Uma biografia incompleta do filme Iracema – Uma Transa Amazônica
Piauí Edição 180, setembro 2021
Daqui a alguns anos completa-se meio século da feitura de Iracema – Uma Transa Amazônica, filme que realizei com Jorge Bodanzky e uma equipe extraordinária em 1974. Com ele, mergulhamos nas realidades e nos seJorge Bodanzkygredos da floresta para desmitificar o “milagre econômico” da ditadura militar. Foi uma aventura desgarradora, que mudou nossas vidas. Para os espectadores (que, devido à censura, só puderam assisti-lo em 1980), o filme significou uma denúncia irrefutável dos crimes ambientais que já eram cometidos na Amazônia – o mundo veria as grandes queimadas que persistem e aumentam até hoje – e dos crimes de crueldade contra os seres humanos, que foram desalojados de suas terras, culturalmente desmembrados ou mortos.
Creio que cada um de nós da equipe tem uma recordação diferente dos trinta dias de filmagem contínua e das revelações encadeadas que tivemos, das experiências artísticas e da exposição a perigos evidentes e ocultos. Na minha lembrança, cenas e situações muito nítidas das filmagens convivem com vácuos na memória que não consigo preencher. Pensando sobre aqueles dias, tenho a impressão (cada vez mais longínqua) de que termos sobrevivido às filmagens, isso sim, foi um milagre verdadeiro.
Em meados de 1973, Jorge Bodanzky me falou pela primeira vez da possibilidade de fazer um documentário sobre a Transamazônica, a BR-230, que estava em construção (e ainda está, 47 anos depois) e era apresentada pela ditadura como exemplo máximo daquele “milagre econômico” que diziam estar acontecendo no Brasil. A centralidade da rodovia na propaganda oficial do regime era forte. Nos planos dos militares, deveria ter cerca de 8 mil km, cortando o Nordeste e o Norte, de Cabedelo, na Paraíba, até Lábrea, no Amazonas, e dali até o Peru e o Equador. Para os locais de construção, em particular a região amazônica, deslocaram-se milhares de trabalhadores, garimpeiros, comerciantes, grileiros, contrabandistas de madeira, prostitutas vindas de toda parte, sem falar nos militares, cuja presença era ostensiva.
Jorge era paulista e, como eu, tinha 30 anos. Trabalhava na Realidade, uma revista lançada em 1966 que revolucionou o jornalismo brasileiro, e já então se tornara o extraordinário fotógrafo que brilha até hoje. A ideia de um documentário sobre a Transamazônica tinha se fixado em sua cabeça depois de ele ter feito uma reportagem sobre outra estrada, a Belém-Brasília (BR-153), que estava sendo asfaltada e onde já havia uma intensa movimentação de trabalhadores, aventureiros e tropas militares.
Vindo da Bahia, eu me instalara provisoriamente em São Paulo com minha mulher, a atriz Conceição Senna, pois pretendíamos nos mudar para o Rio de Janeiro, onde talvez me fosse possível retomar o trabalho de jornalista. Meu objetivo de vida, na verdade, era fazer cinema. Mas era um projeto difícil de levar adiante, pois eu estava na mira dos militares. Na Bahia, tinha feito alguns curtas-metragens e um longa, 69 – A Construção da Morte, que a censura destruiu, como também destruiu um documentário sobre as Ligas Camponesas que realizei com o diretor Geraldo Sarno. Destruição no sentido material: um militar rasgou os copiões desse filme com as mãos, enquanto me ameaçava com prisão “ou coisa pior”. Em São Paulo, Conceição e eu nos reunimos a outros baianos fugidos de sua terra e criamos um grupo para fazer teatro, música e o que aparecesse. Jorge era casado na época com uma baiana e fazia parte desse grupo.
No mesmo ano de 1973, consegui me transferir para o Rio. Um dia, Jorge apareceu em casa e anunciou que a ZDF, uma emissora pública de tevê alemã, estava interessada em produzir o filme sobre a Transamazônica. E convidou Conceição e a mim para participarmos da aventura. Imediatamente, começamos a planejar, ou pré-planejar, o filme.
