Marco temporal para terras indígenas com menos de 15 mil anos é insulto à justiça e à história
Esse tipo de escala voltou a ser relevante do ponto de vista político e, principalmente, ético
A brevidade do nosso tempo de vida faz com que seja necessário um esforço imaginativo brutal para colocar a vastidão do passado em perspectiva. Se o que aconteceu há poucas décadas parece ter se dado em outra era do mundo, fica ainda mais difícil conceber escalas de tempo que fazem toda a história registrada por meios escritos virar a proverbial piscada de olhos.
De repente, porém, esse tipo de escala voltou a ser relevante do ponto de vista político e, principalmente, ético. Ao longo dos últimos dias, gente togada ficou gastando saliva em Brasília para decidir se as terras indígenas do país só podem ser protegidas por lei caso estivessem ocupadas pelos povos originários em 1988, quando a presente Constituição passou a vigorar.
Escrevo esta coluna para dizer que a escolha de 1988 como “marco temporal” é uma canalhice. Aliás, ainda que escolhêssemos 1500 como o ano-base, ainda assim seria uma estupidez. O único marco aceitável é o de 15 mil anos antes do presente.
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Digo isso não porque seja possível ou desejável fazer com que as terras indígenas voltassem a ser o que eram quando os seres humanos colocaram seus pés pela primeira vez em território brasileiro. O próprio número que estou usando é um arredondamento simbólico –os ancestrais dos atuais povos nativos certamente já estavam aqui há 12 mil anos, é bem possível que tivessem chegado alguns milhares de anos antes disso, talvez algum dia confirmemos uma presença ainda mais antiga.
Seja como for, usar o número é um jeito de arrancar as escamas dos nossos olhos e colocar as coisas na escala correta. Cada tapado ou malandro que se põe a resmungar sobre “muita terra para pouco índio” deveria ser confrontado com o fato inescapável de que os povos a quem hoje se deseja negar o direito a seu chão pertencem a uma linhagem ininterrupta de habitantes, os quais estão aqui há 30 vezes mais tempo que qualquer descendente de europeus.
Ou há mais de cinco vezes o intervalo de tempo que nos separa da construção das pirâmides. Ou sete vezes o abismo temporal entre nós e o surgimento do cristianismo. Use a escala que preferir. De qualquer ângulo que olhemos a questão, o que transparece é a durabilidade quase inimaginável do elo entre esses grupos e o território que ganhou o rótulo arbitrário de “Brasil”.
Repare que eu escrevi “povos”, no plural. Quinze mil anos foi tempo suficiente para que centenas e mesmo milhares maneiras diferentes de construir uma sociedade florescessem aqui.
Como mostra a arqueologia, foi tempo suficiente para que as próprias florestas do país, supostamente intocadas, fossem transformadas em gigantescos pomares. Para que as colinas artificiais dos sambaquis se erguessem, marcando os funerais de mil chefes poderosos. Para que boa parte da Amazônia ficasse coalhada de estradas, represas e muralhas de madeira.
A maior parte dessa riqueza e diversidade foi destruída de modo irremediável. Essa perda é suficiente para serenar os desonestos ou ignorantes que dizem temer que o Cristo Redentor ou a avenida Paulista se convertam em terra indígena: os povos que podiam reivindicar esses lugares não existem mais.
Aos que sobreviveram ao Apocalipse em miniatura dos mais de cinco séculos de invasão, porém, não há justificativa para que lhes seja negada a terra. Qualquer malabarismo que busque contrariar isso não passa de manto fino a encobrir uma cobiça indecente, indigna de quem enche a boca para se autodeclarar “civilizado”.
Reinaldo José Lopes
Jornalista especializado em biologia e arqueologia, autor de "1499: O Brasil Antes de Cabral".
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