Fazer cinema no Brasil nesse momento terrível é um privilégio', diz Karim Aïnouz
Diretor premiado em Cannes lança filme rodado na Argélia sobre a mãe, que o criou sozinha, e diz que não pretende documentar distopia do governo Bolsonaro para não contribuir com discurso da desesperança
Mônica Bergamo. Por Lígia Mesquita, Folha de São Paulo, 23/10/2021
O Brasil tem mais de 11,5 milhões de mães solo, segundo o levantamento mais recente do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística). A cearense Iracema Lima Aïnouz foi uma dessas mulheres que criam sozinhas seus filhos.
No início dos anos 60, grávida de seu primeiro e único filho, a bióloga retornava sozinha ao Brasil após uma temporada de estudos nos Estados Unidos. O marido, um engenheiro hidráulico argelino que conhecera em solo norte-americano, prometeu que logo a encontraria em Fortaleza (CE), mas nunca mais apareceu.
Fruto desse relacionamento, o cineasta Karim Aïnouz, 55, viria a conhecer seu progenitor só aos 18 anos, em Paris, já criado e educado pela mãe, a avó e quatro tias. Quase 40 anos depois, achou que era hora de conhecer outra parte dessa história: o país de origem do pai. Em 2019, desembarcou em Argel, na Argélia.
O cineasta cearense Karim Aïnouz, em registro de Bob Wolfenson; Karim dirigiu 'A Vida Invisível', filme ganhador da mostra Um Certo Olhar, do Festival de Cannes, em 2019 - Bob Wolfenson
A viagem de dois meses em busca de suas origens no início de 2019 resultou no longa autobiográfico "O Marinheiro das Montanhas". https://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/2021/07/karim-ainouz-em-cannes-reflete-sobre-sua-origem-com-marinheiro-das-montanhas.shtml Após estrear no Festival de Cannes deste ano, a produção da VideoFilmes com Globo Filmes e GloboNews e distribuição da Gullane será exibida na 45ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, em sessões neste domingo (24) e no dia 2 de novembro, e no dia 3 de dezembro, no CineCeará, em Fortaleza.
"Achava que seria um filme sobre o meu pai, mas descobri que era sobre minha mãe. Queria entender de onde era aquele homem por quem ela se apaixonou", diz Aïnouz, por videochamada de Berlim, onde vive desde 2009. "É um retrato dela, de como foi reconstruir a vida desse lugar de abandono, de mãe solo. E também um retrato da Argélia pós-revolução [pela independência da França]."
Iracema Lima Aïnouz, mãe de Karim, em cena do filme autobiográfico do diretor, 'O Marinheiros das Montanhas' - Divulgação
O diretor conta que tomou a decisão de transformar sua história pessoal em cinema por querer que sirva de inspiração. "Ela era uma cientista na época em que as mulheres não podiam estudar, depois foi mãe solo. A história dela não é exceção, muito pelo contrário", diz. Iracema morreu aos 85 anos, em 2015.
A familiaridade com o feminino e sua dor e seu senso de humor, segundo Aïnouz, o ajuda de alguma maneira a criar narrativas visuais com mulheres fortes. Foi assim em "O Céu de Suely", "Abismo Prateado" e "A Vida Invisível", que rendeu ao Brasil, pela primeira vez, o prêmio de melhor filme da da mostra Um Certo Olhar, do Festival de Cannes, em 2019.
Quando estava na Argélia rodando "O Marinheiro das Montanhas", outra mulher cruzou seu caminho quando decidiu participar de uma manifestação contra o governo local no Dia da Mulher: Nardjes A. Ele registrou com o celular a atriz e ativista e saiu do país com um segundo filme, o documentário "Nardjes A.", exibido no Festival de Berlim em 2020.