Jorge logo chamou a atenção para o grande número de mulheres chamadas Iracema que circulavam na Belém-Brasília (o mesmo ocorria na capital paraense e na Transamazônica, verificamos depois). Uma sugestão dele me entusiasmou: buscar uma atriz com características amazônidas, como uma indígena ou uma indígena aculturada, ou quem sabe uma mestiça. Mas, se estávamos falando de uma “atriz”, então não seria simplesmente um documentário. A ideia de que o filme mesclaria ficção com cenas documentais me entusiasmou mais ainda – e me levou de volta a Bertolt Brecht.
Eu havia estudado o dramaturgo alemão na Escola de Teatro da Bahia, em Salvador, e me interessava por seu método teatral, baseado no “efeito do distanciamento”, um recurso para fazer o espectador se dar conta da parte de ilusão que sempre há em qualquer encenação e trazê-lo de volta à realidade. Foi a influência de Brecht que me levou a usar, em 69 – A Construção da Morte, várias reportagens autênticas feitas por um jornal baiano, cujos repórteres nós acompanhamos nas coberturas de crimes e acidentes. Algo desse método poderia ser adotado no filme sobre a Transamazônica.
Jorge também sugeriu que a “personagem” de origem indígena tivesse o nome Iracema, criando um vínculo (e um contraste) com a famosa protagonista do romance de José de Alencar e a visão idealizada do passado brasileiro que o maior autor do nosso Romantismo formulou. O nome proposto me encantou. Tanto mais porque, diferentemente do que parece, Iracema não é um termo indígena, mas um anagrama criado por Alencar a partir da palavra “América”.
Os alemães tinham pressa e então organizamos rapidamente uma viagem de pesquisa à Amazônia, com as despesas cobertas pela ZDF e a Stop Filmes, produtora de Jorge e de seu amigo alemão Wolf Gauer. Em um Fusca branco, nós três percorremos milhares de quilômetros de São Paulo à capital federal (que só tinha catorze anos), continuamos pela Belém-Brasília até a capital paraense, de onde seguimos para a Transamazônica, atravessando um longo trecho dela que estava sendo aberto no Pará.
A balbúrdia social na rodovia nascente era bem maior do que a que tínhamos testemunhado na Belém-Brasília asfaltada – e muito mais violenta. Passamos a dedicar nossa atenção à estrada poeirenta, com centenas de grandes máquinas, o tráfego de viaturas do Exército, as árvores gigantescas sendo derrubadas, os incêndios enormes que sempre aconteciam em algum lugar, o tráfico de madeira (apesar da vigilância militar), os hotéis imundos, os restaurantes para caminhoneiros, os bares com muitas prostitutas-meninas e cafetões, além dos inúmeros aventureiros que disputavam pequenas faixas de terra nas margens da estrada, apesar dos avisos de que essas áreas não podiam ser ocupadas. Viajamos vagarosamente, parando nos lugares durante horas para conversar com as pessoas. Também navegamos um bom tempo pelo Amazonas e seus igarapés.
Para os primeiros registros visuais e sonoros, tanto a câmera quanto os instrumentos de gravação eram de pequeno porte, o que permitia manter uma postura discreta diante das pessoas. Mas, para nossa surpresa, a maioria delas nem sequer olhava na direção da câmera super-8 de Jorge: só queriam conversar, falar sobre a dureza da vida, a “maldade dos ricos” e, abaixando a voz, os desmandos do governo, que expulsava os sitiantes das margens da estrada. Os poucos que reparavam nos equipamentos, entre eles alguns policiais militares, apenas perguntavam se éramos “da TV Globo”.
Já estávamos trafegando havia vários dias naquela estrada que cortava o coração da floresta quando nos demos conta de que não tínhamos visto nenhum, absolutamente nenhum animal silvestre. A fauna tinha fugido do ser humano, do seu barulho incessante, das suas armas. Assim está no filme: imagens sem animais.
A viagem de pesquisa durou, creio, quase um mês, período durante o qual aprendemos como nos relacionar com as pessoas da região e os migrantes: devíamos ouvi-los atentamente, demonstrando uma cabal confiança nos sentimentos que expressavam, e também rir com eles, se fosse o caso, criando intimidade. Jorge estava sempre fotografando ou filmando. Eu registrava as entrevistas e conversas com o gravador oculto. Wolf ocupava-se da produção. Também buscamos as locações que apresentassem algum interesse.
