segunda-feira, 30 de janeiro de 2023

Pílulas 10

Gatos, tubarões e cães no caminho de papas, cineastas e presidentes

Bichos viram protagonistas nas vidas de Bento 16, Spielberg e Lula

Por Sérgio Augusto, 07/01/2023, O Estado

Na última quinzena do ano, a tradicional fauna da manjedoura acabou eclipsada, na mídia internacional, por uma cadelinha brasileira sem pedigree, um punhado de gatos vaticanos e aqueles bichos que mais nos metem medo dentro d’água depois das piranhas. Os gatos eram os que o finado papa emérito Bento 16 acolheu e lhe fizeram companhia em sua penúltima morada. A cadelinha sem pedigree é mesmo aquela que tomou posse com Lula, domingo passado. Quanto aos tubarões, a todos eles o cineasta Steven Spielberg pediu perdão, publicamente, pelos eventuais danos que seu filme Tubarão (Jaws) teria causado à preservação da espécie.

Bento 16 não tinha cara de elurófilo. Mas o papa Leão 12 tampouco tinha e no entanto também adorava gatos. Do seu xodó felino o escritor e ministro francês Chateaubriand passou a tomar conta. Os de Joseph Ratzinger ficarão sob custódia da Santa Sé ou mesmo da prefeitura romana, que entende do riscado. 

Spielberg ganhou os tubos com Tubarão e seu avassalador êxito comercial (já foi a maior bilheteria de todos os tempos) contribuiu de forma decisiva para sufocar o cinema independente que a chamada “geração sexo, drogas e rock’n’roll” germinara em Hollywood, a partir de Sem Destino (1969). Spielberg simplesmente reinventou o blockbuster. Não de todo vassalo de sustos e horripilâncias; aqui e ali com brechas para algum tipo de “crítica social”. Um dos subtemas de Tubarão é a ganância capitalista. O maior predador do filme não é bem o tubarão, mas o prefeito e os hoteleiros da Ilha Amity, que, qual Pazuellos do turismo, se omitem e mentem para não prejudicar os negócios, fazendo jus à acepção metafórica que os dicionários dão às palavras tubarão e “shark”. 

Roy Scheider no filme de Spielberg, ‘Tubarão’, que seu criador abjurou por incentivar caça aos bichos Foto: Universal Pictures 

Em seu extemporâneo mea culpa, o cineasta se ateve ao “danoso” estímulo que seu thriller deu à pesca do tubarão como atividade esportiva. Por sorte, o tubarão do filme era fake, um artefato mecânico, como a Moby Dick de John Huston, não um bicho de verdade, como os golfinhos Flipper e Winter. Do contrário, Spielberg teria de prestar contas aos órgãos que desde 1938 monitoram o tratamento dado a animais em produções cinematográficas.

Mea culpa mais consequente ficaram devendo vários diretores da velha guarda hollywoodiana, entre os quais Michael Curtiz, que nada fez para evitar o morticínio de dezenas de cavalos durante as filmagens de A Carga da Brigada Ligeira, em 1936. Contrariando as ameaças dos bozogolpistas, Lula não só logrou subir sem obstáculos a rampa do Planalto como ainda inovou, levando pela coleira a estopinha Resistência, mestiça até pouco tempo sem lar e agora primeira-cadela no Alvorada. Muita gente achou aquilo ridículo, mas logo entregou os pontos.

Os presidentes norte-americanos são mais publicamente apegados aos seus animais de estimação do que os nossos. E até mais dependentes deles politicamente. Graças a um discurso piegas sobre um cocker spaniel chamado Checkers, Richard Nixon escapou de perder a corrida presidencial de 1952, como vice de Eisenhower. Franklin Roosevelt só assegurou um quarto mandato presidencial após resgatar sua scottish terrier, dada como perdida numa das ilhas Aleutas, durante a Guerra do Pacífico. O que Resistência podia ter feito por Lula ela já o fez.. 

Em tempo

'O filme Tubarão é baseado no livro homônimo de Michael Crichton e é classificado no gênero terror e suspense. Vejam só, um filme em que a personagem principal é um tubarão, o vilão da estória. Uma garota é encontrada morta na praia, possivelmente por um ataque de tubarão. Aí a trama toda transcorre na caça a um tubarão branco. Ao contrário do que mostra o filme o tubarão branco não caça gente para comer. Ele gosta mesmo é de gordura, que é abundante nas focas, leões e elefantes marinhos. Claro que ele não vai desprezar um humano de 150 kg viciado em refrigerante, pizza e sorvete. Caiu no mar é peixe. É um equívoco imaginar que tubarões são agressivos com os humanos. Das cerca de 400 espécies, apenas 30 estão envolvidas em ataques a pessoas.' (Os dinossauros ) 

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Golpistas urinaram em peça de Burle Marx e quebraram um Krajcberg; veja lista

Busto da artista Marta Minujín foi encontrado no chão e restauração de relógio de dom João 6º é considerada difícil 

Carolina Moraes e Gustavo Zeitel, 9/1/2023, Folha de São Paulo

Os manifestantes golpistas que invadiram as edificações da praça dos Três Poderes, em Brasília, idealizadas pelo arquiteto Oscar Niemeyer —Palácio do Planalto, Congresso Nacional e Supremo Tribunal Federal— danificaram importantes obras de arte da cultura brasileira e prédios tombados.

Obra de Di Cavalcanti depredada no Palácio do Planalto - Gabriela Biló/Folhapress

O Palácio do Planalto é onde há, por ora, o maior número de obras de arte danificadas. "Bandeira do Brasil", de Jorge Eduardo, de 1995, foi encontrada boiando na água que inundou o térreo do edifício.

No terceiro andar, "Mulatas", de Di Cavalcanti, "O Flautista", de Bruno Giorgi, e "Galhos e Sombras", de Frans Krajcberg, também foram vandalizadas —veja lista completa abaixo.

O governo estima que só o trabalho de Di Cavalcanti, o mais importante do Salão Nobre, vale R$ 8 milhões. Na obra de Krajcberg, avaliada em R$ 300 mil, galhos que compõem o trabalho foram quebrados e jogados longe.

Depredação no Salão Nobre em invasão bolsonarista à brasileira neste domingo 8/1/2023. Reprodução / Twitter

O diretor da casa de leilões Bolsa de Arte, Jones Bergamin, no entanto, avalia que a obra de Di Cavalcanti valha cerca de R$ 20 milhões. Segundo ele, boa parte das obras depredadas são raras e importantes, mas "Mulatas", tanto pelo tamanho quanto pela sua representação do país, é a de maior valor histórico entre as vandalizadas.

"Bailarina", obra de Victor Brecheret, que foi arrancada de sua base e encontrada no chão da Câmara dos Deputados, é avaliada em R$ 5 milhões— e, de acordo com Bergamin, será difícil de restaurar caso tenha grandes danos. Isso porque a pátina, uma camada que cobre os metais das esculturas, é antiga. É o mesmo caso da restauração da escultura "A Justiça", de Alfredo Ceschiatti, que foi pichada na frente do STF e vale entre R$ 2 milhões e R$ 3 milhões.

No Planalto, há ainda imagens da obra "Vênus Apocalíptica", da artista argentina Marta Minujín, jogada no chão, do lado de fora do prédio. Os danos às obras foram vistoriados por restauradores e especialistas nesta segunda-feira.

Segundo o governo, o diretor de curadoria dos palácios presidenciais, Rogério Carvalho, avalia que a maioria das obras pode ser restaurada, com exceção do relógio de Balthazar Martinot. A peça, considerada rara, foi dada de presente a dom João 6º pela corte de Luís 14, da França. O objeto foi desenhado por André-Charles Boulle e fabricado pelo relojoeiro francês Balthazar Martinot no fim do século 18, poucos anos antes de ser trazido ao Brasil.

Quadros também foram quebrados e rasurados no corredor que dá acesso às salas dos ministérios no Planalto, e uma mesa-vitrine do designer Sérgio Rodrigues teve seu vidro quebrado. Uma imagem ainda mostra que desenharam um bigodinho com caneta azul que imita o de Adolf Hitler num retrato de José Bonifácio.

No Senado, vândalos ainda urinaram numa tapeçaria de Burle Marx, danificaram um tinteiro de bronze da época do Império, um quadro que data de 1890 e retrata a assinatura da Constituição, e uma mesa do Palácio Monroe, onde funcionou a segunda sede do Senado, no Rio de Janeiro.

O Planalto tem um acervo com mais de 700 obras, de acordo com um levantamento feito pelo jornal via Lei de Acesso à Informação —Djanira Motta da Silva, Athos Bulcão, Carlos Scliar, Maria Bonomi, Francisco Brennand, Alfredo Volpi, Amilcar de Castro e Vicente do Rego Monteiro são alguns dos nomes de peso que fazem parte da coleção. Essas obras também se tornaram um ringue de disputa política com Jair Bolsonaro. A pintura "Orixás", de Djanira, que ficava no Salão Nobre, por exemplo, foi retirada do espaço pelo ex-presidente e voltou à reserva técnica do acervo. Ela também foi furada com uma caneta.

A obra dos anos 1960, que mostra divindades de religiões de matriz africana, voltou a ser exibida na mostra "Brasil Futuro: As Formas da Democracia", no Museu Nacional da República, em Brasília, como parte da programação cultural da posse de Lula. A primeira-dama Janja também já afirmou que a pintura retornará ao Planalto.