"Tentei fugir dessas personagens femininas em ‘Praia do Futuro’ [estrelado por Wagner Moura] e ‘Viajo Porque Preciso, Volto Porque Te Amo’ [com Irandhir Santos], mas elas vêm até mim. Acho que é um acerto de contas", diz. "O patriarcado é muito tóxico e a violência que ele engendra parece ‘normal’. Nós que trabalhamos contando histórias devemos jogar luz sobre essas injustiças."
Essa conta com o universo feminino ainda não está zerada. Após levar o prêmio em Cannes, Aïnouz recebeu propostas para projetos internacionais. E diz ter aceitado aquela que lhe apresentou outra mulher com uma história fascinante: Catarina Parr (1512-1548), a última das seis esposas do rei Henrique 8º (1491-1547), da Inglaterra.
Parr ficou viúva duas vezes antes de se casar com o monarca e chegou a ser rainha regente pelo tempo em que ele ficou afastado. Foi uma das principais incentivadoras da Reforma Protestante e a primeira mulher a publicar um livro em língua inglesa assinando o próprio nome.
A produção será estrelada pela atriz norte-americana Michelle Williams, indicada quatro vezes ao Oscar. "É uma personagem fascinante. Ela defendia a educação, tinha ideias revolucionárias, mas fazia isso estando dentro da corte. Tinha um quê de softpower ali", diz.
Para entender a personagem, Aïnouz conta ter se debruçado sobre a história do período colonial da Inglaterra. Fez algumas aulas sobre o tema com um professor do Quênia. A ideia era ter um olhar sobre o período do ponto de vista dos colonizados.
Em novembro, ele se muda temporariamente para Londres, onde começará a produzir o filme de época, sua primeira ficção em inglês. Quando terminar esse trabalho, diz que pretende voltar a contar suas histórias no Brasil. Tem a ideia de falar sobre a juventude de Fortaleza que vive em reformatórios.
Conta que chegou a pensar se deveria filmar de alguma maneira o "terror" do momento atual do país sob o governo Bolsonaro, mas desistiu. "Sei que é um momento importante de abrir câmera, mas tenho mais vontade de tomar as ruas do que filmar. Eu não queria registrar esse momento, queria mudar esse momento", afirma.
"Me parece um ato de privilégio fazer cinema no Brasil hoje tendo tantas urgências", diz. "E sei que falo de um lugar privilegiado, porque não estou acordando num país com gente passando fome e mais de 600 mil óbitos na pandemia, que está sendo destruído e sistematicamente desestabilizado por esse governo."
O cineasta cearense Karim Aïnouz em viagem pela Argélia, onde filmou o longa 'O Marinheiro das Montanhas' - Juan Sarmiento
Aïnouz diz que contribuirá de toda maneira para ajudar a "salvar" o país e eleger Lula, seu candidato em 2022. "É a única opção com capacidade de derrotar esse governo horroroso apoiado totalmente pela elite brasileira. Ajudo a fazer vídeos para a campanha, vou para a rua, faço o que for", fala. "Mas não quero construir discursos que acirrem a desesperança, me interessa mais o porvir. Não quero registrar a distopia do Brasil com esse governo de terror, quero filmar a utopia."
Isso não significa, afirma, que a partir de agora filmará "apenas como ‘Singin’ In The Rain’ [Cantando na Chuva]. "Sei que tá tudo uma merda, que o momento é desesperador, mas acho que vai melhorar. Tenho muito mais esperança do que desesperança."
Seu otimismo com o futuro, diz, continuará mesmo tendo um governo que trabalha pelo contrário. "O mais louco desse regime atual é que não tem alegrias, só tristeza, pose com armas. É também um projeto político tentar destruir nosso brilho, a nossa alegria."
Esse é um dos motivos, segundo o cineasta, para o governo Bolsonaro acabar com políticas culturais, promover censura e atacar a classe artística. "Eles temem a cultura porque falamos de esperança, sensualidade, afeto, amor, alegria. E isso eles não conseguirão nos tirar."
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