Nas estradas, as barreiras policiais eram frequentes, e sempre nos perguntavam o que estávamos fazendo ali. Sacávamos então um documento obtido pela produção dizendo que a Volkswagen nos autorizara a fazer testes em seus carros. Os policiais nos deixavam passar e aconselhavam a não fazer contato com as pessoas que circulavam nas margens da estrada, “essas almas penadas”, diziam. Na verdade as “almas penadas” se moviam muito. Depois de levantar suas casas precárias num lugar, logo se mudavam para outro, porque a polícia destruía os casebres. O ciclo de faz e desfaz continuava sem parar.
Para confirmar locações, voltamos a Belém. Centramos nossa atenção na vida noturna e no submundo da cidade, que teriam grande importância no filme. Fomos aos prostíbulos, à então chamada praça do pecado (na saída da cidade, onde havia grande concentração de prostitutas vivendo em casas sobre palafitas). Também fizemos contato com grupos de teatro de Belém, amadores ou semiprofissionais, com músicos, acrobatas de rua – algumas dessas pessoas atuaram posteriormente em cenas improvisadas.
Um dia, encontrei numa rua em Belém, por acaso (ou talvez não), um amigo de adolescência, que me convidou para almoçar. Dono de casas noturnas em Salvador, na Bahia, ele se tornara um empresário aventureiro. Chegou ao restaurante em um carro de luxo. Assim que nos sentamos à mesa, ele disse: “Meu cineasta, o homem das ideias, tenho uma proposta pra você.” Discretamente, liguei o gravador e deixei rodar. Ele continuou:
O negócio é ter peito. Isso aqui é uma mina de ouro aberta. Falo com qualquer figurão, qualquer autoridade, qualquer patente. Entro, dou a dica e tomo o tutu. Eu sei onde tá e com quem tá o dinheiro. Ideias: aí é que tá a coisa. Eu montei uma sociedade anônima em São Paulo em menos de três horas. Naquela selva! Imagina nesse deserto. Vou montar uma trading company, capital e know-how americanos, a maior empresa no gênero da América Latina. Aqui não tem uma só trading. É tudo navegação primitiva. Maior celeiro do mundo, maior empreendimento governamental do planeta e importando tudo. Tem é que exportar, cara. Exportar, fazer, fabricar, construir, botar esses índios pra trabalhar. A mão de obra mais barata do país. Quando viram que o pessoal daqui era na moleza, era tudo burro de carga sem futuro, sem ideias, quiseram transformar a Amazônia em um lago. Lago é a mãe! Pois, se inundassem isso aqui, eu tava em cima, com trezentos ferry boats ligando o Oceano Pacífico ao Oceano Atlântico. Olha o Acre aí, o Eldorado é o Acre. O Brasil vai ter que sair pelo Pacífico, e nós podemos ser representantes de tudo que é transporte, e é pra já. Deixa de medo, deixa de ser bobo. Esse tipo de coisa, negócio de vamos ver, vou pensar e coisa e tal é perda de tempo. Se eu tiver que lhe roubar, roubo com documento assinado, firma registrada. Você tem que confiar no negócio, e não na pessoa. Aqui é tudo ladrão. Se for desconfiar, você não faz nada. A jogada é passar a perna primeiro, e tou lhe propondo passar a perna em todo mundo.
Perguntei se ele gostaria de fazer um personagem no filme. Ele me olhou desconfiado: “Que personagem?” Eu disse: “Você mesmo.” E ele abriu um sorriso: “Já topei.” Esse personagem (ou essa pessoa) está em Iracema, e é o bastante para entendermos em que mundo estamos entrando quando assistimos ao filme, com que tipo de empresários lidaremos na “mina de ouro aberta”, onde tudo pode ser encontrado, bastando “ter peito”, ou seja, ter coragem.
A essa altura já tínhamos desenhado em nossa imaginação o outro personagem que a Transamazônica nos indicava o tempo todo: o caminhoneiro. Um caminhoneiro que se chamaria Tião Brasil Grande – “Brasil Grande” era um dos slogans da ditadura, junto com “Brasil, ame-o ou deixe-o”, entre outros. Faltava apenas um grande ator para esse papel. Não demoramos muito a decidir por Paulo César Pereio, amigo meu e de Jorge, um ator reconhecido por seu talento para representar tipos malandros, acrescentando-lhes um timbre muito particular de deboche e sarcasmo. Nas filmagens de Iracema, pedi a Pereio para levar ao máximo esses procedimentos dramáticos.