Rogério Carvalho, que voltou à curadoria de acervo neste ano e é um dos organizadores da mostra, disse que sua equipe tentava retratar o Brasil e mobilizar símbolos em que a própria população se reconhecesse ao trabalhar com as obras. Para ele, desde que Michel Temer chegou ao Alvorada, tudo que foi pensado para ser público voltou a ser privado.

Num áudio enviado a um grupo no WhatsApp logo após a invasão da praça dos Três Poderes, Carvalho conta que o terceiro andar do edifício tinha sido acabado de montar na terça-feira. O espaço mais danificado, segundo ele, foi o segundo piso do prédio — e o Ministério da Cultura e o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, o Iphan, foram acionados para acompanhar a vistoria das obras depredadas.

Manifestantes golpistas depredam prédio do STF vídeo

https://www.youtube.com/watch?v=ICskvqfo42o&t=1s

No STF, a cadeira da presidente Rosa Weber, concebida pelo designer Jorge Zalszupin, foi arrancada. Além disso, um crucifixo foi danificado e a escultura "A Justiça", de Alfredo Ceschiatti, de 1961, foi pichada.

Segundo um funcionário do Congresso, os golpistas quebraram as vidraças da Câmara e fizeram pichações. "Araguaia", vitral de Marianne Peretti, de 1977, que fica no Salão Verde da Câmara dos Deputados, também foi depredada. Também invadiram e quebraram a sala da liderança do PT. Ao lado, incendiaram uma lanchonete. Atrás dela, fica um painel do artista Athos Bulcão, que também foi vandalizado.

Em nota, o Iphan lamentou os danos causados ao patrimônio cultural brasileiro e afirmou que o levantamento completo das obras danificadas ainda depende de liberação de todos os prédios por parte dos órgãos responsáveis pela perícia.

"Em esforços conjuntos com o Ministério da Cultura, técnicos do instituto vão se reunir com a ministra Margareth Menezes, na tarde desta segunda-feira, para discutir medidas de restabelecimento de todos os prédios e definir as ações de conservação e restauração dos bens protegidos pelo Iphan", publicaram ainda.

As edificações da praça dos Três Poderes foram tombadas, em 2007, pelo Iphan. Brasília, cidade planejada ainda na década de 1950 durante o governo de Juscelino Kubitschek, também foi inscrita pela Unesco, em 1987, na lista do patrimônio mundial. Logo após o ataque, diversas autoridades e instituições ligadas à proteção dos monumentos públicos se manifestaram.

Em nota, o Conselho de Arquitetura e Urbanismo, o CAU, classificou a invasão como um atentado grave contra "o primeiro conjunto urbano do século 20 reconhecido como patrimônio mundial pela Organização das Nações Unidas".

O Conselho Internacional de Monumentos e Sítios, o Icomos Brasil, ainda afirmou que vai acionar instâncias internacionais para investigar o caso. "Eventuais responsabilizações internacionais poderão acontecer tanto para os que vandalizaram quanto para os responsáveis governamentais eventualmente envolvidos. Pode haver julgamento pelo Tribunal Penal Internacional, como aconteceu no caso de Timbuktu, no Mali", afirmam.

Veja quais obras foram alvo dos golpistas

Palácio do Planalto*

    "Bandeira do Brasil", de Jorge Eduardo

    "Mulatas", de Di Cavalcanti

    "O Flautista", de Bruno Giorgi

    "Galhos e Sombras", de Frans Krajcberg

    "Vênus Apocalíptica", da argentina Marta Minujín

    Relógio Balthazar Martinot

    Mesa-vitrine do designer Sérgio Rodrigues

    Retrato de José Bonifácio

    Pintura de 2003, de Nitma, foi retirada da parede

    Pintura de Marechal Rondon, feita em 1953 por W. L. Techmeier, foi retirada da parede

    "Evolução", escultura de Haroldo Barroso

*Segundo o governo, o corredor que dá acesso às salas dos ministérios no Planalto foi vandalizado, com muitos quadros rasurados ou quebrados, especialmente fotografias

Congresso Nacional

    "Araguaia", vitral de Marianne Peretti, de 1977

    Painel de Athos Bulcão, na Câmara dos Deputados

    "Painel Vermelho", de Athos Bulcão, no Museu do Senado

    Paisagem de Guido Mondin, na Câmara

    Pinturas dos ex-presidentes, no Museu do Senado

    "Bailarina", de Victor Brecheret

    Escultura "Maria, Maria", de Sônia Ebling

    Tapeçaria de Burle Marx

    Quadro que data de 1890, no Senado

    Mesa do Palácio Monroe

    Tinteiro de bronze da época do Império, no Senado

STF

    Cadeira da presidente Rosa Weber, concebida pelo designer Jorge Zalszupin

    Escultura "A Justiça", de Alfredo Ceschiatti, de 1961, foi pichada

    Crucifixo

    Brasão do STF

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Para entender por que os golpistas têm medo de Lula 3, olhe para a Amazônia

Após o ataque terrorista de apoiadores de Bolsonaro em Brasília, SUMAÚMA analisa de que forma a atenção do novo governo à floresta e a outros biomas estimulou uma reação violenta e criminosa

JONATHAN WATTS, TALITA BEDINELLI, 10 janeiro2023, Sumaúma

Olhar com atenção os planos ambiciosos do novo governo para proteger a floresta amazônica e outros biomas, como o Pantanal e o Cerrado, é essencial para entender o caos coreografado que eclodiu em 8 de janeiro em Brasília. Há múltiplas causas, mas a nova abordagem da crise climática é particularmente simbólica. Uma vez compreendida a importância histórica dessas propostas, fica mais fácil identificar por que há poderosos interessados em manter seus privilégios e que se sentem tão ameaçados a ponto de instigar a invasão violenta e a destruição dos prédios símbolos dos três poderes: o Palácio do Planalto, o Congresso e a Suprema Corte.

Por que os planos de Lula para a Amazônia enfureceram os aliados da destruição?

O novo presidente e sua nova ministra do Meio Ambiente e Mudança do Clima, Marina Silva, prometeram desmatamento zero, fim das invasões de todos os biomas brasileiros, e maior participação dos povos indígenas nas decisões nacionais. Essas são mudanças em uma escala historicamente épica. Desde a chegada dos primeiros invasores europeus, há 500 anos, a economia do que viria a ser chamado de Brasil foi centrada em destruir a natureza  e  subjugar os habitantes originários.

Lula deu esse passo em resposta à maior ameaça à segurança nacional e global representada pelo colapso climático. Cientistas alertam que mais desmatamento pode levar a Amazônia a um ponto sem retorno, com implicações catastróficas para a agricultura brasileira, padrões climáticos regionais e a estabilidade climática. Os planos do novo governo devem permitir que o Brasil obtenha fundos internacionais, abra mercados estrangeiros para produtos brasileiros e reivindique uma posição de liderança em assuntos internacionais. Mas, como toda grande mudança, alguns setores da sociedade brasileira se sentem ameaçados.

Entre eles está uma elite privilegiada, majoritariamente branca, que lucrou com o modelo histórico de exploração e sente que isso faz parte de sua identidade. Isso também inclui os envolvidos em grilagem de terras, garimpo ilegal e extração insustentável de madeira cujas atividades são com frequência ilegais, mas muito afinada com a antiga e pioneira atitude de uma nação imbuída do espírito bandeirante. Dos 7 estados da região Norte, onde se concentra a Amazônia brasileira, Bolsonaro venceu em 4  (Amapá, Acre, Roraima e Rondônia), e nos 3 últimos garantiu esmagadores 70% ou mais dos votos. Nos 3 estados do norte que Lula ganhou (Amazonas, Pará e Tocantins), ele não ultrapassou 55% dos votos.

Quão forte é a conexão entre os golpistas e os extrativistas na Amazônia e em outros biomas?

É muito cedo para dizer. Muitos grupos diferentes de todo o país provavelmente estão envolvidos por muitas razões diferentes. Logo após o ataque ao Congresso, o presidente Lula sugeriu que garimpeiros e madeireiros ilegais da Amazônia estavam envolvidos nos atos de terrorismo na Praça dos Três Poderes. É razoável supor que o presidente tenha informações do sistema de inteligência para justificar tal afirmação. Se assim for, não seria o primeiro ato de terrorismo de pessoas ligadas à destruição da floresta tropical. O terrorista que tentou explodir uma bomba no aeroporto de Brasília em dezembro é um empresário paraense, George Washington de Oliveira Sousa, que trabalha no setor de combustíveis e transportes em cidades do arco do desmatamento.

