'Mad Max', de George Miller, brilha no
Festival de Cannes
Filme traz no elenco Charlize Theron e Tom
Hardy; desconfie de quem diz que é insosso
Luiz Carlos Merten, O Estado de S.Paul, 15 de maio de 2015, O Estadão
CANNES - Pela manhã de quinta, 14, o repórter
foi ver Mad Max - Estrada da Fúria só para conferir como a ópera apocalíptica
de George Miller ficaria na tela gigantesca do Palais. Afinal, o filme de
George Miller já fora visto em esplêndidas condições de imagem e som durante a
junket em Los Angeles. A ideia era ver um pedaço de Estrada da Fúria - para
conferir - e correr para a sessão de imprensa do novo Philippe Garrel, que
abriu a Quinzena dos Realizadores. Foi preciso recuperar o Garrel, L'Ombre des
Femmes/A Sombra das Mulheres, depois. Não houve jeito de desgrudar o olho da
tela que exibia Mad Max. O filme foi aplaudido em cena aberta. Desconfie de
quem diz que é insosso.
Em entrevista por telefone para o repórter,
Miller contou que sempre teve esse filme na cabeça, mas só nos últimos 12 anos
resolveu levar as ideias para o papel - e, claro, a tela. Havia uma guerreira
em Mad Max 2, mas não se assemelhava em nada a Imperator Furiosa. Estrada da
Fúria faz jus ao título, mas poderia se chamar A Ascensão de Furiosa. É a
personagem de Charlize Theron. Andrógina, ela adota uma atitude masculina para
fugir à sorte das mulheres no futuro apocalíptico que Miller retrata. As
mulheres são propriedade do Immortant Joe, que, por possuir a água, reina no
devastado reino do futuro. As mulheres são procriadoras. Fornecem leite para os
guerreiros e filhos para o chefe.
Charlize se insurge e foge com cinco das
mulheres do Immortant. Depois de medir forças com Max, ela faz dele seu aliado
- e coadjuvante na missão de levar as mulheres à proteção das Terras Verdes. É
uma utopia, e na ficção de Estrada da Fúria a guerreira vai voltar à cidadela
do Immortant. Furiosa e Max quase não falam, não compartilham interesse
romântico. Em Cannes, Charlize repetiu o que havia dito em Los Angeles:
"Era o que havia de mais interessante no roteiro. Esse homem (referindo-se
a George Miller) é uma lenda. Fez Mad Max e Happy Feet. Mais de 30 anos depois,
voltou ao universo apocalíptico de Max, mas não para se repetir. Criou essa
guerreira que é uma das personagens mais fortes e difíceis que já fiz. Furiosa,
quase não fala. Age. É muito difícil revelar o interior só por olhares e
gestos."
No filme, ela bate e arrebenta como macho. Em
Cannes, voltou a ser uma das mais belas - e desejadas - mulheres do mundo.
Contratualmente, deve ser obrigada a usar o perfume do qual é
garota-propaganda. J'Adore. A fragrância delicada a acompanha. Charlize, mais
macho que Tom Hardy, que faz Mad Max? "Creio que George (Miller) ama as
mulheres. Sempre foi sua ideia fazer delas o motor de Estrada da Fúria. De certa
forma, somos a esperança nesse futuro que não existe. O advogado inglês
Christopher Vicenzi, um grande humanista, diz que ainda existe pobreza no mundo
porque nós (mulheres) não estamos no poder. George compartilha de sua visão. É
o lado mais político de Estrada da Fúria."
Como foi filmar na Namíbia? "Os próprios
nativos reconhecem que se trata de um dos lugares mais infernais do mundo. Ouvi
de um deles que é o único lugar de onde Deus se ausentou. Ficamos meses naquele
deserto, com ocasionais viagens à civilização. E George ama o realismo.