Faltava, porém, encontrar a pessoa que faria a personagem principal, Iracema. À medida que a viagem de pesquisa chegava ao final, a busca pela intérprete havia se transformado numa obsessão para nós. Faltando dois ou três dias para regressarmos a São Paulo e ao Rio de Janeiro, alguém nos sugeriu que valeria a pena assistir aos programas de auditório das rádios de Belém, do qual costumavam participar algumas adolescentes. Fomos a um deles. Ao chegar lá, nos deparamos com jovens dançando em um palco. Bastaram uns minutos para que Jorge e eu reparássemos, ao mesmo tempo, em uma menina encantadora, a mais animada de todas, a mais sorridente, a mais brincalhona.
Fomos conversar com ela ali mesmo, na rádio. Contamos sobre nosso projeto e fizemos o convite para que participasse do filme. Ela respondeu que nunca tinha visto um filme sequer, mas sabia “fazer palhaçada”.
Depois de meia hora de conversa, Edna Cereja – era esse o nome dela – já estava absolutamente à vontade conosco e, rindo muito, disse que gostaria, sim, de trabalhar no filme, mas que antes precisávamos pedir autorização à sua mãe. Jorge a convidou para fazer algumas fotos no Mercado Ver-o-Peso, perto dali. Quando fazia as fotos, uma indígena se aproximou, falando alto. Era a mãe de Edna, repreendendo-a por, em vez de estar na escola, ficar andando “solta na rua”.
Uma vez terminada a pesquisa e depois de encontrarmos a atriz principal, voltamos à nossa base no Sudeste. Jorge e Wolf seguiram para São Paulo, a fim de cuidar da preparação do filme. Eu fui para o Rio e passei a me dedicar à escrita do roteiro ou algo parecido. Escrevi primeiro uma sinopse de 35 páginas com esta trama simples: uma menina prostituta é levada de Belém para a Transamazônica por um caminhoneiro e abandonada nos confins infernais da rodovia em construção.
Após algumas reuniões com Jorge, cheguei ao roteiro, que tinha noventa páginas. Mas era um roteiro aberto, para documentário, sujeito a modificações, conforme os acontecimentos durante a filmagem. Meu trabalho partiu da junção de duas listas. Na primeira, constavam situações ou comportamentos que havíamos vivenciado durante a pesquisa com prostitutas, caminhoneiros, traficantes de madeira, militares, pequenos comerciantes, camponeses em absoluta miséria e a fauna humana em geral da estrada. Essas situações seriam recriadas ou serviriam apenas de inspiração para as cenas que faríamos com os não atores, as pessoas comuns dispostas a interagir com nossa equipe (e havia muita disposição para isso, de ambas as partes).
Na segunda lista havia algumas situações mais organizadas do ponto de vista dramático e com maior nível de complexidade, formando o eixo da história a ser contada. Com isso, evitaríamos que o filme se perdesse na infinidade de interfaces em que iríamos mergulhar.
Já tínhamos o nosso núcleo dramático e seus intérpretes: a paraense Edna Cereja faria a personagem principal; o gaúcho Paulo César Pereio, o caminhoneiro Tião Brasil Grande; e a baiana Conceição Senna interpretaria Tereza, uma prostituta que leva Iracema mais para dentro da floresta. O roteiro (aberto) era apenas um guia para essas pessoas, que o leram só uma vez. Essa leitura única tinha a ver com o estilo que almejávamos: filmar a realidade mesma, fazendo com que os atores, em vez de seguir um plano predeterminado, improvisassem a partir de seu confronto com situações reais. A ideia central era que a parte de ficção servisse em alguns momentos como uma cunha ou uma alavanca inserida no evento real, apenas para ressaltar, chamar a atenção para certos aspectos dessa mesma realidade, sem desfazer sua condição de evento verdadeiro.
Também tinham cópias desse roteiro o produtor e o técnico de som, para que fizessem as anotações necessárias à administração das preparações e gravações. O restante seria feito na base da conversa, tanto com a equipe quanto com os atores e os não atores.
Esse método produziu uma relação tão especial no grupo que, em poucos dias de filmagem, já estávamos “tocando de ouvido” e nos comunicando intensamente apenas com olhares e gestos. Era como se “adivinhássemos” o que o outro queria, desenhando storyboards imaginários no chão da estrada. Com a liberdade permitida pelo roteiro precário e a quantidade de estímulos vindos da Transamazônica, todos improvisávamos na maior parte do tempo. E nos surpreendíamos a cada instante com a tagarelice do povo da rodovia, com sua vontade ou necessidade de falar. A estratégia de recorrer à ficção somente como alavanca para a descrição da realidade somou-se ao fato de essas pessoas da estrada acreditarem plenamente que Edna era a prostituta Iracema e que Pereio era de fato um caminhoneiro gaúcho, o Tião Brasil Grande.
