domingo, 19 de setembro de 2021

Carlos Zéfiro

Centenário de Carlos Zéfiro, autor dos ‘catecismos’ eróticos, ocorre sob governo brochante

Rei da sacanagem libertadora, quadrinista escancarou interditos e tabus sobre sexo que alguns gostariam que retornasse

Joaquim Ferreira dos Santos, 18/09/2021, O Globo

Sacanagem mesmo é o que faz a dupla Bolsonaro e Paulo Guedes, mas já que isso aqui é um segundo caderno, de assuntos culturais, chegou a hora de louvar o centenário de Carlos Zéfiro, o rei brasileiro da sacanagem benigna, aquela dedicada à exaltação do prazer sexual.

Era o pseudônimo artístico de Alcides Aguiar Caminha, nascido no subúrbio de Anchieta em 25 de setembro de 1921, datiloscopista do Ministério do Trabalho, pacato cidadão pai de cinco filhos. Nas horas vagas, a partir do início dos anos 1950, ele se transformava em Carlos Zéfiro, o transgressor. Desenhou histórias em quadrinhos de acabamento gráfico tosco, pornografia pura e sem pretensão de arte erótica, mas que acabaram servindo de educação sexual a milhões de brasileiros. O Brasil transava de luz apagada com medo de ser flagrado em pecado. Zéfiro acendeu.

Capa de "Nilda", de Carlos Zéfiro Foto: Agência O Globo

O Brasil era assim como o governo Bolsonaro gostaria que voltasse a ser, um cercadinho de proibidos, cintos de castidade e espartilhos por todos os lados. Sexo era assunto a ser tratado depois da bênção do padre, o momento nupcial divino ao qual a moça deveria chegar inocente de tudo, com o hímen complacente preservado e a camisola do dia pronta para o sangue do defloramento. Ao homem era permitida a experiência de meia dúzia de idas ao prostíbulo municipal, a universidade macha onde ele se diplomava em virilidade ao ganhar uma gonorreia.

 'Catecismo' de Carlos Zéfiro Foto: Reprodução

Regulação do prazer

O centenário de Carlos Zéfiro podia ser mais uma efeméride nostálgica, a lembrança de um tempo em que ainda havia pecado do lado de baixo do Equador. É um gozo de atualidade. Ocorre num momento de conservadorismo doente, quando o Estado brasileiro quer regular os limites do prazer, estabelecer as cores certas para os gêneros e novamente tornar a educação sexual um tabu.

Não é só a saudade da ditadura que voltou à moda. A ministra da Mulher, Família e Direitos Humanos, diante do crescimento de casos de gravidez na adolescência, recomendou que a turma controlasse os hormônios — e, sem constrangimento, como se estivesse no tempo em que Zéfiro começou a desenhar, fez campanha na televisão pela prática da abstinência sexual. Sugeriu que os jovens voltassem a se trancar no banheiro — e mãos à obra, imaginação à solta, tudo pelo bem do Brasil!

Catecismo de Zéfiro Foto: Reprodução

As revistinhas, produzidas até o início dos anos 1970, ganharam o nome de “catecismos” porque nas salas de aula eram colocadas dentro daqueles de verdade, escapando da investigação dos professores. Tudo era às escondidas e prenhe de ignorância. No cinema, o casal se beijava, fechava os olhos e na cena seguinte apareciam os filhos. O livro “Nossa vida sexual”, do alemão Fritz Kahn, a bíblia da época sobre o que se passava na cama, descrevia a penetração com os mesmos termos assustadores de um legista na autópsia de um morto por esfaqueamento.

Sexo era dor, lençol sujo de sangue, o golpe do suadouro, a jovem Aída Curi jogada do edifício de Copacabana em meio à uma curra, a Fera da Penha queimando viva a filha do amante que a traíra — até que apareceu Zéfiro espalhando gargalhadas em meio ao ato sexual e, principalmente, mulheres sussurrando “mais, mais, mais...”

