quarta-feira, 20 de outubro de 2021

Tesão na alma e a bela velhice

Um dos segredos de uma 'bela velhice' é saborear o tempo presente e se adaptar às mudanças inevitáveis

Mirian Goldenberg, Folha de São Paulo, 20/10/2021

“Já transei para caramba e, agora, tenho mais tesão na alma”, disse Rita Lee em entrevista recente para O Globo.

“Tudo muda o tempo todo. Aos 73 anos, por exemplo, tenho meus cabelos brancos. Já fui loira, já fui ruiva — que era um Sol na cabeça— e agora tenho a Lua comigo. Sinto também um vetor da vida que transforma o desejo. Já transei para caramba e, agora, tenho mais tesão na alma. Um prazer que é despertado por um bom livro, meditação, quando tento me comunicar telepaticamente com irmãos das estrelas, com meus rituais espirituais”.

Na coluna “Velho não quer trepar”, mostrei que a roqueira descobriu novos prazeres na velhice. Ela, que “trepou a vida inteira”, agora tem vontade de ler mais, aprender coisas novas, pintar, lavar louça, arrumar a cama e outras tarefas “fantásticas”. “E hoje estou aqui, velha e dona de casa”, já que Rita não tem mais interesse em “fazer sexo e usar drogas”.


O “tesão na alma” me lembrou de uma entrevista que fiz com o cirurgião plástico Ivo Pitanguy. Com quase 90 anos, ele mantinha uma intensa agenda de compromissos, incluindo aulas, consultas, conferências, congressos e orientação de cirurgias.

“Não penso em me aposentar. Trabalho o dia inteiro com entusiasmo. Não é uma obrigação, é uma escolha diária, é o que mais me dá tesão de viver. Não há melhor preparo para a velhice do que viver intensamente um dia de cada vez. Sempre considerei o tempo presente o meu bem mais precioso”.

Com Pitanguy, aprendi que a beleza da velhice não está na aparência do corpo, mas na essência da alma. E que um dos segredos para ter uma “bela velhice” é saber se adaptar ao tempo presente e às mudanças inevitáveis –e muitas vezes indesejáveis– que acontecem em nossas vidas.

“Pode parecer clichê, mas é a mais pura verdade: para envelhecer bem tem que saber saborear as pequenas alegrias do tempo presente e se adaptar às mudanças. O mais importante para encarar a velhice numa boa é não levar a velhice tão a sério, rir um pouco dela e rir de mim mesmo. Cada problema que aparece eu penso: 'se for só isso, dá para me adaptar'. Se não consigo mais correr, ando um pouco mais devagar, mas continuo andando; se não consigo mais beber como antes, tomo só uma taça de vinho, mas continuo saboreando cada minuto da minha vida”.

Na minha pesquisa sobre envelhecimento e felicidade, já escutei inúmeras vezes: “Eu tenho muito tesão na vida, não quero morrer nunca”, como disse uma pianista de 93 anos:

“A idade cronológica é a idade civil, a que está registrada no cartório, é o dia em que eu nasci. Tem também a idade biológica: o corpo, a saúde, a lucidez, a memória. E tem a idade da alma, que é a mesma desde que eu nasci. Nunca deixei de ser a criança que um dia eu fui. Minha alma só se alimenta de coisas belas e boas: da natureza, da música, da amizade e do amor. Meu corpo pode ter 93 anos, mas a minha alma é eterna e imortal”.
Ela mostra que o “tesão na alma” não é apenas para celebridades.

“O velho que ainda tem projetos de vida pode até ter alguma limitação física, mas a sua alma está plena. Apesar de ter 93 anos, minha alma não é velha, me sinto totalmente plena realizando meus projetos, cantando, dançando, tocando piano, escrevendo, participando de ações de caridade. Minhas filhas falam para eu desacelerar, dizem que não preciso mais fazer tantas coisas. É verdade: eu não preciso mais, mas eu quero. Elas querem que eu pare, mas a minha alma precisa continuar crescendo, aprendendo e amando. Velho é quem se aposentou da vida, quem não tem projetos, quem não tem mais tesão e alegria de viver. Eu não sou velha, sou uma flor do outono”.

Parafraseando Fernando Pessoa, ela brincou: “Todo tesão vale a pena, quando a alma não é pequena”.

Termino então com uma pergunta: Qual é a idade da sua alma?

 Mirian Goldenberg
Antropóloga e professora da Universidade Federal do Rio, é autora de "A Bela Velhice".

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