Edna logo assumiu a condição de centro desse carrossel. Não apenas por causa de seu trabalho como atriz principal, mas, surpreendentemente, devido à sua alegria contagiante, embora entrecortada por momentos de tristeza e choro. Ela inventou apelidos para todas as pessoas da equipe e até para os equipamentos, como a câmera, que tratava como A Generosa, por lhe proporcionar salário, hotéis, restaurantes, carros e outras comodidades que até então não conhecia. Em poucos dias, Edna estava ajudando a equipe técnica: avisava que a continuidade das cenas estava errada, que a maquiagem de alguém estava incompleta.
A primeira coisa que Edna nos disse, quando chegamos a Belém para iniciar a filmagem, foi: “Vi três filmes.” Ela também já sabia o que era “nome artístico” e estava decidida a deixar para trás o sobrenome de batismo (Cereja), adotando um novo nome: Edna de Cássia. Para autorizar que levássemos sua filha, que tinha entre 14 e 15 anos, a uma região conflagrada, com grande tensão social, “tiroteio todo dia”, a mãe de Edna apresentou uma condição: a atriz Conceição Senna, minha mulher, deveria ser a responsável pela jovem e teria que trazê-la de volta à família sã, salva e “inteira”. Dois documentos foram assinados: um oficial, da mãe autorizando a viagem da filha, e um particular, firmado por Conceição, comprometendo-se a cuidar de Edna. E assim foi. As duas únicas mulheres da equipe se adotaram mutuamente, tomando conta uma da outra, e construíram uma amizade familiar para sempre.
Nossa equipe contava com nove integrantes. Sete viajavam em uma Kombi, onde também estava o equipamento de última geração que utilizamos. Atrás, vinha um caminhão (que era o veículo usado nas cenas do caminhoneiro), com duas pessoas, Pereio e o motorista Lúcio, que era também dublê, pois o ator não sabia dirigir e aprendeu durante as filmagens. Alguns de nós tinham mais de uma função, movidos pela “filosofia mosqueteira”: um por todos e todos por um. Jorge era ao mesmo tempo diretor, fotógrafo e câmera. Eu, diretor, roteirista e responsável pelo desempenho dos não atores. Achim Tappen cuidava do som, e Wolf, da produção. O paraense Francisco “Mou” Carneiro, de Belém, atuava como assistente geral. Conceição, além de interpretar Tereza, desempenhava a função de diretora de arte – e cuidava de Edna.
Começamos as filmagens em Belém em 1974, durante a procissão do Círio de Nazaré. Encarnando sua Iracema, Edna circula entre milhares de fiéis que acompanhavam esse evento religioso, realizado até hoje no Pará, no segundo domingo de outubro. Passamos mais alguns dias filmando nos prostíbulos da cidade e, em seguida, fomos para a Transamazônica, onde logo aprendi os apelidos da estrada em construção: Transamargura e Transmiseriana.
Nossos veículos eram parados a cada meia hora pelas patrulhas do Exército, que descarregavam tudo que estava dentro deles e, depois de uma revista minuciosa, liam o documento da Volkswagen nos autorizando a trafegar com a Kombi, faziam algumas perguntas e iam embora, deixando a carga na estrada. Um dos nossos, creio que Achim, tinha uma caixa de isqueiros de plástico, descartáveis, uma novidade na época. Descobrimos que presentear os comandantes das patrulhas com esses isqueiros diminuía consideravelmente o tempo das revistas. Às vezes a notícia de que “os alemães” tinham isqueiros modernos chegava antes mesmo que alcançássemos as barreiras, e os soldados se aproximavam sorridentes, perguntando pelos “isqueirinhos”. Com soldados risonhos ou não, a atmosfera nervosa e ameaçadora parecia aumentar à medida que penetrávamos mais longe na estrada. A minha impressão era de que havia um mistério envolvendo aquela região, um segredo.