É importante entender o que a Amazônia e outras áreas de biodiversidade, assim como a independência indígena, representam no imaginário dos terroristas de extrema-direita. Proteger a floresta e outros biomas vai contra seus valores, já que enxergam a natureza como uma fonte de mercadorias geradoras de lucro. Resta saber o papel das forças de segurança nos ataques à democracia. É evidente que a Polícia Militar foi no mínimo negligente na resposta ao ataque, podendo mesmo ter sido conivente. Alguns comentaristas especulam que elementos do Exército posteriormente podem tentar uma intervenção — como aconteceu na Bolívia recentemente — sob a alegação de que precisam impedir mais caos. Os próximos dias e a próxima semana provarão quão real é essa ameaça. Mas está claro que os militares tiveram um papel de destaque no governo de Bolsonaro,  ele mesmo um ex-capitão do exército que chegou a planejar um ataque terrorista para conseguir melhores salários para ele e os colegas. O ex-presidente, agora, pelo menos temporariamente fora do alcance da justiça brasileira porque está na Flórida, era um apoiador entusiástico da ditadura militar-empresarial do Brasil (1964-85)  e dedicou energia considerável para abrir a Amazônia à exploração feita por grupos empresariais simpatizantes.

O que Lula fez pelos povos indígenas e por que isso incomoda algumas pessoas?

O movimento mais progressista do novo governo é a criação de um Ministério dos Povos Indígenas, comandado por Sonia Guajajara, uma das principais líderes dos povos originários no Brasil. Isso dá mais poder e uma plataforma maior aos indígenas do que em qualquer outro momento. O novo ministério abrigará o principal órgão indigenista brasileiro, a Funai, que foi sensível e sensatamente rebatizada para Fundação Nacional dos Povos Indígenas, em vez de Fundação Nacional do Índio. A mudança era um pedido antigo das lideranças indígenas, já que o termo “índio” é considerado pejorativo e genérico, não representativo da diversidade de povos existentes.

A Funai terá sua primeira líder indígena, a respeitada advogada e ex-deputada Joenia Wapichana. Sua presença é uma guinada em relação a seu antecessor, um delegado de polícia branco ligado ao agronegócio. Ao subir a rampa do Planalto acompanhado de Raoni Metuktire, o cacique Raoni, a maior referência indígena no Brasil, Lula deu ao planeta uma imagem eloquente de mudança. Raoni denunciou ao mundo a tragédia do governo Bolsonaro e acabou atacado pelo ex-presidente brasileiro e seus seguidores.

“[Os povos indígenas] não são obstáculos ao desenvolvimento – são guardiões de nossos rios e florestas, e parte fundamental da nossa grandeza enquanto nação”, disse o novo presidente em seu primeiro discurso ao público. Anteriormente, ele havia insinuado ao Congresso que seu governo ampliaria as terras indígenas: “Cada terra demarcada é uma nova área de proteção ambiental. A estes brasileiros e brasileiras devemos respeito e com eles temos uma dívida histórica. Vamos revogar todas as injustiças cometidas contra os povos indígenas.”

Todos esses movimentos representam uma ameaça para aqueles que acreditam que os capitalistas brancos e cristãos têm o direito e o dever de tomar terras de pessoas de cor de pele diferente com valores culturais diferentes e mais focados em seu modo de vida do que em sua renda e expansão de seu território. Bolsonaro se recusou a demarcar qualquer terra indígena e incentivou invasões de garimpeiros em territórios já protegidos.

Isso está ligado à crise climática?

Sim. Muitas das tensões agora em erupção no Brasil e anteriormente nos Estados Unidos estão relacionadas ao estresse climático nos velhos sistemas políticos e econômicos do capitalismo industrial. Bolsonaro e Donald Trump representam o antigo regime, que quer continuar com a velha forma de fazer negócios independentemente do impacto no clima, no meio ambiente, nas outras espécies e nas pessoas. Lula representa aqueles na base que correm maior risco de roubo e contaminação de terras férteis, água limpa e ar puro, junto com cientistas e uma elite internacional educada que percebe que o velho modelo está falido. Lula mencionou a necessidade de “combater as mudanças climáticas” em seus discursos de posse e disse que se envolveria mais com a comunidade internacional.

Dentro do governo, os rótulos também mudaram. O Ministério do Meio Ambiente foi renomeado como Ministério do Meio Ambiente e Mudanças Climáticas. No entanto, não há um novo superministério que coordenará a política climática em todos os departamentos do governo, como chegou a ser discutido. A ministra Marina Silva afirmou, porém, em entrevista ao jornal Valor Econômico, que a questão climática será transversal ao governo e haverá estruturas específicas sobre o tema em ministérios como os da Fazenda e da Justiça. Será necessário observar de perto se essa transversalidade, fundamental no momento em que há pouco tempo para evitar o pior, acontecerá na prática cotidiana do poder.

A principal contribuição do Brasil aos esforços internacionais para estabilizar o clima será deter o desmatamento. Se isso for feito, já representará um grande sucesso. O avanço no reflorestamento seria uma conquista adicional. Mas há preocupações de que Lula também esteja pressionando por uma maior exploração das reservas de petróleo e gás, e há incerteza sobre sua posição em grandes projetos de infraestrutura, como barragens para hidrelétricas e novas estradas, que são uma ameaça à natureza e ao clima. Lula anunciou em seu discurso de posse a volta do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), que em governos anteriores do PT foi responsável, por exemplo, pela volta de grandes hidrelétricas na Amazônia, como a desastrosa Belo Monte. Ainda não se sabe como será o PAC para Lula 3.

O agronegócio aceitará que não pode mais expandir fazendas e plantações derrubando florestas?

Esta é a pergunta crucial. Em seu discurso de posse no Congresso, Lula deixou uma linha clara: “O Brasil não precisa desmatar para expandir a fronteira agrícola, mas sim replantar 30 milhões (de hectares de) áreas desmatadas. Não há necessidade de invadir nossos biomas.” Ele estava dizendo ao parlamento, dominado pelo agronegócio predatório, que a floresta estaria fora dos planos de expansão e seria preciso voltar sua atenção para terras subutilizadas ou abandonadas, já desmatadas, se quisessem expandir as áreas de cultivo. Para o bem ou para o mal, essa foi uma sugestão de Katia Abreu, ex-chefe do lobby agropecuário, que se tornou aliada do partido de Lula e chegou a ser ministra da Agricultura de Dilma Rousseff.

Embora pareça promissor, o diabo estará nos detalhes. Como as “terras degradadas” serão classificadas? Como as proteções serão aplicadas? O governo estará disposto a fechar as brechas que até hoje permitiram que grileiros lavassem e legitimassem terras desmatadas ilegalmente? Essa política divide o agronegócio. Algumas grandes corporações podem apoiá-lo porque já possuem terras consideráveis e percebem que a instabilidade climática representa uma ameaça à sua produtividade. Mas aqueles que seguem lucrando com a grilagem de terras sentirão que estão perdendo.

Por que Lula representa uma ameaça para as dezenas de milhares de garimpeiros ilegais que invadiram terras indígenas na Amazônia?

Outro dos primeiros decretos de Lula foi revogar uma medida do governo anterior que incentivava o garimpo ilegal em terras indígenas e em áreas de proteção ambiental. Assessores dizem que nas próximas semanas e meses, as autoridades federais irão ocupar áreas de mineração ilegal, expulsar invasores e destruir equipamentos. A médio prazo, entretanto, a solução exige um trabalho de inteligência policial mais efetivo e transnacional, já que a porteira aberta para a mineração ilegal na Amazônia trouxe junto o crime organizado, que comanda o tráfico de drogas e de armas no país e viu no ouro uma nova chance de negócio. Qualquer esforço para reduzir a mineração vai provocar resistência em lugares como o estado de Roraima, onde a economia local depende dessa atividade.

Qual a importância de Lula dizer em seu discurso de posse que não “tolerará violência contra os ‘pequenos’”?

Esta é outra ameaça para aqueles que usaram a violência para garantir a terra e o poder na Amazônia e em outros biomas. O último relatório anual da Comissão Pastoral da Terra (CPT), com dados de 2021, mostra que os conflitos no campo se agravaram. Trinta e cinco pessoas foram mortas naquele ano, contra 20 no ano anterior. A impunidade para crimes ambientais e invasões de terras, o maior acesso a armas e as ações e falas do ex-presidente Bolsonaro multiplicaram a tensão na Amazônia.

Não tolerar a violência significa reconstruir e ampliar as estruturas de fiscalização, fortalecer o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) e o Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio) e garantir maior segurança aos povos que lutam pela floresta em pé. Eles podem ser pequenos em termos de poder político e econômico, mas Lula está reconhecendo sua estatura moral e a importância de sua luta.

O presidente também está restabelecendo o Estado de direito e a presença do Estado na Amazônia: “Incentivaremos, sim, a prosperidade na terra. Liberdade e oportunidade de criar, plantar e colher continuará sendo nosso objetivo. O que não podemos admitir é que seja uma terra sem lei. Não vamos tolerar a violência contra os pequenos, o desmatamento e a degradação do ambiente, que tanto mal já fizeram ao país”. Esta é uma ameaça muito óbvia para os interesses daqueles que lucraram com a impunidade da era Bolsonaro.

Como a expectativa de multas ambientais aumenta a tensão?

O novo governo está planejando enviar milhares de notificações de penalidades ambientais para aqueles que desmataram ilegalmente nos últimos anos. Um dos decretos assinados pelo presidente ao assumir o cargo restabeleceu a obrigatoriedade do Estado de destinar 50% da receita de multas ambientais ao Fundo Nacional do Meio Ambiente, que poderá aplicar o dinheiro em reflorestamento e outros projetos. Além de reduzir a fiscalização e, com isso, as multas aos infratores, Bolsonaro também perdoou punições dadas aos invasores da floresta, o que passou uma clara mensagem de impunidade e causou uma perda de mais de 18 bilhões de reais aos cofres públicos, segundo relatório da equipe de transição. A coleta desses fundos, sem dúvida, vai enfurecer aqueles que estão se esquivando de suas responsabilidades legais.

