Em novo livro, Valter Hugo Mãe diagnostica 'As doenças do Brasil'
Digo que fiz 50 anos, mas ainda não cicatrizou. Estou com a idade em ferida aberta.
Autor português, que participa virtualmente da Flitabira neste domingo, escreve romance ‘perturbador’ passado no período colonial e fala sobre envelhecimento: ‘idade em ferida aberta’
Ruan de Sousa Gabriel, O Globo, 31/10/2021
O escritor português Valter Hugo Mãe Foto: Agência O Globo
O colonialismo português está inscrito na própria biografia de Valter Hugo Mãe, que nasceu em Angola, em 1971, quando o país africano ainda era colônia lusa. Hoje, ele conversa com o pensador indígena Ailton Krenak no Festival Literário Internacional de Itabira (Flitabira). De Vila do Conde, em Portugal, falou por telefone ao GLOBO de seu encanto com o pensamento indígena e desejou que o país possa superar “tempos de ódio” e “regressar à alegria”.
Você completou 50 anos mês passado. Em 2011, veio à Flip (Festa Literária Internacional de Paraty) e disse que, à medida que os 40 anos se aproximavam, desejava mais em ter filhos. Que desejo os 50 anos lhe trouxeram?
Digo que fiz 50 anos, mas ainda não cicatrizou. Estou com a idade em ferida aberta. Em todos os lugares para onde vou, alguém aparece com um bolo para celebrar. Faço muito mal aniversário. Ser um senhor de 50 anos parece solicitar de mim demasiada responsabilidade. Senti que precisava conquistar algo que fosse muito importante para mim. Coloquei como objetivo fundamental terminar o livro sobre o Brasil antes de completar a década. Pensei: vou envelhecer, mas vou criar uma recompensa. Acho sinceramente que é meu romance mais robusto, no qual alcanço uma linguagem mais exuberante e minhas capacidades imaginativas e poéticas me satisfazem mais.
Está ansioso para saber o que os brasileiros vão achar do livro?
Estou. Não quero que os leitores fiquem incólumes ao que escrevo. “As doenças do Brasil” vai levantar questões perturbadoras. Já disse milhões de vezes que adoro o Brasil e está inscrito na minha identidade, mas não queria que este livro fosse uma carta de amor inofensiva, uma carícia.
O título faz referência a um sermão do Padre Antônio Vieira (1608-1697), que afirma que as doenças do Brasil são “tomar o alheio, cobiças, interesses, ganhos e conveniências particulares, por onde a justiça se não guarda, e o Estado se perde”. O país continua sofrendo dessas doenças?
Muito. Ao contrário do vasto corpo da Europa, que está ressequido, um pedregulho com construções museológicas, o Brasil ainda é fisicamente rico. Vocês vivem em cima de um tesouro, que é apetecível para todas as usurpações e espoliações. O Brasil parece chamado constantemente ao purgatório, mas conserva os traços de um país menino, que possibilita certo sonho. Sou casmurro e ainda espero muito do Brasil. Quero ver estes tempos de ódio passarem e o país regressar à alegria de anos recentes.
Por que escrever sobre o encontro de indígenas com negros que fugiam para quilombos na Amazônia?
Para ter uma visão mais perene do que podiam ser as essências brasileiras, foi-me impossível afastar do imaginário os povos indígenas. Comecei a entender a importância que eles dão à palavra como criadora. Para um escritor, isso é uma profunda maravilha. A literatura quer competir com Deus pelo direito de criar pela palavra. Pensei que fazia sentido escrever sobre a criação do Brasil do ponto de vista dos povos originários. Eles habitavam seus territórios sem imaginar que seriam confiscados a fazer parte desse nome, “Brasil”. Como terá sido entenderem-se parte desse nome criador do qual já não podem mais sair? Quis que meu livro fosse independente da “fera branca”, que fosse a história do encontro dos povos vermelhos com os povos negros, resistindo ao mesmo inimigo.
Como o pensamento indígena inspirou o livro?
O pensamento indígena é um poema pronto. Os poemas de que sou capaz são postiços, encenações de uma mente estudiosa. Já as convicções dos povos indígenas trazem uma poética que parece derramar das árvores com a naturalidade de uma macieira que produz uma maçã. A distância que existe entre as nossas filosofias e as deles só é comparável ao deslumbre da poesia. Leituras de Davi Kopenawa e Ailton Krenak me inspiraram muito. A dada altura, parei de ler e até de procurar Krenak, porque cada mensagem dele me deslumbrava. Precisava de margem para inventar.
O pensamento indígena pode nos ajudar a enfrentar as doenças do Brasil?
Sem dúvida. O pensamento indígena é profundamente equilibrado com o planeta, em paz com as urgências da sobrevivência da Humanidade. Não temos que debater a legitimidade de eles viverem como vivem, mas a legitimidade de nossas formas de vida tão ofensivas.
Por que quis debater os traumas do colonialismo?
Portugal desistiu de pensar o passado recente. Estamos nos tornando mais europeus, preocupados em trabalhar, pagar conta, assinar Netflix, comprar roupa na Zara. Mas colonizar é dispor do nativo, em seu próprio território, como se ele nos fosse uma coisa útil. É nojento. É claro que maravilhas, como o Brasil, também foram criadas nesse processo histórico, mas devemos nos lembrar de tudo começou com um ato de violência.
Nenhum comentário:
Postar um comentário