Certa vez, quando buscávamos uma boiada para ser filmada, fomos presos pelo proprietário de uma fazenda. A prisão consistia em não nos deixar sair da sede da fazenda até que o proprietário, recorrendo a um radioamador, soubesse com certeza quem éramos e o que queríamos. De repente, ele reapareceu tranquilo, sorrindo, nos ofereceu uísque e cerveja, pediu desculpa pela demora e nos autorizou a filmar seu rebanho. Não filmamos. Inventamos uma explicação qualquer, prometemos voltar outro dia e fomos embora aliviados.
Pouco tempo depois, fomos presos novamente, dessa vez por um tenente do Exército e seu grupo – meia dúzia de soldados fardados e alguns civis armados. No dia anterior, Jorge tinha filmado o mesmo tenente jogando roleta numa praça pública, o que era proibido. Após mostrar para nós um cigarro amarfanhado e nos acusar de estar fumando maconha, o militar mandou que entrássemos na Kombi e seguíssemos por uma trilha mato adentro, até um local onde havia uma construção inacabada e uma placa enferrujada com a palavra “Delegacia”.
Tentávamos aparentar tranquilidade, mas estávamos com medo, tomados por uma sensação de abandono, acentuada pelo fato de não sabermos onde estávamos nem o que fazer diante de tantas armas. Dentro da “delegacia”, fomos enfileirados diante do tenente, que se dirigiu a um dos civis armados: “O senhor pode dizer quem estava fumando maconha na praça?” O homem apontou o indicador para mim, e eu perguntei na bucha se ele tinha me visto fumar maconha. Ele se surpreendeu com minha atitude e disse: “Ver não vi, mas senti o cheiro.” O “ver não vi” enfureceu o tenente. Começou uma discussão entre ele e nossa equipe. “Que acusação é essa? Como você pode dizer ‘senti um cheiro’? A floresta tem mil cheiros, tem queimadas aqui perto”, argumentamos.
De repente, ouvimos o ruído de um carro estacionando. Dois homens apareceram em seguida, vestindo coletes à prova de balas e portando revólveres na cintura. Um deles foi saudado pelo tenente como “federal”. O tenente contou a sua história sobre a maconha, o “federal” examinou nossos documentos, e eu disse que estávamos trabalhando para a Volkswagen, que éramos cineastas. O “federal” pediu ao homem que tinha chegado com ele que anotasse nossos nomes, puxou o tenente para um canto, e eles conversaram um tempo, cochichando. Depois, dirigiu-se a nós com um meio sorriso e disse que estávamos liberados, mas deveríamos nos apresentar a ele em Belém. Nunca nos apresentamos, mas soubemos, em Belém, que o “federal” era um sujeito corrupto, metido com o tráfico de drogas.
Não havia animais nas margens da estrada e tampouco havia indígenas. Encontramos apenas alguns aculturados, com óculos espelhados, comendo em um restaurante, nos primeiros dias de filmagem. Pedimos a Edna/Iracema que levasse alguns pratos para eles e puxasse conversa. Ela disse que não queria se aproximar daqueles homens, que não era “uma boa” se misturar com índios. Conceição conversou com ela, enfatizando que seria Iracema quem estaria se aproximando, e não Edna. Ela começou a chorar, mas entendeu. Levou um prato à mesa, em silêncio. Depois foi para um canto do restaurante e chorou novamente (essa imagem está no filme). À noite, conversamos sobre o assunto. Ela disse que tinha pensado “besteira”: não queria ser confundida com os indígenas, que são perseguidos e os que mais sofrem “no mundo”.
No início das filmagens, Edna não se aproximava das prostitutas. Dizia que tinha pena delas, que não sabia o que conversar com as moças e que nunca seria como elas: “Prefiro morrer.” Em poucos dias mudou de postura, graças sem dúvida à influência de Conceição, que tinha boa relação com as prostitutas, muito próxima e muito forte. Nos primeiros dias, ficamos um bom tempo num bordel miserável e, no momento que partimos, várias prostitutas correram atrás da nossa Kombi, chorando e gritando: “Me leva, Conceição.” Isso provocou uma comoção enorme entre nós: Conceição e Edna caíram em prantos, enquanto os homens enxugavam ou escondiam as lágrimas. A partir de então, Edna completou sua investidura na personagem e se aproximou das prostitutas, todas elas mais ou menos de sua idade.