Que benefícios Lula pode oferecer para aliviar as tensões?

Novos fundos em benefício da Amazônia e seus povos serão essenciais e precisam chegar rapidamente. Outro decreto do dia da posse de Lula autorizou o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) a voltar a arrecadar doações para o Fundo Amazônia em ações de combate ao desmatamento e na promoção do uso sustentável da floresta. O fundo é financiado principalmente pelos governos da Noruega e da Alemanha, que já começaram a liberar recursos que haviam sido bloqueados durante os anos Bolsonaro.

A equipe de transição também pediu ao Congresso mais 536 milhões de reais para o Ministério do Meio Ambiente. São muitas as propostas de “títulos verdes” que canalizariam dezenas de bilhões de dólares de financiamento ao Brasil e financiaria a transição para uma economia menos destrutiva e que deveria ser usada para encontrar alternativas de emprego e renda para quem perde com uma nova política florestal.

Que benefícios Lula pode oferecer para aliviar as tensões?

O novo presidente deve convencer as pessoas de que há mais a ganhar avançando e enfrentando o desafio do colapso climático do que olhando para trás e fingindo que o problema não existe ou é responsabilidade de outra pessoa, como fez Bolsonaro. Em seu discurso de posse, Lula equilibrou a conservação do ecossistema e os direitos indígenas com crescimento econômico e igualdade social. Encontrar o equilíbrio é um desafio que todos os países enfrentarão nos próximos anos. O apoio internacional será crucial — tanto em termos de encorajamento quanto de dinheiro vivo. Muitas batalhas políticas estão pela frente.

NOTA: Este texto é a versão revista e ampliada de uma publicação anterior de perguntas e respostas sobre o novo governo, que foi atualizada à luz dos ataques ao Congresso do dia 8 de janeiro de 2023

Tradução: Luiza Mugnol-Ugarte

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Luditas 2023 

Adolescentes ‘luditas’: Eles abandonaram seus smartphones e fogem das redes sociais

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“Natividade com os santos Lourenço e Francisco de Assis”, ~ 1600-1610 – tela roubada do oratório de S. Lourenço, Palermo, ainda desaparecida.

Prisão de mafioso pode ajudar a encontrar obra de Caravaggio roubada nos anos 1960

Por Redação, 18/01/2023, O Estado

Prisão de mafioso pode ajudar a encontrar obra de Caravaggio roubada nos anos 1960

O ministro da Cultura da Itália, Gennaro Sangiuliano, confirmou que espera que a prisão do mafioso Matteo Messina Denaro, ocorrida na segunda-feira (16) após 30 anos de fuga, possa ajudar a solucionar o roubo de uma obra de Caravaggio estimada em 20 milhões de euros. Isso porque o criminoso era considerado um dos maiores “chefões” da história da Cosa Nostra.

O desaparecimento da pintura Natividade ocorreu entre a noite de 17 e 18 de outubro de 1969. A tela estava na igreja de San Lorenzo, em Palermo, e as investigações sempre apontaram o envolvimento da máfia em seu sumiço, com vários criminosos arrependidos afirmando que a Cosa Nostra tinha feito o roubo. “Estamos contando com isso. É um setor no qual estamos muito empenhados com o Núcleo de Tutela do Patrimônio dos Carabineiros, que é uma excelência italiana. Está claro que estamos empenhadíssimos nessa frente”, disse Sangiuliano.

Apesar dos depoimentos de vários membros da máfia, as buscas dos policiais italianos nunca conseguiram chegar ao paradeiro do quadro. Um dos que falaram do caso na década de 1980, chamado Francesco Marino Mannoia, chegou a dizer ao então juiz Giovanni Falcone - morto no início da década de 1990 pela própria Cosa Nostra - que o quadro tinha sido queimado e destruído.

A mesma teoria tinha outro “arrependido”, Gaspare Spatuzza, que disse ter ouvido que o quadro acabou num pasto de porcos e foi roída por ratos em um estábulo localizado na cidade de Santa Maria di Gesù.

Teria sido enterrada?

No entanto, os carabineiros ainda acreditam que a pintura possa ter sobrevivido e conseguiram reconstruir os passos dela entre os anos de 1969 e 1981, quando, após três tentativas fracassadas de venda a colecionadores particulares, ela teria sido enterrada junto com cinco quilos de cocaína e milhões de dólares do narcotraficante Gerlando Alberti. No lugar desse enterro, indicado pelo ex-mafioso Vicenzo La Piana, a caixa de ferro onde tudo teria sido guardado não estava mais - a máfia chegou para retirá-la antes das forças de segurança.

Com isso, após mais de 50 anos de seu desaparecimento, o destino da pintura de Caravaggio continua a ser um mistério. Em 2018, também o Vaticano entrou na operação de procura. Um ano depois, um detetive holandês chamado Arthur Brand disse que recebeu informações de que a tela ainda estava na Sicília. Mas, até hoje, nada foi encontrado.

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Why Every Film Director Owes John Ford | Spielberg Kurosawa Fincher Tarantino Leone Scorcese Welles 

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ATORES DE FAROESTE QUE MORRERAM CEDO 

ATORES DE FAROESTE QUE AINDA VIVEM 

Como está hoje Lee Van Cleef

ATRIZES DE FILMES ANTIGOS QUE AINDA VIVEM

MORREU A ATRIZ ITALIANA GINA LOLLOBRIGIDA

ATORES DE FAROESTE QUE MORRERAM PARTE 2

ATORES DE FAROESTE QUE MORRERAM PARTE 3

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Registros de violência doméstica aumentam quase 26% em dias de futebol

A relação entre enfrentamento às violências contra meninas e mulheres e o esporte são demonstradas na pesquisa “Violência Contra Mulheres e o Futebol”, realizada pelo Instituto Avon e Fórum Brasileiro de Segurança Pública. Segundo o levantamento, lesão corporal e ameaça são as principais notificações nas delegacias de Salvador, Belo Horizonte, São Paulo, Rio de Janeiro e Porto Alegre em dias de partidas de futebol.


Já é hora de colocar Abel Ferreira em seu devido lugar.

Milly Lacombe, Colunista do UOL 29/01/2023

(...) A primeira é a de que o futebol tem que ter responsabilidade social. Quando vemos o líder do time fazer o que Abel faz a gente pode se autorizar a fazer o mesmo ou subir o tom. E a segunda, relacionada à primeira, é o triste entendimento de que, em dias de jogo, a violência doméstica aumenta no Brasil. Mulheres apanham mais, sofrem mais, morrem mais.


domingo, 29 de janeiro de 2023

O Tolstói dos zulus é Tolstói!

O Tolstói dos zulus
Não sei em que momento deixamos de ver o evidente: pessoas são pessoas, quaisquer que sejam os corpos

Por José Eduardo Agualusa O Globo, 28/01/2023

No passado dia 19, uma atriz brasileira, Keyla Brasil, invadiu aos gritos o palco de um dos mais conhecidos teatros de Lisboa, o São Luís, onde estava a ser representada a peça “Tudo sobre a minha mãe”. Keyla protestava contra a escolha de um homem cis para interpretar o papel de uma personagem transexual.

 
Atriz Keyla Brasil no palco do Teatro São Luiz, em Lisboa, quando interrompeu a peça 'Tudo sobre minha mãe' para protestar contra falta de representatividade travesti no espetáculo Reprodução/Instagram/Fado Bicha

O protesto de Keyla levou a companhia de teatro a repensar a sua opção, contratando uma atriz trans para o papel. Ao mesmo tempo, gerou um forte debate no meio artístico e na sociedade em geral.
Aqueles que se indignaram com o protesto de Keyla, quer à direita, quer à esquerda, argumentam que o teatro, como o cinema, é o lugar privilegiado da representação: atores vestem a pele de outras pessoas. Tal como um escritor, um ator, enquanto tal, é um ser múltiplo, capaz de dar corpo a todas as versões da espécie humana.

Os que estão do lado de Keyla lembram as dificuldades por que passam as pessoas trans, no seu dia a dia. Atores trans, em particular, raramente são chamados para desempenhar qualquer papel. Assim, é natural que se sintam indignados quando um homem cis fica com o papel de uma personagem trans. Há ainda quem insista na questão da representatividade, comparando a situação dos atores trans com a dos atores negros — a transfake seria equivalente, para a identidade de gênero, ao infame blackface.
“Tudo sobre a minha mãe” é uma peça do australiano Samuel Adamson, baseada no conhecido filme de Pedro Almodóvar. Keyla Brasil conseguiu, nos rápidos minutos da sua intervenção, tudo o que Samuel Adamson (e, antes dele, Pedro Almodóvar) pretendiam: chamar a atenção para o drama das pessoas trans, sacudindo conceitos e preconceitos. Por isso, merece aplausos. Já a forma como humilhou o ator que representava o papel da personagem trans apenas merece censura.