Filmamos em carros de verdade, que capotavam. Saltávamos amarrados por fios,
que depois foram apagados na pós-produção." Furiosa, tão selvagem, tem
alguma coisa a ver com suas personagens anteriores? "Tudo. Só me transformei
uma vez, e ganhei o Oscar pelo papel em Monster - Desejo Assassino. Mas, em
vários outros filmes, interpreto mulheres sombrias, disfuncionais. Acostumei-me
a ser sobrevivente no mundo masculino. Ou vocês pensam que é fácil ver os
outros duvidarem de seu talento só porque é bonita? É a maldição que atinge
muitas mulheres. Se somos belas, não podemos ser competentes."
Mad Max: Estrada da Fúria, carros
Por mais que tenha gostado de fazer Imperator Furiosa, é reticente a aparecer numa eventual sequência. "George sabia disso quando me procurou, e contratou. Ele próprio demorou muito tempo para viabilizar o projeto. Estrada da Fúria virou uma coisa visceral para ele. Como criador, o respeito e admiro. Ele criou um personagem que está no imaginário de todo o mundo. Estrada da Fúria retrata uma visão que ele teve. Se formos continuar fazendo Furiosa 2, 3... Duvido que reencontremos a mesma intensidade. Serão operações caça-níqueis. Estou fora." Assim como Furiosa, Nicholas Hoult é a alma de Estrada da Fúria. Tem a única cena de ternura do filme como o Warboy, o terrorista que desiste do Valhalla por amor. Banal? "Acho lindo, e Nicholas é muito talentoso."
...................................
Em entrevista, George Miller comenta a ida de
‘Estrada da Fúria’ ao Festival de Cannes
Filme faz parte da seleção oficial do evento e
estreia no Brasil na próxima quinta-feira, 14
Entrevista com George Miller
Luiz Carlos Merten, O Estado de S. Paulo, 11 de maio de 2015
George Miller está feliz da vida de voltar a
Cannes. Ele já foi jurado em 1988 e 1999 e volta ao maior festival de cinema do
mundo integrando a seleção oficial da edição que começa na quarta-feira, 13,
com Mad Max – Fury Road/Estrada da Fúria. O filme estreia quinta, 14, no
Brasil. Não concorre à Palma de Ouro, mas terá direito a sessão de gala e
tapete vermelho. Dá para imaginar Tom Hardy e Charlize Theron na montée des
marches. Ela, com certeza, voltará a ser uma das mulheres mais belas do mundo,
despindo o braço artificial e as roupas que celebram a androginia da personagem
Imperatrix Furiosa.
Em Los Angeles, há duas semanas, houve a
junket de Fury Road. Basicamente, duas coletivas – uma com o diretor e o elenco
principal, a outra com as ‘wives’, as mulheres que, na ficção do novo Mad Max,
o vilão Immortant Joe utiliza somente como procriadoras. Mad Max viveu três
vezes na interpretação de Mel Gibson, em 1979, 1981 e 1985. Há 12 anos, Miller
experimentou o imperioso desejo de retomar sua criação mais famosa. Fez o seu
filme mais caro, US$ 150 milhões, e o mais grandioso. Não é um remake, nem uma
continuação, mas um recomeço. E, como diz o próprio diretor – numa entrevista
por telefone, depois de Los Angeles –, “considerando as dificuldades, o filme
saiu muito melhor do que havia sonhado".
O que representa para você mostrar o filme em
Cannes?
É mais que um sonho. Já fui jurado no
festival, mas independente disso, como cinéfilo, sei da sua importância. Sei
também como foi difícil para todos nós concretizarmos o projeto, que foi caro,
mais do que qualquer dos filmes anteriores – na verdade, mais que os três
primeiros juntos –, e numa filmagem que nos consumiu, num dos lugares mais
infernais da Terra, o deserto da Namíbia. Sinto, antes de mais nada, que se trata
de um reconhecimento. Japão e França foram os primeiros países a abraçar Mad
Max, antes mesmo que a série se tornasse cult. Falei em abraço e é assim que
sinto. Voltar a Cannes com Mad Max é como receber um abraço do tipo ‘Valeu a
pena tanto esforço’.
Com suas cenas eletrizantes de ação, o filme
justifica o título Fury Road, Estrada da Fúria. Mas eu tenho a impressão que
poderia se chamar A Ascensão de Furiosa, a personagem de Charlize Theron.
