domingo, 12 de setembro de 2021

Divina obra prima

Nos 700 anos da morte de Dante, livro de Marco Lucchesi sobre o poeta ganha nova edição

'Nove cartas sobre A Divina Comédia' tenta demonstrar a contemporaneidade de uma obra que ainda 'vive e respira'

Bolívar Torres O Globo, 12/09/2021

Uma história familiar ilustra a intimidade do poeta e tradutor Marco Lucchesi com “A Divina Comédia”, o seminal poema italiano que mergulha no Inferno, no Purgatório e no Paraíso. Seus pais eram originários da província de Lucca, na Toscana, citada na obra-prima de Dante Alighieri, gênio cujos 700 anos de morte serão lembrados no próximo dia 14. Décadas após ter imigrado para o Brasil e com a memória já debilitada pelo Alzheimer, o pai de Lucchesi ainda declamava de cabeça as passagens do livro. 

— Mesmo naufragado no quadro mais profundo da doença, mesmo quando já não sabia quem era e onde estava, a única possibilidade de diálogo com ele era através da “Divina Comédia” — lembra Lucchesi. — Ele falava a parte inicial dos versos e eu completava. Quando todas as outras portas da comunicação haviam se fechado, havia ainda essa sombra luminosa de uma palavra que não era perdida.

 
'O abismo do Inferno', de Sandro Botticelli (1482) Foto: Divulgação

Hoje, Lucchesi continua conversando sobre essa obra que ainda “vive e respira”. Em seu livro “Nove cartas sobre A Divina Comédia”, que acaba de ganhar uma nova edição revista e atualizada, pela Bazar do Tempo, com novos capítulos e imagens reunidas pelo designer Victor Burton, o atual presidente da Academia Brasileira de Letras nos convida a desvendar os mistérios de “uma juventude de 700 anos”. São nove missivas (como os nove círculos do Inferno), em que, num gesto de fraternidade, o autor se dirige diretamente ao leitor e discute com ele a contemporaneidade de Dante. O poeta, aliás, é tema de uma aguardada biografia escrita pelo historiador Alessandro Barbero, que deve sair em novembro pela Companhia das Letras.

— Os trabalhos monumentais de eruditos em todas as partes do globo só fazem “A Divina Comédia” crescer — explica Lucchesi. — Mas essa percepção da contemporaneidade da obra se deu principalmente porque três grandes poetas do século passado, T.S. Eliot, (Ossip Emilievitch) Mandelstam e Jorge Luis Borges, revolucionaram a interpretação dantesca, encontrando a parte mais ligada à vanguarda de sua obra.

Antes desses três, acredita Lucchesi, apenas os cantos do Inferno provocavam maravilhamento na maioria dos estudiosos. Pensava-se que o Paraíso continha muita “doutrina” e era a série menos bem acabada de Dante.

— Borges, Eliot e Mandelstam mostraram o contrário: se fosse necessário escolher o endereço mais ousado da poesia de Dante, este seria o Paraíso — diz Lucchesi. — Dante indaga a própria linguagem, paralisa a própria poesia, compreendendo que ela será incapaz de levar a mais absoluta luz, a transcendência que está além de toda transcendência, que é o mistério divino. Ele faz desse grande Não um Sim indireto e belíssimo.

Ilustrações de Gustave Doré para a "Divina Comédia" são as mais conhecidas sobre a obra Foto: Gustave Doré / Divulgação

Nas cartas de Lucchesi, Dante aparece como um “egípcio”, que “embalsama” diversas figuras históricas e literárias de seu tempo. O autor também mapeia a influência do italiano em poetas brasileiros como Jorge de Lima. Fato relativamente pouco conhecido, Machado de Assis chegou a traduzir parte da “Divina Comédia”.

— A “Divina Comédia” deixou de pertencer a si própria — diz Lucchesi. — Ela ultrapassou a qualidade intrínseca de uma obra e, como toda grande metáfora, pede para ser modificada, performada, sequestrada e amada. É essa grande viagem que ela continua fazendo.

