mais uma vez a justeza do título do livro, “atacando-me, os senhores cortaram a árvore da liberdade negra em Saint-Domingue. Mas ela voltará a brotar de suas raízes, pois elas são muitas e profundas” (pág. 423).
Mais do que um “Espártaco Negro” (título original da obra), Toussaint foi uma figura profundamente original e o líder mais radical da Era das Revoluções.
Biografia esmiúça vida do personagem mais extraordinário da Revolução Haitiana
BLACK SPARTACUS - 1ªED.(2021), Sudhir Hazareesingh, Penguin Books
Mais sobre a Revolução Haitiana aqui
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