No último número da revista Time, Yuval Noah Harari assina um ensaio com o título “A perigosa busca pela identidade”. Para o historiador israelense a demanda identitária torna-se perigosa a partir do momento em que cria muros, encerrando as pessoas em pequenos nichos: “Pessoas são entidades incrivelmente complexas. Se nos focarmos apenas numa pequena parte da nossa identidade, nunca chegaremos a saber quem verdadeiramente somos.”
No mesmo ensaio, Harari recorda a resposta do jornalista afro-americano Ralph Wiley a uma velha questão racista:
“Quem é o Tolstói dos zulus?”
“O Tolstói dos zulus é Tolstói!”, respondeu Wiley.
Da mesma forma, o Mandela dos europeus é Nelson Mandela. O Confúcio dos latino-americanos é Confúcio. O Gandhi dos australianos é Gandhi. E assim por diante.

Não sei em que momento deixamos de ver o evidente: pessoas são pessoas, quaisquer que sejam os corpos que ocupam ou o lugar em que nasceram. Uma pessoa que não seja capaz de se reconhecer na Humanidade inteira não é, certamente, uma pessoa inteira.

Atores não deveriam estar nos palcos representando os grupos a que pertencem. Deveriam estar nos palcos representando personagens diversas, e fazendo-nos acreditar (e participar) nessas outras vidas.

 

Atriz trans brasileira invade palco de teatro, sofre ameaça e deixa Lisboa

Por Gian Amato

Keyla Brasil afirma que está "protegida nas montanhas" na sequência do episódio que ganhou repercussão em Portugal ao conseguir afastar um ator da peça.

Das ruas para as TVs, colunas e páginas dos principais jornais de Portugal. Em uma noite, e com apenas um ato de protesto, a atriz trans, professora, ativista e prostituta brasileira Keyla Brasil diz que pode ter iniciado uma revolução na cultura do país.
Editoriais escritos nos últimos dias pelos principais articulistas do país elevaram o tom da importância da manifestação da atriz brasileira, que diz ganhar a vida nas ruas de Lisboa porque garantiu não conseguir papel no teatro.

Há uma semana, Keyla subiu ao palco do Teatro São Luiz, em Lisboa. Ela parou o espetáculo e interpelou o ator cisgênero (pessoas que se identificam com o sexo de nascimento) André Patrício, a quem pediu para sair de cena.

Segundo a brasileira, ele se apropriou do papel e não deveria interpretar a personagem trans Lola na montagem de “Tudo sobre a minha mãe”, inspirada na obra do cineasta espanhol Pedro Almodóvar.

“Transfake! Desce do palco! Tenha respeito por este lugar (...) Sabem por que é que eu trabalho como prostituta como Agrado e Lola (personagens)? Porque não temos espaço para estarmos aqui neste palco. Neste lugar sagrado”, protestou Keyla, filmada pela plateia em um vídeo que viralizou e foi publicado no Instagram da dupla Fado Bicha, que apela ao boicote da montagem.

A peça continua. Patrício já foi substituído pela atriz trans portuguesa Maria João Vaz. Já Keyla saiu de Lisboa após sofrer ameaças e se protegeu em lugar seguro fora da capital, “nas montanhas”, como diz. Ontem, o Portugal Giro conversou com ambas.

Keyla descarta voltar ao Brasil e a Lisboa em um curto espaço de tempo. No momento, afirma que se esconde para se proteger das ameaças.
— Não digo onde estou, apenas nas montanhas. Pretendo voltar, sim, mas para um lugar seguro. Numa das ameaças que recebi, um português enviou um áudio dizendo que era inadmissível a nação portuguesa ser envergonhada por uma travesti brasileira. Dizia que sabia onde eu trabalhava, em um parque de Lisboa. E que iria lá me matar ou me mandar de cadeira de rodas de volta ao Brasil. Acontece todos os dias — disse Keyla.


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 https://www.instagram.com/reel/Cno9wGRJ9yo/?utm_source=ig_web_button_share_sheet
fadobicha


Fizemos uma ação direta ontem no Teatro Municipal S. Luiz, durante a apresentação da peça "Tudo sobre a minha mãe", assim que o ator André Patrício entra, em transfake.
O rosto e o corpo visíveis desta ação direta foi o da Keyla Brasil @keyla.brasil2, atriz e performer travesti brasileira. Houve mais ativistas trans na plateia, para defenderam a Keyla, caso fosse necessário, e no balcão, a pendurar cartazes com mensagens.

O transfake é transfóbico!
Nada sobre pessoas trans sem pessoas trans! ⚔️❤️

Keyla leoa, deusa e monstra, da tua boca ontem saíram os gritos de milhares de nós, aprisionados nas gargantas cavernosas do tempo e da terra.
Sorvemos ar puro, corpo inteiro e sangue!
Chorámos e bebemos.
Obrigada. Não nos largaremos.
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Tendo recebido diversos ataques xenófobos, ela informou que possui autorização de residência graças à ajuda de uma ONG. Mas afirma não reconhecer o nome no documento.

— Eu, enquanto mulher travesti, não existo nos documentos nem para a sociedade. No Brasil, eu já estaria morta. Eu só quero me manter viva — disse.
A atriz deixou o Brasil há quatro anos após ser ameaçada de morte. Portugal foi escolhido para tentar trabalhar com teatro. Mas as barreiras se impuseram sem misericórdia, diz ela:

— Eu trabalho com o corpo, que é minha empresa. E ele tem que ser rentável nos mundos do espetáculo ou da prostituição. Então, meu corpo precisa me manter, mas gostaria que ele desse prazer apenas em cima do palco, interpretando.

Keyla nasceu em Belém há 35 anos e é formada em teatro pela Universidade Federal do Pará. Ela explicou ao blog que tentou entrar em contato com a produção da peça, mas não teve resposta. E decidiu protestar ao vivo.

— Tentei conversar, mas não ouviram, negaram. Mas a minha presença, com dedo na cara, não puderam negar. É algo extremo. Pode ter sido, sim, um início de revolução, no sentido que é uma reflexão social, porque as pessoas têm que entender que lugares de privilégio precisam ser compartilhados com outros corpos. E não só no teatro, mas no banco, nas empresas, nas outras profissões em geral — disse Keyla.
A brasileira defende o boicote à peça.

— O teatro em geral deve ser boicotado, porque está morto e feito por gente morta, zumbis. Teatro é o batom vermelho que pinta a boca da meretriz, a fome na barriga do aflito. Teatro é revolução — disse Keyla.

Maria João Vaz foi um rosto conhecido em Portugal como um personagem publicitário nos anos 1990. Entre trabalhos e desemprego, fez um pouco de tudo e é exemplo da falta de espaço no país para artistas trans. Curioso é que fez teste para a peça há um ano, mas não ficou por classificar uma parte do texto transfóbico.

Vaz revelou sua imagem trans ao país em 2020, mas não conseguia nada constante nas artes. Diz que atraía curiosidade apenas pela mudança. Então, foi motoboy, vigilante de museu e atendente em uma cadeia de fast food. Voltou aos palcos para três noites da peça em Lisboa e outras três no Porto graças ao protesto de Keyla.

— Não subscrevo a forma do protesto, porque sou pacífica, mas concordo com a ideia. Não tenho nada contra ela, mas não precisava usar frases violentas e arrogantes aos gritos. O que a plateia viu foi realidade e ficção, algo histórico. Ela diz que está sendo perseguida, mas eu também recebi ameaças — disse Vaz.
Apesar das ameaças que diz ter recebido de quem foi contra ela ter aceitado o papel, ela explicou por que aceitou:

— Porque o protesto era justamente para dar visibilidade. E não trouxe visibilidade à causa?

Luta de classes e luta racial em Florestan Fernandes

Florestan Fernandes: 100 anos de um pensador brasileiro / Jaime Rodrigues, Edilene Toledo (orgs.). – São Paulo : Fundação Perseu Abramo, 2020.

CAPÍTULO 1

Por que ler um clássico? Luta de classes e luta racial em Florestan Fernandes

FÁBIO DANTAS ROCHA [1]

Aí se acha o busílis do problema. As classes burguesas são destituídas de cultura cívica e só absorvem as mudanças que respondem às suas situações e interesses de classes. Ainda estão no estágio de praticar a acumulação originária, combinando-a de várias maneiras com a acumulação concentrada e acelerada do capital. Elas vivem sob o capitalismo monopolista da era atual, sob o guante da comunidade internacional de negócios. Precisam do Estado para interpor um biombo entre elas e a dominação externa, um guarda-chuva protetor, e não sabem como resolver seus dilemas econômicos, sociais e políticos sem a privatização do público, a transferência permanente de riqueza da nação para o setor privado, e sem a capacidade repressiva do Poder Público. As desigualdades econômicas, sociais, culturais e políticas extremas – em termos de classe, de raça e de região – convertem o desenvolvimento desigual em um vulcão prestes a fomentar explosões sociais em qualquer momento [2]

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1. Graduado e mestre em História pela Unifesp. Doutorando em História Social na USP.

2. FERNANDES, Florestan. [1987]. “Opção pelo parlamentarismo”. In: Florestan Fernandes na constituinte: leituras para a reforma política. São Paulo: Ed. Fundação Perseu Abramo/Expressão Popular, 2014, p. 173.