A cena comovente do “Me leva, Conceição” repetiu-se algumas vezes durante a viagem/filmagem, sempre acompanhada de choro, fora e dentro da Kombi. Esses momentos de emoção precisavam ser logo controlados, pois a realidade nos chamava ao trabalho do filme. Havia também os momentos de riso, como os provocados por Conceição quando ela fazia a dita “higienização” dos banheiros dos hotéis. As cortinas e cadeiras de plástico eram retiradas, ela derramava álcool por toda parte no banheiro e tocava fogo. Acontecia um incêndio rápido, logo debelado. Conceição achava que, graças a essa limpeza pirotécnica, o banheiro estava livre dos micróbios e apto para o uso. Um dia, porém, o fogo se espalhou mais do que o previsto em um banheiro e tivemos que agir rapidamente para apagá-lo. Depois de um pouco de desespero e muita gritaria, caímos na gargalhada.
A natureza nos presenteava com cenas belíssimas durante a viagem. Não me saem da memória os poentes, quando cores variadas se espalhavam no horizonte, e o Sol riscava o céu com listras vermelhas. O espetáculo mais impressionante ocorria quando avistávamos, em algum longo trecho plano da estrada, uma chuva suave caindo ao longe. Nós nos aproximávamos pouco a pouco, atravessávamos a área com chuva e saíamos do outro lado, onde a paisagem estava seca novamente – era como se tivéssemos atravessado três dimensões diferentes do tempo. Mas, quando a chuva era forte, vivíamos o outro lado da moeda, porque, na rodovia sem asfalto, uma tempestade sempre trazia problemas: muitos quilômetros de lama e muito trabalho para sairmos dos atoleiros.
Nossas reuniões de trabalho aconteciam no fim da tarde, a partir do momento em que as filmagens eram interrompidas até a hora do jantar. Discutíamos o trabalho realizado e fazíamos uma lista de possibilidades para o dia seguinte. Geralmente eram reuniões rápidas, pois o cansaço nos derrubava. Mas foi durante essas reuniões que tomamos consciência, a partir da segunda semana de gravações, que estávamos construindo uma linguagem híbrida, em que realidade e ficção se fundiam, transformando-se numa terceira forma de expressão. Eu costumava chamar esse novo processo de “quina”, ou seja, a borda entre um lado e outro da moeda, como dizem no Nordeste, o terceiro lado da moeda. Também foi nesses entardeceres que me dei conta de que o filme poderia ajudar na desconstrução do mito da Transamazônica propagado pela ditadura.
Em uma dessas reuniões rápidas ao pôr do sol discutimos e solucionamos, por exemplo, o problema de como registrar o trabalho escravo. Filmar trabalhadores escravos em atividade era impossível, e entrevistas com os que conseguiam fugir ou ser libertados eram comuns na imprensa. Em geral, eles não falavam muito, pois ainda estavam presos ao medo. Certo dia, soubemos que entre vinte e trinta pessoas tinham sido libertadas pela polícia, e foi com elas que fizemos a sequência de Iracema sobre o trabalho escravo. Só que, em vez de recorrer aos recém-libertos para falarmos de sua soltura, mostramos o processo inverso: no filme, eles aparecem sendo vendidos por um “gato”, como é chamado o traficante de gente na Amazônia. Ou seja, fizemos a cena ao contrário: os trabalhadores não estão saindo da escravidão, mas entrando nela.
A violência contra os migrantes, as prostitutas, os caminhoneiros e os bêbados, que podia ser vista ou sentida em larga escala, às vezes se aproximava muito da nossa equipe, como nas duas prisões que descrevi. A situação mais perigosa aconteceu em um bordel onde estávamos filmando o despertar das prostitutas. Era uma casa espaçosa, cujos quartos davam para um pátio largo. O único banheiro ficava no centro, protegido por tabiques que, porém, deixavam à vista o rosto e as pernas de quem se banhava.
Lá estava uma moça bonita, muito branca e nua, cantando alguma coisa. De repente apareceu um guarda civil, invadiu o banheiro e começou a espancar a jovem. Ela reagiu com socos ferozes e outras prostitutas começaram a gritar: “Respeite sua farda, não faça isso.” Tentei interferir, mas uma das mulheres disse: “Não se meta, ele tá louco.” O guarda saiu molhado do banheiro e, empunhando um revólver, ordenou que todo mundo deixasse o pátio. “Pois vai correr sangue”, ele gritou.
