Todas as cartas à nação são ridículas
Por Joaquim Ferreira dos Santos, O Globo 13/09/2021
“Espero que notes bem/ Estou agora sem um vintém/ Podendo, manda-me algum/ Sete de setembro de trinta e um” (Noel Rosa)
O poeta já dizia que todas as cartas de amor são ridículas, mas essa carta do Bolsonaro declarando juras de amor pela democracia passou dos limites.
Bolsonaro, mais honesto fosse, se não tivesse mandado o avião pegar o Temer para descolar um bico de redator, teria se inspirado em quem lhe é da mesma laia, gramática e violência ortográfica. Virgulino Lampião, por exemplo.
Uma vez o capitão do cangaço mandou carta ao prefeito de Mossoró, no Rio Grande do Norte. Dizia que pouparia a cidade de ataque em caso do pagamento urgente de resgate: “Não vindo essa importança eu entrarei até ahi”, escreveu, “e vai aver muito estrago, nos resposte logo”.
Lampa tinha orgulho da redação própria, das caatingas de estilo e, exemplo maior do macho-raiz que Bolsonaro gostaria de ser, não afrouxava depois de ameaçar. Não arregava uma vírgula, invadia mesmo o supremo município de quem quer que fosse – e, como o Pix de Mossoró não caiu na conta, como o “resposte logo” não veio, Lampião jogou-se com a tropa para cima da cidade.
A civilização brasileira começou com uma carta, a epístola fofoqueira que Pero Vaz de Caminha mandou ao rei para contar das índias todas nuas, sem nada que lhes cobrisse as vergonhas. 521 anos depois as vergonhas foram-se todas, como se pode ver nas mentiras despudoradas da carta de Bolsonaro sobre o sete de setembro. As mal traçadas linhas, no entanto, continuam sendo enviadas ao povo brasileiro na esperança de, por meio destas, encontrar o país gozando da mais perfeita saúde. Infelizmente, nunca está.
O sete de setembro de 2021 não foi o primeiro a datar cartas que narram a problemática cena nacional. Há exatos 90 anos o compositor Noel Rosa escreveu “Cordiais saudações”. É um samba em forma de carta-cobrança, de alguém brasileiramente na pindaíba, a um amigo que lhe deve dez mil réis. Depois do início protocolar (“Estimo que este mal traçado samba”), o final da carta de Noel é civicamente dramático: “Espero que notes bem/ Estou agora sem um vintém/ Podendo, manda-me algum/ Sete de setembro de trinta e um”.
A carta do suicida, a carta anônima, todas desapareceram. Resta a carta à nação dos políticos. A mais pungente foi a carta-testamento do Getúlio, pontuada à bala. A de Bolsonaro, onde ele se faz democrata 24 horas depois de protagonizar o Lampião de hospício no sete de setembro da Paulista – esta ainda carece de auditagem sanatorial.
Cartas à nação são ridículas, mentiras insinceras que não interessam a ninguém. Fez bem o ministro Luis Roberto Barroso em sugerir que todos ouvissem uma carta finalmente baseada nas coisas da vida real – a carta do corno. Na contramão das mal traçadas de Bolsonaro e Temer, o juiz propôs que se curtisse Milionário e Zé Rico, compositores do bolero “Paixão de um homem”, a carta de um sujeito àquela amada que um dia o deixou.
Na carta do corno ninguém finge a democracia que deveras não sente, os chifres da traição escancaram a dor. É o rincão profundo onde se esconde a verdade brasileira. A bravata desce do palanque e pede perdão. Como não acreditar no macho capaz de abrir o peito, de mostrar a ferida e, a alma sangrando, gritar a dor insuportável da derrota? Waldick Soriano era o cantor desta carta de corno. Daria um presidente melhor, pelo menos mais sincero.
Em tempo
Noel Rosa - Cordiais Saudações (Noel Rosa)
"Samba epistolar" de 1931, lançado por Sílvio Caldas na revista teatral "Mar de rosas", mas gravado pelo próprio Noel, que fez dois registros na Parlophon. Este, com orquestra, é o primeiro, matriz 131170, que não foi lançado comercialmente por ter sido rejeitado pelo compositor ("Não gostei, horrível!"). Dias mais tarde, Noel fez nova gravação, desta vez com o Bando de Tangarás, que acabou indo para as lojas. (Samuel Machado Filho há 8 anos)
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