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Para Norberto Bobbio, os clássicos são aqueles que, além de terem a perspicácia de interpretar seu próprio tempo, lançam ao futuro novas proposições, diferentes enunciados e antecipam problemas [3].  A resposta à pergunta que intitula o artigo é um bom ponto de partida para a celebração do centenário de nascimento do grande sociólogo Florestan Fernandes. Sua complexa compreensão do Brasil reverbera ainda hoje, ao mesmo tempo em que sussurra problemas, perguntas, posições teóricas e políticas a trabalhos dos mais diversos campos nas Ciências Humanas brasileiras.

O que torna sua obra um clássico não são necessariamente as peculiaridades e excepcionalidades. Walter Benjamin já disse que a obra de arte é sua relação contínua e intrincada entre passado e futuro. A origem de um clássico, portanto, é sua história. Isto é, suas possibilidades de restauração, de reprodução e, por sua relação com o futuro, as reinterpretações do que guarda de inacabado e incompleto [4]. Ora, a grandeza de Florestan está na química fina entre sua excelência intelectual, sua compreensão militante do mundo e sua valentia acadêmica e política. Com isso em mente, este texto se concentra em algumas de suas obras sobre o tema das relações raciais. O objetivo é demonstrar a historicidade de seus problemas, de suas parcialidades e imprecisões.

Mas clássicos são como pessoas sábias, que nunca têm tempo suficiente para dizer tudo o que enxergam. Por isso nos provocam tanto, e é essa a razão do retorno que faço ao seu livro, em coautoria com Roger Bastide, Brancos e Negros em São Paulo [1955], ao Projeto de Estudo [1951] que deu origem ao livro de Bastide e Fernandes, aos dois volumes d’A integração do negro na sociedade de classes [1964], à obra Revolução Burguesa no Brasil [1975], ao Sociedade de classes e subdesenvolvimento [1968] e, por fim, ao Significado do protesto negro [1989].

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3. BOBBIO, Norberto. Teoria geral da política: a filosofia política e a lição dos clássicos. Rio de Janeiro: Campus, 2000.

4. BENJAMIN, Walter. A origem do drama barroco alemão. São Paulo: Brasiliense, 1984, p. 68.

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Ainda que em alguns desses títulos o tema central não seja o das relações raciais, pode-se, a partir desse conjunto, trilhar os caminhos teóricos e metodológicos de Florestan e, assim, entender como as concepções de raça, a sociedade de classes e o capitalismo brasileiro fecham um circuito de relações que legitimam a exclusão de homens e mulheres negras dos direitos básicos de cidadania.

Avalio que essas obras, lidas com os olhos do presente, guardam sérias falhas interpretativas. São legítimas, portanto, as críticas que pairam sobre o trabalho de Florestan Fernandes. Todavia, apesar das fragilidades apontadas por vários autores, esses textos deixam claro que os leitores de hoje não podem ser indiferentes às suas novidades, ao que há de inesperado em suas páginas e àquilo que o define como produção de mundo em perspectiva [5].

Crítico intrépido do conceito de democracia racial, o sociólogo construiu sua obra a partir da crítica às estruturas econômicas, sociais, políticas e culturais da sociedade brasileira. Como bem definiu Octavio Ianni, a interpretação de Fernandes sobre o Brasil aborda sua origem estrutural no escambo, no escravismo, no colonialismo e no imperialismo, e reflete sobre os efeitos econômicos da urbanização e da industrialização. A preocupação analítica refere-se ao processo de superação da sociedade de castas e à posterior formação de uma sociedade de classes [6]. Mas isso não é tudo: a obra revela um país em meio às lutas entre sentidos de mundo disputados por indígenas, colonizadores, africanos escravizados, negros brasileiros e imigrantes europeus inseridos em uma sociedade competitiva e de classes. De modo que, ao fazer a crítica radical ao mito da democracia racial, as inquietações teóricas de Fernandes têm a finalidade de dar respostas práticas para a organização da luta por uma sociedade de fato democrática e justa, contexto no qual classe e raça aparecem como categorias sociais complementares. Com isso em mente, passemos a analisar a relação entre História e Sociologia em Florestan Fernandes, conjecturando algumas das críticas que o sociólogo recebeu ao longo da década de 1980 para que, enfim, possamos debater sobre como as categorias de raça e classe estão intimamente ligadas, na obra de Florestan, à luta de classes.

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5. CALVINO, Ítalo. Por que ler os clássicos. São Paulo: Companhia das Letras, 1993, p. 11-13.

6. IANNI, Octavio. “A Sociologia de Florestan Fernandes”. Estudos Avançados, v. 10, n. 26, 1996, p. 25-33

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Dependência e crise: a relação entre a Historiografia e a Sociologia Histórica na obra de Florestan Fernandes

Ao analisar, em minha dissertação de mestrado, a relação entre modos de morar e de trabalhar da população negra de São Paulo e a de imigrantes entre os anos de 1887 e 1930, fui me dando conta de que, no discurso legal, administrativo e penal, a capital do estado de São Paulo nutriu esforços para forjar uma identidade do paulista: ele deveria ser um insigne trabalhador e ideologicamente informado por uma identidade branca. Esse imaginário deu base a uma série de formulações sobre a modernidade paulistana que teimou em excluir todas e todos aqueles que não estavam inseridos nesse paradigma legal e racial [7].

Aos poucos, lendo uma série de documentos de época, pude construir um panorama racial do mundo do trabalho na cidade. Nos quarenta anos da Primeira República, as vagas de empregos fabris e as de balconistas da cidade raramente eram preenchidas por mulheres negras ou homens negros. Na ausência de uma legislação que impedisse a entrada dessas pessoas em tais postos de trabalho, o racismo presente nas relações interpessoais foi a explicação que encontrei para a exclusão [8].

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7. ROCHA, Fábio Dantas. Saindo das sombras: classe e raça na São Paulo pós-abolição (1887-1930). 2019. Dissertação de Mestrado. (Programa de Pós-Graduação em História). Escola de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade Federal de São Paulo, Guarulhos, 2019.

8. Ibidem.

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Essa conclusão não é nova. Buscando entender as desigualdades raciais, Roger Bastide e Florestan Fernandes, durante a primeira metade dos anos 1950, orientaram seus alunos a entrevistar e analisar as falas de pessoas negras e brancas – naturais do Brasil, estrangeiras ou descendentes de imigrantes – que compunham diferentes classes sociais na cidade de São Paulo. Segundo os cientistas sociais, essas entrevistas foram necessárias para que se pudesse esquadrinhar as características raciais dos setores industrial e comercial da capital e, assim, perceberem a “existência de barreiras profissionais, dos estereótipos da classe patronal” e “das ideologias dos brancos em suas relações com gente de cor” [9].

Nesse processo, preocupados com a formação, as manifestações e os efeitos do racismo na sociedade paulistana do pós-Abolição, eles entenderam os brasileiros negros e os imigrantes europeus como produtos de sociedades distintas. Os primeiros guardariam as “contradições entre os mores econômicos, religiosos e jurídicos da sociedade de casta” [10]  – heranças da escravidão que, acumuladas pelo Império, legaram à República uma série de dificuldades de superação da organização estamental da sociedade brasileira quando do golpe militar de 188911. Os segundos trariam de suas terras de origem o espírito empreendedor capitalista: supostamente, as experiências de organização de suas vidas econômicas advinham de seus locais de origem, economicamente mais desenvolvidos.

Para Florestan Fernandes, existiu uma nítida superioridade do imigrante europeu em relação ao negro brasileiro. A princípio, em termos psíquicos, porque os primeiros não haviam sido exauridos pela experiência da escravidão; em seguida, em termos culturais, já que eram familiarizados com práticas inerentes às sociedades competitivas.

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9. BASTIDE, Roger e FERNANDES, Florestan. [1955]. Brancos e negros em São Paulo: ensaio sociológico sobre aspectos da formação, manifestações atuais e efeitos do preconceito de cor na sociedade paulistana. 4ª ed. São Paulo: Global, 2008, p. 23.

10. FERNANDES, Florestan. [1964]. A integração do negro na sociedade de classes. v.1. O legado da “raça branca”. São Paulo: Globo/Edição do Kindle, 2013. Locais do Kindle 4453-4454.

11. Sobre a questão das permanências e rupturas entre a chamada transição da sociedade estamental para a de classes, ver FERNANDES, Florestan. [1974]. A revolução burguesa no Brasil: ensaio de interpretação sociológica. 2ª ed. Rio de Janeiro: Zahar, 1976.

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Para Florestan, “a desorganização da vida do negro” durante a Primeira República prendeu-se, “diretamente, à dupla impossibilidade – de abandonar, subitamente, os traços culturais herdados da escravidão; e de contrair, prontamente, os padrões de comportamento valorizados” pelos “homens livres e poderosos”. A partir dessa premissa, o sociólogo lançou duas questões. A primeira era “saber se, na verdade, a cidade repeliu o ‘negro’ como tal”; a segunda indagava qual a “natureza das tendências sociodinâmicas, imanentes à interação do ‘negro’ com as forças psicossociais e socioculturais do ambiente” [12]? As respostas para essas perguntas ressoaram longamente, entre fins de 1950 até pelo menos o início dos anos 1980. Fernandes entendia o preconceito racial como parte de um arcabouço cultural arcaico – herança dos tempos da colônia [13] – e anacrônico à época de instauração da ordem social competitiva. O sentido da exclusão do negro “não é propriamente ‘racial’ nem ‘antirracial’”: “o isolamento econômico, social e cultural do ‘negro’, com suas indiscutíveis consequências funestas, foi um ‘produto natural’ de sua incapacidade relativa de sentir, pensar e agir socialmente como homem livre” [14].