Carlos Zéfiro Foto: Agência O Globo

Democracia de sensações

Pelo menos três gerações de brasileiros foram apresentadas à coreografia do sexo através dos catecismos. Mais do que com o repertório interminável das posições, muitos ficaram impressionados com a democracia das sensações. Quer dizer que as mulheres gozavam? Eram ativas no direito ao prazer? Propositivas?

Feministas podem flagrar algum preconceito, mas as mulheres de Carlos Zéfiro eram diferentes das que habitavam os subúrbios dramáticos de Nelson Rodrigues. Estas também viviam às voltas com as pulsações da carne, mas no segundo ato já estavam desgraçadas pelos tormentos da culpa, e se suicidavam no terceiro, vítimas da repressão, do ciúme incontrolável, do adultério com o cunhado, da fofoca de um vizinho que viu tudo e outros moralismos da época. O sexo rodrigueano era um inferno. Já em “O viúvo alegre”, “Maria, a proibida”, “Maria Lúcia, a capixaba”, “João Cavalo na fazenda”, “Boas entradas”, “Suzette”, “A garçonete” e mais de cinco centenas de títulos do pornógrafo de Anchieta, cada quadrinho era um degrau festivo que se subia, com as pernas bambas, as mucosas em êxtase, rumo ao paraíso terreno da felicidade sexual.

Catecismo de Carlos Zéfiro Foto: Reprodução

Carlos Zéfiro é um pioneiro na liberação dos costumes nacionais e, com o passar das décadas, juntaram-se a ele Luz del Fuego, Leila Diniz, os Dzi Croquettes, Ney Matogrosso, Bruna Linzmeyer, Pabllo Vittar. O país seguia razoável no empenho civilizatório de normalizar o desejo segundo o desejo de cada um — até que a morte tomou o poder federal e declarou a liberdade sexual como inimigo público. Todos na caça ao kit-gay com que os professores comunistas doutrinam nossas crianças.

Dias atrás, manifestantes a favor desse contexto de infelicidades levaram à Avenida Paulista um pênis inflável. Não à toa, como se fosse uma alegoria da República em 2021, o mastro cruzou a avenida em verde-e-amarelo coruscante, mas em lamentável meia-bomba. Em pleno centenário de Carlos Zéfiro, o Brasil de “João Cavalo” broxou. Coisa de quem não rezou o catecismo, não sabe que só com tesão livre se põe um país de pé — e, definitivamente, não comungou da hóstia molhadinha e consagrada de “Diana, a sacerdotisa”.


Documentário sobre Carlos Zéfiro reestreia com imagens de sexo cortadas

No dia do seu centenário, documentário de Silvio Tendler volta ao Canal Curta, em versão do diretor

O Globo, 19/09/2021

Na meia-noite do dia 25 para o 26 de setembro, o documentário “Em busca de Carlos Zéfiro” ganha uma nova vida, no momento exato em que seu biografado completaria 100 anos.

Finalizado em 2020, o filme de Silvio Tendler teve problemas ao ser exibido pela primeira vez no ano passado. O mesmo Canal Curta, que o exibirá na semana que vem, recusou-se a colocá-lo na sua grade de programação com os desenhos mais explícitos de Zéfiro. O diretor teve que cortar as imagens de sexo escancarado, apagando a essência da arte do desenhista carioca. Agora, ele será reexibido em uma versão do diretor. O longa de 90 minutos ouve personalidades como o antropólogo Roberto da Matta e o escritor Gonçalo Júnior, autor de uma biografia de Zéfiro.

— Nos meus 50 anos de cinema, este foi o meu filme que mais foi reprimido — diz Tendler. — O doc não é pornográfico. Como todos os outros que fiz, é um filme de resgate de memória. Zéfiro é um herói libertário para toda uma geração, que aprendeu com ele que o prazer não precisa ser castigados.


Promo Centenário Em Busca de Carlos Zéfiro


ABI Cieclube debate o filme Zéfiro, de Silvio Tendler.



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