‘A opressão de gênero é o pilar fundamental para todas as opressões’, diz antropóloga Rita Segato
Leda Antunes, 15/09/2021, O Globo
'Crítica da colonialidade em oito ensaios e uma antropologia por demanda', de Rita Segato, chega ao Brasil pela Bazar do Tempo Foto: Divulgação
“Crítica da colonialidade em oito ensaios” Autora: Rita Segato. Editora: Bazar do Tempo. Tradução: Danu Gontijo e Danielli Jatobá. Páginas: 348. Preço: R$ 65.
Depois de uma espera descrita pela própria autora como “assombrosa”, a obra da antropóloga argentina Rita Segato, 70 anos, finalmente chega às livrarias brasileiras. A editora Bazar do Tempo irá lançar os livros da pesquisadora e docente, que atuou no país por 35 anos, ao longo dos próximos meses, começando agora por “Crítica da colonialidade em oito ensaios”, publicado em espanhol em 2013.
Este livro, segundo Segato, professora emérita da Universidade de Brasília (UnB), tem o público brasileiro como “destinatário natural” porque foi escrito enquanto ela atuava no país e trata de mulheres indígenas, relações raciais, racismo na sociedade e na Academia, entre outros temas.
Coautora de uma das primeiras propostas de cotas raciais no ensino superior brasileiro, Segato se tornou uma referência para o movimento feminista latino-americano, máxima expressa na canção-protesto “Um violador em seu caminho”, criada pelo coletivo chileno LasTesis. Depois de a performance ganhar o mundo em 2019, as ativistas explicaram que a base teórica para suas denúncias eram os conceitos desenvolvidos pela antropóloga sobre violência de gênero.
Em entrevista exclusiva ao GLOBO, ela afirma que a era do patriarcado está no fim e que a prova disso é a reação de grupos fundamentalistas religiosos e de conservadores contra os avanços feministas ao redor do mundo:
— Eles, com sua impaciência em tentar nos barrar, estão dizendo que estamos no caminho certo e próximas do destino almejado.
Por que levou tanto tempo para seus livros serem publicados no Brasil, apesar do seu trabalho no país?
Meu trabalho no departamento de Antropologia da UnB foi apoiado e meu caminho desimpedido de 1985 a 1998. Tudo mudou quando um brilhante estudante do nosso doutorado, negro e baiano do Recôncavo, foi reprovado e perderia sua bolsa. Eu coordenava o programa de pós, e meu temperamento fez com que eu não pudesse me omitir: tinha acontecido uma injustiça. Foi um período difícil, mas que teve um resultado precioso: a redação, em coautoria com José Jorge de Carvalho, orientador do aluno injustiçado, da primeira proposta de cotas numa universidade brasileira, finalmente aprovada em 2003. Nesse mesmo ano, publiquei em Buenos Aires meu primeiro livro sobre violência de gênero, “Las Estructuras Elementales de la Violencia”. Tentei publicá-lo no Brasil, mas a obra foi rejeitada por uma conhecida editora. Infelizmente, atitudes de represália a mim e a minha obra foram surgindo e nunca mais tentei publicar meus livros no país.
A senhora define o público brasileiro como “o destinatário natural” deste primeiro livro. Por quê?
Todos os capítulos foram redigidos durante o período em que fui docente numa universidade brasileira, e todos eles fazem referência a diferentes temas da realidade do país: as mulheres indígenas, o projeto de lei sobre o chamado “infanticídio indígena”, o racismo, as questões racial e psíquica relacionadas ao papel das amas de leite e a persistência contemporânea da instituição da mãe negra, atualizada nas babás das crias da classe média. Apesar da brasilidade desses temas, a análise deles impacta questões de interesse universal e oferece conteúdo a um projeto teórico que propõe um giro decolonial, assim como uma antropologia interpelada pelas perguntas originadas nos interesses daqueles que por muito tempo tinham sido seus objetos de estudo.
A senhora fala em fazer um giro decolonial. O que é a crítica à colonialidade?
A perspectiva da colonialidade do poder coloca no epicentro da sua abordagem a raça, racialização de toda a população do planeta, que se origina no terrível episódio da guerra de conquista e na consequente colonização. O mundo hoje, seus povos e territórios são racializados. E nossa inclinação, especialmente a das universidades, é eurocêntrica. Aprendemos a observar o mundo com olhos que não estão situados na nossa realidade. Por causa da divisão internacional do trabalho intelectual, a produção teórica se encontra no Norte geopolítico, e nós somos encaminhados a nos tornar somente importadores, consumidores e aplicadores de teoria. Os valores, a subjetividade e o poder continuam estruturados pela “colonialidade”, ou seja, pelo viés imposto pela colonização. A perspectiva crítica da colonialidade questiona essa visão desenraizada da nossa real situação.
Sua obra inspirou o hino feminista chileno “Um violador em seu caminho”. Como se sentiu quando seu pensamento se tornou canção de protesto?