Vê-se que, para o autor, a oposição entre o imigrante europeu e o negro brasileiro era fruto de uma superioridade cultural e, portanto, da capacidade de adaptação do primeiro à emergente sociedade de classes. Esse tipo de interpretação se explica, ao menos em parte, pela escolha metodológica de Fernandes.

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12. FERNANDES, A integração do negro na sociedade de classes. v.1. op. cit. Locais do Kindle 1602-1611.

13. O debate entre Carlos Hasenbalg e Florestan Fernandes sobre a persistência do preconceito e da discriminação racial no Brasil pós-Abolição pode ser acompanhado em HASENBALG, Carlos. Discriminação e desigualdades raciais no Brasil. 2ª ed. Belo Horizonte/Rio de Janeiro: Editora UFMG/ IUPERJ, 2005, p. 79-84. Ver especialmente o terceiro capítulo de FERNANDES, F. A integração do negro na sociedade de classes. v. 1. op. cit.

14. FERNANDES, A integração do negro na sociedade de classes, v. 1. op. cit. Locais do Kindle 1611.

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Em O preconceito racial em São Paulo [15] , Florestan Fernandes justifica a utilização de aspectos informativos que possibilitassem a identificação das características do processo de transição “através do qual os pretos passaram do status de ‘escravos’ para o de ‘cidadãos’”. [16] A fim de compreender as consequências sociais e jurídicas da Abolição, do advento da sociedade de classes e a “lenta ascensão econômico-profissional e social dos negros, que se vem realizando a par do começo do século [XX]”, o sociólogo julgou necessária a utilização de histórias de vida de pessoas que viveram os anos da escravidão e os primeiros anos da República. Além disso, fontes documentais tais como memórias, relatos de viajantes, imprensa (inclusive a escrita por negros) e bibliografia de “interpretação histórica” [17] foram consideradas como fundamentais para o “estudo dos fatores sociais que modificaram as condições de ajustamento inter-racial entre brancos e pretos, do período da escravidão aos nossos dias” [18].

Essa escolha metodológica é característica do tipo de Sociologia que Florestan Fernandes se empenhou em construir. Primeiramente porque, interessado em não desvincular “a Sociologia da pressão inexorável dos desafios que encadeiam presente e futuro”19 , não poderia ignorar que a experiência de ex-escravos e ex-senhores fosse fundamental para a construção “do conhecimento sociológico” [20]. Em seguida, empenhado em relacionar Sociologia e História, quis compor uma interpretação de Brasil que partisse da análise dos “processos de longa duração” – atributo lógico, segundo ele, de uma “Sociologia diferencial (ou histórica)” [21]

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15. Título do projeto de estudo elaborado e redigido por Florestan Fernandes, lido e discutido por Roger Bastide, que deu origem à pesquisa e ao livro Brancos e negros em São Paulo. Ver, em especial, as p. 265-291 da obra mencionada.

16. BASTIDE & FERNANDES, Brancos e negros em São Paulo, op. cit., p. 282.

17. Loc. cit.

18. Loc. cit.

19. FERNANDES, A revolução burguesa no Brasil, op. cit., p. 10.

20. BASTIDE & FERNANDES, Brancos e negros em São Paulo, op. cit., p. 282.

21. FERNANDES, A revolução burguesa no Brasil, op. cit., p. 9.

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Ao longo de sua vida, Fernandes defendeu a importância de um projeto sociológico que descrevesse e criticasse aquilo que não era ideal [22] para os que vivem ou viveram uma sociedade existente, concreta e, portanto, histórica. [23] No entanto, ao valer-se dos relatos de vida, de fontes oficiais, memórias e da historiografia de sua época, Fernandes não fugiu do que pode ser chamado de “paradigma da ausência” [24]. Funcionando como modelo explicativo desde fins do século XIX, a ideia de que “o Brasil é um país sem povo”, originalmente formulada por Louis Couty [25], serviu como ponto de partida para uma série de interpretações sobre a história do país. Enquanto autores como Nina Rodrigues e Gilberto Freyre enxergaram na escravidão a justificativa para a hierarquização das raças, outros encararam-na como uma chaga destruidora da capacidade de organização social e política dos escravizados [26]. Embora antagônicas, essas duas leituras sobre o país tinham em comum a “visão do escravo como um ser coisificado, incapaz de pensamentos e ações próprios: a escravidão teria aniquilado as pessoas e sua cultura, restando a fragmentação e o vazio produzidos por uma dominação inexorável” [27].

Pouco a pouco, com a vitória dos projetos imigrantistas, antes ainda da Abolição, a ideia de herança da escravidão serviu para propalar a superioridade cultural do imigrante europeu, tido como acostumado ao trabalho industrial, à competição capitalista e às novas formas de organização política [28]. Aqui, a noção de herança serviu para a compreensão de que a escravidão mutilou os ex-escravizados econômica e socialmente. Autores como Florestan Fernandes, Octavio Ianni e Emília Viotti da Costa contestaram a visão de uma escravidão brasileira benevolente e afirmaram que as características violentas da instituição teriam legado à suas vítimas falhas intelectuais e morais [29].

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22. Ideal aqui é utilizado como a ideia de algo categoricamente construído, como se existisse uma sociedade em forma pura. É uma referência ao conceito de tipo ideal formulado por Weber. Cf. WEBER, Max. Metodologia das Ciências Sociais, parte 2. São Paulo/Campinas: Cortez/Editora Unicamp, 1992.

23. FERNANDES, A revolução burguesa no Brasil, op. cit., p. 10.

24. Para a análise de como esse paradigma esteve presente desde autores como Joaquim Nabuco e José de Alencar, e, assim, perpetuou-se nas interpretações sobre as pessoas comuns na História do Brasil, ver CHALHOUB, Sidney & SILVA, Fernando Teixeira. “Sujeitos no imaginário acadêmico: escravos e trabalhadores na historiografia brasileira desde os anos 1980”. Cadernos AEL, v. 14, n. 26: 2009, p. 15-45.

25. COUTY, Louis. [1881]. A escravidão no Brasil., apud CHALHOUB & SILVA, “Sujeitos no imaginário acadêmico...”, op. cit., p. 15.

26. PRADO Jr., Caio. História econômica do Brasil. 41ª ed. São Paulo: Brasiliense, 1994; COSTA, Emília Viotti da. Da monarquia à República: momentos decisivos. 6ª ed. São Paulo: Ed. da Unesp, 1999; FURTADO, Celso. Formação econômica do Brasil. 27ª ed. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 2000.

27. CHALHOUB & SILVA, “Sujeitos no imaginário acadêmico...”, op. cit., p. 16.

28. Sobre os embates de projetos emancipacionistas, imigracionistas ou abolicionistas e o impacto que esses debates tiveram sobre a construção de um ideal de trabalhador, ver AZEVEDO, Célia Maria Marinho de. Onda negra, medo branco: o negro no imaginário das elites (século XIX). 3ª ed. São Paulo: Annablume, 2004.

29. Para uma discussão detalhada acerca das críticas às teses de Florestan Fernandes, ver ANDREWS, George Reid. Negros e brancos em São Paulo (1888-1988). Bauru: Edusc, 1998, p. 29-34 e 118-134.

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Chama a atenção a importância que Florestan Fernandes dá, em Brancos e Negros em São Paulo, à assertiva de Caio Prado Jr., segundo a qual, no Brasil, “o trabalho escravo nunca irá além do seu ponto de partida: o esforço físico constrangido; não educará o indivíduo, não o preparará para um plano de vida humana mais elevado” [30]. Preparando o terreno para uma pesquisa sociológica de campo, o sociólogo “se prolongou em uma pesquisa histórica do presente em esvanecimento, do passado recente e do passado remoto” [31], tomando como base as estruturas históricas apontadas pelo historiador paulista. Consequentemente, assume como princípio a oposição entre arcaico e moderno, ao tomar como certa a dicotomia puramente conceitual entre os regimes escravista e capitalista. Outras derivações surgiram desse princípio: atraso versus progresso; trabalho escravo versus trabalho livre; trabalhador escravo brasileiro versus trabalhador assalariado europeu. Todas essas postulações surgem como prova de que o negro, pelo menos nos anos iniciais da República, fora excluído da história brasileira do trabalho [32].

Apesar dessa análise enviesada sobre a irracionalidade comportamental do negro no pós-Abolição, o esforço de Florestan foi na direção de demonstrar que a conexão entre uma revolução burguesa incompleta, a desagregação do regime escravocrata e a expulsão do negro das relações de produção foi, na verdade, um complexo de exclusão racial, o que acabou por beneficiar os imigrantes e seus descendentes na população paulistana.

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30. PRADO JR. Formação do Brasil contemporâneo: colônia. Apud BASTIDE & FERNANDES, Brancos e negros em São Paulo, op. cit., p. 71.

31. FERNANDES, A revolução burguesa no Brasil, p. 10.

32. LARA, Silvia Hunold. “Escravidão, cidadania e história do trabalho no Brasil”. Projeto História, v. 16, 1998.

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 Concentrado em entender como se deu o processo de transformação social iniciado na Abolição, ele não se deu conta de que tanto suas fontes historiográficas e documentais quanto suas “fontes vivas” estavam informadas por um mesmo paradigma: o de que o negro (entendido como categoria analítica) não estava preparado para a vida em liberdade.