Concorda?
Mad Max criou uma mitologia a partir de outras
mitologias. O sujeito solitário que se torna herói, mesmo não querendo, num
mundo apocalítico, tem raízes na tragédia grega, é Orestes. Mas em toda parte
ele foi incorporado pelas culturas locais. Nas França, Mad Max foi chamado de
western sobre rodas. No Japão, foi comparado a um ronin. Na Escandinávia, a um
viking. Os três primeiros filmes construíram sua dramaturgia a partir de um
tema clássico do western, a vingança. Mas você deve se lembrar do último, Além
da Cúpula do Trovão. Tina Turner cantava We Don’t Need Another Hero. Estamos
vivendo uma época em que até os super-heróis andam quebrados. Fragilizaram-se,
tornaram-se humanos, como os semideus da mitologia grega. E, assim, na minha
cabeça, quanto mais eu pensava em retomar a saga, pensava que Max não poderia
mais ser o mesmo homem. Foi a primeira coisa que disse para Tom Hardy, que faz
o papel. Ele queria a bênção de Mel Gibson. OK, disse-lhe, encontre-se com ele,
mas depois o esqueça. Porque nós vamos reinventar o personagem e a saga. No
segundo filme, tínhamos uma guerreira. Agora, na minha concepção, Max deveria
encontrar uma igual. Furiosa/Charlize, num universo em que as mulheres fornecem
o leite e o ventre para os guerreiros, se insurge contra seu destino. Ela anula
o próprio sexo, e ousa fugir com as quatro mulheres de Immortant Joe, o que
desencadeia a perseguição no deserto. Furiosa esculpiu seu corpo à imagem
masculina. O filme não tem romance, mas eu não queria que esse mundo futuro
fosse destituído de ternura...
E por isso você criou a cena de Nicholas Houit
e Riley Keough no carro. Ele é um guerreiro de Immortant Joe. Sonha dar a vida
para ter direito a um lugar num hipotético paraíso post-mortem...
Sim, e é uma das minhas cenas preferidas. Sob
certos aspectos, ele é um mutante e, quando essa mulher o toca, ele descobre em
si mesmo um sentimento que nunca experimentou antes. Desde o início, desde o
roteiro, sabia que essa cena seria uma quebra no relato. Ação, ação, ação,
quase nenhum diálogo e, aí, de repente, esse encontro fortuito entre dois
personagens secundários, como nós não vamos encontrar entre os protagonistas.
Max e Furiosa se estranham, brigam e eventualmente se aliam, mas cada um tem
sua trajetória. Sim, é a ascensão (the rise) of Furiosa. Em Fury Road, liberei
meu lado feminista (risos). Mas o mérito da personagem é de Charlize. Ela criou
Furiosa com a dureza que imaginava e lhe emprestou sua doçura. Atores e atrizes
formam uma raça à parte. Com Mel (Gibson), era a mesma coisa. Ele deu ao
personagem muito mais que havia imaginado.
Você não tem muitos efeitos. Todos aqueles
carros se rebentando, a adrenalina, o calor do deserto. Tudo é real, não?
De cara, imaginava que o filme teria de ser
verdadeiro e, por isso, até a participação de Mel (Gibson) foi cancelada. Não
faria sentido ele voltar. Os efeitos que tenho são as ferramentas de computação
para eliminar os fios quando os atores e atrizes voam daqueles carros. Tom
(Hardy) e Charlize fizeram a maioria de seus dublês. Ela é muito brava.
Não posso deixar de falar da trilha. Você tem
uns solos agudos, dilacerantes de cello. Como trabalhou a trilha?
Tive um compositor genial, que entendeu meu
conceito – queria que o filme se situasse entre um concerto selvagem de rock e
uma ópera. Como não tenho muitos diálogos, o que os personagens diriam, para se
expressar foi para a música. Foi a mixagem de som mais difícil da minha
carreira. Atingir o tom exato das cordas. Fazê-las lancinantes. Se você sentiu,
é porque deu certo.
Mad Max - Estrada da Fúria | Trailer Oficial 3Legendado
Nenhum comentário:
Postar um comentário