Se, na poesia, a vanguarda da “Divina Comédia” está mais representada ao longo do Paraíso, no imaginário visual em torno da obra ocorre o contrário. O Inferno é sempre mais retratado, como demonstra a pesquisa iconográfica de Victor Burton feita para o livro. O designer gráfico, que já venceu sete prêmios Jabuti, faz uma seleção comentada que abrange seis séculos de representação pictórica do universo literário e filosófico de Dante.

"Dante encontra Beatriz na ponte de Santa Trinitá" pintura de Henry Holyday, 1883

A preferência dos ilustradores e artistas plásticos pelo Inferno tem uma explicação simples. Ao imaginá-lo, o poeta é muito descritivo, criando imagens sedutoras. “(...) sobretudo no Inferno, ele se vale de descrições ricas e imagéticas, numa linguagem em que as palavras remetem a realidades que ressoam na memória dos homens”, escreve Burton no livro.

O inferno é pop

Dante estava criando o seu Inferno no momento em que a cultura ocidental começava a representá-lo visualmente. Sua visão contribuiu decisivamente para moldar na nossa mente uma imagem das trevas que permanece no inconsciente coletivo até hoje.

— O inferno estava sendo construído nessa época, nos afrescos no século XIII — diz Burton. — Tinha que ter todo um aparato para criar medo nas pessoas. Tinha que ser assustador popularmente. Não à toa as imagens são muito ricas. O paraíso é muito difuso, muito chato. Todo mundo prefere o inferno.

Gravura de Tom Phillips para a "Divina Comédia" (1983) Foto: Cortesia de Swann Auction Galler / Divulgação

A seleção de Burton vai desde um afresco representando Dante no século XIV até as gravuras feitas pelo artista plástico inglês Tom Phillips, que parecem mais uma HQ. Passam ainda por obras de Salvador Dalí, William Blake e Sandro Botticceli, entre outros. Os variados estilos através dos tempos — surrealismo, simbolismo, collage — mostram como a “Divina Comédia” se transformou na obra mais ilustrada de todos os tempos. Nenhum artista fez mais por sua popularidade, porém, do que o francês Gustave Doré, presente no livro com diversas imagens.

A edição de luxo da “Divina Comédia’” ilustrada por Doré no século XIX fez tanto sucesso que ganhou vida própria.

— Até hoje pouca gente leu o original do Dante, mas muitos a conheceram através da edição de Doré, que até acho um pouco literal demais — diz Burton. — Como quase todo mundo já conhece esses desenhos, procurei utilizá-la de forma diferente, com mais close up para dar uma maior visão da precisão das imagens.

A divina comedia (domínio público)

Edição de "A divina comédia" impressa em Veneza, em 1502, 181 anos após a morte de Dante



 Desenho de Gustavo Doré para a obra como o que ilustra o Canto XXXI do inferno


Guia propõe uma releitura da 'Divina Comédia' de Dante Alighieri

Nos 700 anos da morte do escritor italiano, seu maior poema ganha um guia: ‘Por Uma Leitura Atual da Divina Comédia’

Paula Sperb, 14 de setembro de 2021, O Estado de São Paulo

O poeta Manuel Bandeira, em seu Itinerário de Pasárgada, conta que, quando chamavam seu pai de “bom”, a resposta era sempre: “Bom é Deus”. Bandeira fez sua própria versão da réplica comumente adotada pelo pai. “Pois, ao me ouvir chamar de grande poeta, quero sempre dizer: Grande é Dante”, escreveu o brasileiro.

Autor do poema considerado o mais belo da humanidade, o italiano Dante Alighieri morreu há 700 anos, em 14 de setembro de 1321. O aniversário de sua morte serve como um lembrete sobre sua importância indiscutível para a literatura e demais formas de arte. Por causa dos 700 anos de sua morte, A Divina Comédia, escrita entre 1304 e 1321, será enviada para o espaço no próximo mês. 

A obra do “sumo poeta”, vale lembrar, foi escrita muito antes dos tipos móveis de Gutenberg, em 1439. A invenção possibilitou a reprodução dos livros de papel e sua consequente popularização.