A equipe, que estava no pátio se preparando para a filmagem, seguiu para a única porta de saída. Eu me dirigi ao homem armado e pedi calma, disse que já estávamos saindo. Ele se aproximou, apontou o revólver na direção da minha cabeça e berrou: “Sai agora, sai agora.” O corpo dele era um feixe tenso e sua mão com o revólver tremia diante do meu rosto. Olhei para a porta, alguém me falou que todos já tinham saído, e eu também saí. Os gritos então recomeçaram, com briga de tapas e socos no banheiro. Antes de me retirar da casa, vi o homem socando sem piedade o rosto da mulher, enquanto dizia: “Vou lhe matar, vou lhe matar.” Partimos, sem saber do desfecho da disputa.
Entramos na Kombi e estávamos prontos para ir embora quando nos demos conta de que Conceição não estava conosco. Voltamos ao bordel. Já não havia gritos, mas dava para ouvir o homem dizendo alguma coisa, como se fizesse um discurso. Uma prostituta mais velha esperava na porta e me levou a um dos quartos, onde estava Conceição cercada por várias mocinhas, protegida por elas. Fomos embora, as pernas tremendo.
A equipe, alojada na Kombi e no caminhão de Lúcio, dirigiu-se a Marabá, no sudeste do Pará. As barreiras policiais ali eram bem mais numerosas do que as que havíamos encontrado em outros pontos da estrada. O método de abordagem era o de sempre: os policiais ou soldados retiravam tudo que havia nos veículos e despejavam as bagagens no leito da estrada, obrigando-nos a rearrumar tudo de novo. Mas agora os interrogatórios eram mais minuciosos, nossos documentos pessoais e autorizações eram longamente examinados. Voltou forte a sensação de que estava acontecendo por ali alguma coisa que não sabíamos.
Em Marabá, fomos escoltados o tempo todo por um tenente, que não nos impedia de trabalhar e circular, mas estava sempre nos vigiando a curta distância. Fizemos perguntas a algumas pessoas em uma lanchonete, e um senhor de barba branca nos informou em voz baixa que estávamos em “território de guerrilha”. Disse ainda que, poucos dias atrás, o Exército anunciara ter acabado com a guerrilha, mas que isso era mentira, pois de vez em quando se ouviam tiros e explosões de napalm na região. De fato, o Exército exterminara a guerrilha em outubro de 1974.
Antes das filmagens, quando ainda estava no Rio, ouvi na redação do jornal Última Hora, onde eu trabalhava, comentários de que estava acontecendo uma luta guerrilheira no Norte. Mas talvez fossem boatos, e não pensei mais no assunto. Na verdade, a censura de notícias sobre o assunto “guerrilha” era tão profunda que praticamente ninguém, nem mesmo os jornalistas, sabia o que estava acontecendo no interior do Brasil. Apenas os moradores da região conflagrada podiam dar notícia, de fato, sobre o que se passava.
Foi então que ganhou corpo aquela nossa sensação recorrente de que algo vinha ocorrendo desde que saímos da Belém-Brasília e entramos na Transamargura. Durante todo o tempo, estivemos bordeando uma zona de guerrilha e parecia que, ao entrar em Marabá, no Pará, tínhamos penetrado no que fora seu epicentro. Tentei obter mais informações com os moradores, mas ninguém queria falar. Diziam apenas: “Parece que acabou” ou “Não sei de nada”. Mais comum era se fazerem de desentendidos, enquanto apontam com o olhar o tenente que nos seguia.
Só vim a saber algo de mais concreto quando voltei ao Rio. O que estava acontecendo desde nossa viagem de pesquisa em 1973 era a Guerrilha do Araguaia, uma campanha revolucionária feita pelo Partido Comunista do Brasil (PCdoB). Os guerrilheiros atuavam ao longo do Rio Araguaia (que também banhava Marabá), contando muitas vezes com o apoio de camponeses e ribeirinhos. A partir de 1972, a ditadura resolveu agir contra a guerrilha e enviou as Forças Armadas para a região. O enfrentamento durou quase três anos. Em 1974, os guerrilheiros foram derrotados e submetidos a torturas cruéis, execuções sumárias e fuzilamentos. Até hoje não se sabe com exatidão quantas pessoas foram mortas, entre guerrilheiros e moradores da região.
Foi à sombra dessa guerra e desse horror que, sem saber deles, fizemos o filme.
ORLANDO SENNA
Cineasta e escritor, dirigiu Iracema – Uma Transa Amazônica (com Jorge Bodanzky), Diamante Bruto, Brascuba (com Santiago Alvarez). Recentemente dirigiu Longe do Paraíso
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