Em primeiro lugar, algo que admirei intensamente nas quatro talentosas jovens chilenas que formam o coletivo LasTesis foi o baixo perfil que conservaram apesar de seu sucesso extraordinário; a performance saiu das ruas de Valparaíso e Santiago do Chile para o mundo em um instante. Em sua enxurrada expansiva, fez seu caminho através da Europa, da Ásia e do Oriente Médio, executada em pelo menos 52 países e sua lírica traduzida ao português, basco, catalão, galego, asturiano, grego, alemão, francês, inglês, hindi, turco, árabe, mapuche, quechua e linguagem de sinais. O que chama ainda mais atenção é que tudo isso aconteceu sem qualquer respaldo dos meios massivos de comunicação. Quando vi que LasTesis tinha se inspirado nos meus argumentos, me surpreendi e decidi tentar ver que elementos do meu pensamento estavam representados numa lírica tão concisa. Fiquei perplexa pela capacidade de síntese das autoras ao transformar conceitos em um canto acessível globalmente.
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A senhora diz que o feminicídio é um sintoma da barbárie do gênero colonial-moderno. O que isso que dizer?
Assim como o genocídio é um fenômeno moderno, como bem fez notar o grande estudioso do Holocausto Zygmunt Bauman, o feminicídio e a violência sexual que hoje nos assolam, também são modernos. E a modernidade, como mostrou (o intelectual peruano) Aníbal Quijano, e que eu explico ao longo do livro, é colonial. Ela nos ensinou a visão coisificadora sobre os corpos e a natureza. Essa coisificação é o que autoriza sua predação e seu extermínio.
A senhora entende o patriarcado como um sistema político e não uma cultura. Por quê?
O patriarcado é um sistema político, um ordenamento desigual do mundo, que se esconde por trás de vestiduras religiosas e moralidades variadas. Somente isso poderia explicar sua universalidade através das diferenças civilizatórias, dos mitos, das cosmologias e das religiões. É um sistema de longuíssima duração, que poderíamos chamar de “era”. E o desassossego com que certos empresariados religiosos têm colocado suas legiões na rua em toda a América Latina para tentar deter a nossa marcha anti-patriarcal indica claramente que estamos perto do fim de uma era. Devemos entender esse desassossego expresso em palavras de ordem tipo “abaixo a ideologia de gênero!” como a clara confirmação de que estamos encontrando o caminho para, mediante a derrubada do patriarcado e o desmonte do “mandato de masculinidade”, reorientar a história numa direção melhor e mais benigna para mais pessoas. Eles, com sua impaciência em tentar nos barrar, estão dizendo que estamos próximas do destino almejado.
Há quem diga que a pauta antigênero é uma cortina de fumaça para distrair a opinião pública. Como vê isso?
É um erro de percepção, à direita e à esquerda, daqueles que pensam que os nossos temas não são da mesma importância que os da Política e da Economia, quer seriam temas do "sujeito universal". Isso mostra bem o quanto devemos aprofundar a nossa reflexão, porque revela que não se entendeu ainda que a opressão de gênero é um pilar fundamental para todas as opressões.
A ministra Damares Alves reforça constantemente a necessidade de se combater o infanticídio indígena, um tema que a senhora trata no livro. Como este discurso da ministra pode ser analisado a partir de uma perspectiva crítica da colonialidade?
O tema é tratado no capítulo mais longo do livro. Ali explico como construí a arguição que apresentei na Audiência Pública convocada pela Comissão de Direitos Humanos da Câmara dos Deputados em 2007 sobre o tema. É impossível dar conta aqui dessa complexidade, mas basta dizer que a acusação é falaciosa e injusta. Se pensarmos, por exemplo, que as populações indígenas crescem numa proporção quatro vezes maior que a sociedade brasileira em geral, lutando para recompor sua demografia depois do genocídio, massacres e dispersões que enfrentaram durante 500 anos, entenderemos que tentar representá-los perante a nação e perante o mundo como capazes de assassinar sem dor e “por costume” suas crianças é inaceitável. Essa tentativa de introduzir essa distorção maldosa na imagem dos povos originários do Brasil é, no mínimo, suspeita. A colonialidade dessa visão sobre eles se revela de forma incontestável.
O ministro da Educação, Milton Ribeiro, disse no mês passado que "a universidade deveria ser para poucos". Como a senhora, que é co-autora de uma das primeiras propostas de cotas na educação superior do Brasil, vê esse tipo de posicionamento?
Eu, naturalmente, não concordo. O ministro e eu representamos dois tipos de ética diferentes. Contudo, imaginemos que eu pudesse concordar. Nesse caso, diria a ele que é fundamental entender bem quem são esse “poucos” ao quais ele alude, como e por quem está constituída essa minoria, como é escolhida. Serão os mais convenientes para a nação brasileira? Não estaremos desperdiçando uma inteligência fundamental que poderia dar fôlego aos interesses da nação e construir para ela um futuro melhor? Mesmo no pensamento elitista que dá origem a essa proposição equivocada há uma ação que é contraproducente até mesmo para seu projeto: essa elite exclusiva pode ser incapaz.
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