Nos 700 anos da morte de Dante, livro de Marco Lucchesi sobre o poeta ganha nova edição
'Nove cartas sobre A Divina Comédia' tenta demonstrar a contemporaneidade de uma obra que ainda 'vive e respira'
Bolívar Torres O Globo, 12/09/2021
Uma história familiar ilustra a intimidade do poeta e tradutor Marco Lucchesi com “A Divina Comédia”, o seminal poema italiano que mergulha no Inferno, no Purgatório e no Paraíso. Seus pais eram originários da província de Lucca, na Toscana, citada na obra-prima de Dante Alighieri, gênio cujos 700 anos de morte serão lembrados no próximo dia 14. Décadas após ter imigrado para o Brasil e com a memória já debilitada pelo Alzheimer, o pai de Lucchesi ainda declamava de cabeça as passagens do livro.
— Mesmo naufragado no quadro mais profundo da doença, mesmo quando já não sabia quem era e onde estava, a única possibilidade de diálogo com ele era através da “Divina Comédia” — lembra Lucchesi. — Ele falava a parte inicial dos versos e eu completava. Quando todas as outras portas da comunicação haviam se fechado, havia ainda essa sombra luminosa de uma palavra que não era perdida.
Hoje, Lucchesi continua conversando sobre essa obra que ainda “vive e respira”. Em seu livro “Nove cartas sobre A Divina Comédia”, que acaba de ganhar uma nova edição revista e atualizada, pela Bazar do Tempo, com novos capítulos e imagens reunidas pelo designer Victor Burton, o atual presidente da Academia Brasileira de Letras nos convida a desvendar os mistérios de “uma juventude de 700 anos”. São nove missivas (como os nove círculos do Inferno), em que, num gesto de fraternidade, o autor se dirige diretamente ao leitor e discute com ele a contemporaneidade de Dante. O poeta, aliás, é tema de uma aguardada biografia escrita pelo historiador Alessandro Barbero, que deve sair em novembro pela Companhia das Letras.
— Os trabalhos monumentais de eruditos em todas as partes do globo só fazem “A Divina Comédia” crescer — explica Lucchesi. — Mas essa percepção da contemporaneidade da obra se deu principalmente porque três grandes poetas do século passado, T.S. Eliot, (Ossip Emilievitch) Mandelstam e Jorge Luis Borges, revolucionaram a interpretação dantesca, encontrando a parte mais ligada à vanguarda de sua obra.
Antes desses três, acredita Lucchesi, apenas os cantos do Inferno provocavam maravilhamento na maioria dos estudiosos. Pensava-se que o Paraíso continha muita “doutrina” e era a série menos bem acabada de Dante.
— Borges, Eliot e Mandelstam mostraram o contrário: se fosse necessário escolher o endereço mais ousado da poesia de Dante, este seria o Paraíso — diz Lucchesi. — Dante indaga a própria linguagem, paralisa a própria poesia, compreendendo que ela será incapaz de levar a mais absoluta luz, a transcendência que está além de toda transcendência, que é o mistério divino. Ele faz desse grande Não um Sim indireto e belíssimo.
Ilustrações de Gustave Doré para a "Divina Comédia" são as mais conhecidas sobre a obra Foto: Gustave Doré / Divulgação
Nas cartas de Lucchesi, Dante aparece como um “egípcio”, que “embalsama” diversas figuras históricas e literárias de seu tempo. O autor também mapeia a influência do italiano em poetas brasileiros como Jorge de Lima. Fato relativamente pouco conhecido, Machado de Assis chegou a traduzir parte da “Divina Comédia”.
— A “Divina Comédia” deixou de pertencer a si própria — diz Lucchesi. — Ela ultrapassou a qualidade intrínseca de uma obra e, como toda grande metáfora, pede para ser modificada, performada, sequestrada e amada. É essa grande viagem que ela continua fazendo.
Se, na poesia, a vanguarda da “Divina Comédia” está mais representada ao longo do Paraíso, no imaginário visual em torno da obra ocorre o contrário. O Inferno é sempre mais retratado, como demonstra a pesquisa iconográfica de Victor Burton feita para o livro. O designer gráfico, que já venceu sete prêmios Jabuti, faz uma seleção comentada que abrange seis séculos de representação pictórica do universo literário e filosófico de Dante.
A preferência dos ilustradores e artistas plásticos pelo Inferno tem uma explicação simples. Ao imaginá-lo, o poeta é muito descritivo, criando imagens sedutoras. “(...) sobretudo no Inferno, ele se vale de descrições ricas e imagéticas, numa linguagem em que as palavras remetem a realidades que ressoam na memória dos homens”, escreve Burton no livro.
O inferno é pop
Dante estava criando o seu Inferno no momento em que a cultura ocidental começava a representá-lo visualmente. Sua visão contribuiu decisivamente para moldar na nossa mente uma imagem das trevas que permanece no inconsciente coletivo até hoje.
— O inferno estava sendo construído nessa época, nos afrescos no século XIII — diz Burton. — Tinha que ter todo um aparato para criar medo nas pessoas. Tinha que ser assustador popularmente. Não à toa as imagens são muito ricas. O paraíso é muito difuso, muito chato. Todo mundo prefere o inferno.
Gravura de Tom Phillips para a "Divina Comédia" (1983) Foto: Cortesia de Swann Auction Galler / Divulgação
A seleção de Burton vai desde um afresco representando Dante no século XIV até as gravuras feitas pelo artista plástico inglês Tom Phillips, que parecem mais uma HQ. Passam ainda por obras de Salvador Dalí, William Blake e Sandro Botticceli, entre outros. Os variados estilos através dos tempos — surrealismo, simbolismo, collage — mostram como a “Divina Comédia” se transformou na obra mais ilustrada de todos os tempos. Nenhum artista fez mais por sua popularidade, porém, do que o francês Gustave Doré, presente no livro com diversas imagens.
A edição de luxo da “Divina Comédia’” ilustrada por Doré no século XIX fez tanto sucesso que ganhou vida própria.
— Até hoje pouca gente leu o original do Dante, mas muitos a conheceram através da edição de Doré, que até acho um pouco literal demais — diz Burton. — Como quase todo mundo já conhece esses desenhos, procurei utilizá-la de forma diferente, com mais close up para dar uma maior visão da precisão das imagens.
A divina comedia (domínio público)
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