Agora, o poema épico dividido em três partes – Inferno, Purgatório e Paraíso – será gravado em placas de titânio e ouro, que resistem ao ambiente espacial. É justamente para o céu, onde fica o Paraíso no poema de Dante, que o poeta avança desde o Inferno. As três partes do épico, aliás, terminam com a mesma palavra: estrelas.

Todavia, é aqui na Terra, onde Dante imaginou seu Purgatório em forma de uma montanha altíssima, que surge um novo incentivo para aqueles que ainda não leram Dante.
Aos 88 anos, o poeta e crítico de arte Armindo Trevisan publica uma espécie de guia que encoraja a leitura do poeta italiano. Por Uma Leitura Atual da Divina Comédia (Editora AGE) funciona quase como um manual de como, e por que, ler o poema épico. No seu livro, Trevisan atua praticamente como o poeta Virgílio, personagem da Divina Comédia que orienta Dante através do Inferno e Purgatório.

Com a ajuda de Trevisan, o leitor pode se aventurar a chegar ao Paraíso, que é ler a Divina Comédia mais de 700 anos após a obra ter sido escrita.

O poema épico de Dante tem fama de difícil. Com referências cristãs, alegorias, personagens que habitaram a Itália da Idade Média e conflitos políticos da época, o livro é, no mínimo, desafiador. Porém, foi escrito em uma época em que a tradição oral predominava. Portanto, um dos seus pontos fortes é o uso das rimas. Inclusive, versos de A Divina Comédia eram cantados na cidade de Florença, onde nasceu Dante, mesmo após a morte do poeta, conta Trevisan em seu livro. A música, como sabemos, é uma linguagem universal. Assim, eis um dos motivos apresentados pelo crítico gaúcho para não se deixar intimidar pela erudição do poema: sua musicalidade.

É consenso que a musicalidade da Divina Comédia se expressa melhor no italiano, idioma original do poema. Mas não saber a língua de Dante não deve servir de impeditivo para ler a obra.
“O leitor que não sabe italiano pode também ler a Divina Comédia. Perderá alguns elementos da poética dantesca, como a incrível sonoridade do original, mas fruirá de outras possibilidades. É tão grande o gênio do poeta florentino, que borrifos de sua genialidade hão de atingir o leitor. O leitor se aperceberá de que Dante possui uma cosmovisão única da História e do Cristianismo. Além disso, as traduções, ao menos as melhores, que são as de Cristiano Martins e de Italo Eugenio Mauro, dão uma ideia em português do que é o original”, afirma Trevisan ao Estadão.

As edições da Divina Comédia costumam possuir textos de apresentação da obra e notas de rodapé para auxiliar na compreensão das referências. Também poeta, Mário Quintana chegou a brincar: “Há anos venho procurando esta raridade bibliográfica: uma edição da Divina Comédia sem comentários. Raridade? Creio que nem existe maravilha assim...”, escreveu.

Trevisan relembra a ironia do amigo para afirmar que “é imprescindível que a poesia de Dante volte a sobrepor-se aos comentários”. Segundo o crítico, “Dante deverá ser lido – acima de tudo! – como Poeta”. 

Além de Virgílio, o guia de Dante ao longo do percurso pelo Inferno e Purgatório, outra personagem célebre do poema é Beatriz. Ambos se conheceram na infância, em Florença, e se reencontraram no início da vida adulta. Entretanto, a paixão de Dante por Beatriz nunca foi concretizada. O poeta teve um casamento infeliz e diversos casos extraconjugais. Trevisan dedica um capítulo ao tema, sob o intrigante título Dante e Beatriz: O enigma mais belo do amor humano? Ou: De como uma menininha de oito anos deixou, para sempre, fascinado o maior Poeta do Ocidente.

Dantólogos costumam buscar explicações e motivações de Dante para a escrita da Divina Comédia. Trevisan não busca esta resposta e recomenda que o leitor se contente com a própria obra. “A Divina Comédia ainda fará correr muita tinta ao longo da História. O melhor é lê-la, provar que ela existe, apreciá-la como uma sorte de ‘mistério literário’ – o maior da criatividade verbal humana do mundo ocidental”, escreveu o crítico.


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