Inserido em uma sociedade capitalista onde, anacronicamente, “continuaram a imperar os modelos de comportamento, os ideais de vida e os hábitos de dominação patrimonialista, vigentes anteriormente na sociedade estamental e de castas” [33], a anomia social do negro comporia uma tela sobre a implementação forçosa de um liberalismo esdrúxulo e incompleto que, ao mesmo tempo em que não deu condições ao negro de “expurgar [sua] herança cultural perniciosa e se converter em homem livre” [34], não se consolidava como burguesa, liberal-democrática e urbana [35]. George Andrews foi preciso ao afirmar que o principal problema da pesquisa de Florestan foi entender que a população de cor paulistana não tinha capacitação técnica e/ou disciplina para o trabalho livre. Ora, para tal entendimento não existia evidência alguma, a não ser o juízo de valor imposto pelas fontes e bibliografia selecionadas pelo sociólogo. [36]

Um jovem leitor de Florestan Fernandes se espantará ao ler assertivas que discorram sobre um fictício “comportamento sistemático” da população negra que a levou para a “vadiagem” [37]. A visão acerca dos negros pobres da cidade de São Paulo que os identifica como “biscateiros, malandros, ou bêbados contumazes”, vindos de “famílias desintegradas” [38] à ordem social é muito próxima daquela veiculada pelas elites latifundiárias e urbanas no momento crítico do processo da Abolição e das tentativas de implementação da disciplina capitalista [39].

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33. FERNANDES, A integração do negro na sociedade de classes, v.1, op. cit. Locais do Kindle 811-815.

34. Ibidem. Locais do Kindle 1635.

35. Ibidem. Locais do Kindle 811-815.

36. Sobre a falta de evidências que comprovem a falta de capacidade técnica, moral e intelectual da população egressa do cativeiro para o trabalho livre na ordem capitalista, ver ANDREWS, Negros e brancos em São Paulo, op. cit., p. 119-134.

37. FERNANDES, A integração do negro na sociedade de classes, v.1, op. cit. Locais do Kindle 3139-3140.

38. Ibidem. Locais do Kindle 2465; 3711.

39. CHALHOUB, Sidney. Trabalho, lar e botequim: o cotidiano dos trabalhadores no Rio de Janeiro da belle époque. 3ª ed. Campinas: Ed. da Unicamp, 2012, p. 83.

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Apesar das críticas dos historiadores sociais serem inequívocas, o termo anomia tem uma origem metodológica em Florestan Fernandes que merece ser retomada. O conceito central em sua tese é o de “fato social”, formulado por Émile Durkheim. Segundo o sociólogo francês, os fatos sociais são conjuntos de valores, premissas e crenças que se definem por sua generalidade dentro da sociedade analisada. [40] Desse modo, Fernandes, ao tomar o preconceito racial como objeto de sua pesquisa, assume como diretriz metodológica a sua integração ao contexto social, já que “a origem de todo processo social de alguma importância deve ser procurada na constituição do meio social interno”. [41] Ao relacioná-lo ao meio social interno, ou seja, ao conectar o preconceito racial (como fato social) ao contexto ideológico, social e econômico da cidade de São Paulo, Fernandes entende que aquelas “condições de existência social anômicas” [42] eram heranças do cativeiro. Mas o conceito de anomia social em A integração do negro na sociedade de classes aparece, muitas vezes, de forma ambígua. Ora usado para taxar a falta de “suportes perceptivos e cognitivos” de pretos e pardos, ora para ressaltar a falta de “suporte social para as suas atividades econômicas ou para as suas aspirações de ascensão social” [43], a forma com que esse conceito foi manipulado pode deixar o leitor confuso. 

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40. DURKHEIM, Émile. As regras do método sociológico. Lisboa: Presença, 2004.

41. FERNANDES, Florestan & BASTIDE, Roger. “O preconceito racial em São Paulo (Projeto de estudo)”. In: FERNANDES & BASTIDE, Brancos e negros em São Paulo, op. cit., p. 268.

42. FERNANDES, A integração do negro na sociedade de classes, v. 1, op. cit. Locais do Kindle 3861.

43. Ibidem. Locais do Kindle 3966 e 1002, respectivamente.

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A confusão, na verdade, está no alicerce ideológico das fontes utilizadas e na visão geracional do próprio Florestan. De qualquer modo, vale apontar que, em sua avaliação, “a anomia não produziu, por si mesma, a miséria; nem se manteve por qualquer suposta ‘propensão do negro para viver na desordem’”; tampouco a miséria “engendrou, como antecedente causal, a anomia e, se concorreu de diversas maneiras para agravá-la e perpetuá-la, isso não se deu simplesmente porque ‘o negro gosta de não fazer nada’” [44]. Portanto, aqui e acolá, o autor vai deixando pistas de que foi a falta sistemática de boas oportunidades de emprego, educação, moradia e de acesso aos direitos básicos da cidadania que frustraram continuamente planos negros de “vida condigna” [45].

Quando Fernandes pensa em como os modos de vida na cidade de São Paulo influenciam as lutas pela sobrevivência de seus habitantes, ele admite a existência de uma política racista de branqueamento que, institucionalmente invisível, acabou por eliminar “negros e mulatos [...] das posições que ocupavam” no mundo anterior ao 13 de Maio. Isso fortaleceu a tendência de “confiná-lo [o negro] a tarefas” e moradias “mal retribuídas e degradantes” [46]. Influenciado pelo estereótipo do paulista empreendedor e adaptável ao mundo capitalista [47], Fernandes atribuiu a mobilidade de classe do europeu, entre outras coisas, ao espírito capitalista avançado. Mas sua argumentação deixa pontas soltas que podem nos servir de guia para alguns caminhos interpretativos sobre o período do pós-Abolição brasileiro.

Por um lado, ele argumenta que o “estrangeiro” estava mais preparado para os “serviços essenciais para a expansão urbana”.  Por outro, afirma que “imperavam as conveniências e as possibilidades, escolhidas segundo um senso de barganha que convertia qualquer decisão em ‘ato puramente econômico’”. 

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44. Ibidem. Locais do Kindle 3853.

45. Ibidem. Locais do Kindle 3861.

46. Ibidem. Locais do Kindle 490.

47. Para entender a relação entre raça e classe social e o seu impacto na vida de mulheres e homens negros na cidade de São Paulo, investiguei o processo de formação de uma identidade oficial do paulista como trabalhador branco e morigerado. Ver o capítulo 2 de ROCHA, Saindo das sombras, op. cit

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Ora, se as conveniências existentes nas relações capitalistas na metrópole eram convertidas ideologicamente em atos “puramente econômicos”, a análise pode seguir por um caminho interessante. “Desse ângulo, onde o ‘imigrante’ aparecesse, eliminava fatalmente o pretendente ‘negro’ ou ‘mulato’, pois se entendia que ele era o agente natural do trabalho livre” [48].

A leitura atual do texto de Fernandes é um pouco delirante. Um parágrafo parece contestar o anterior: ora o racismo surge como fator determinante para a exclusão do negro da sociedade de classes, ora afirma-se que isso se deu pela “irracionalidade do comportamento do negro e do mulato, como indivíduos ou coletivamente, no período final da desagregação da sociedade de castas” e no período de formação da cidade contemporânea. O certo é que, para o autor, tudo isso era um complexo de coisas. O peso espoliador da escravidão, “os infortúnios que enfrentaram nas peregrinações pelo campo, pelas cidades e para o litoral”, desabaram sobre todos quando descobriram “que a mudança de estado social não acarretava ‘a redenção da raça negra”. Ao mesmo tempo, “as preferências pelo imigrante, em particular a proteção (...) [das] correntes imigratórias e a assistência aos trabalhadores brancos transplantados suscitaram um travo de fel”, que amargurava visões sobre o futuro [49].

Entre as pontas soltas, há algo de essencial nos textos de Fernandes. A análise das relações intra e interclasses deve levar em conta as concepções de raça que nortearam aquelas transplantações ideologizadas sobre proteção e exclusão dos sujeitos na cidade. No limite, isso dá uma complexidade maior à ideia de formação do capitalismo que, por ser processo, guardou as contradições do mundo escravista, suas tradições e modos de fazer política junto a concepções de liberdade reorganizadas, conforme vivia-se a República [50].

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48. FERNANDES, A integração do negro na sociedade de classes, v.1, op. cit. Destaque no original. Locais do Kindle 504.

49. Ibidem. Locais do Kindle 541-543.

50. É essa análise que sugiro em ROCHA, Saindo das sombras, , op. cit., p. 135-137.

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Proletários negros e brancos, uni-vos: classe e raça em Florestan Fernandes

Minneapolis, Minnesota, Estados Unidos. Eram oito horasda noite do dia 25 de maio de 2020 quando um balconista do Cup Foods, um supermercado da cidade, supôs que George Floyd havia utilizado uma nota de dólar falsa para comprar seu maço de cigarros. Apesar de ser um cliente considerado “amigável e gentil” pela dona do estabelecimento, Floyd não era conhecido do jovem funcionário que, em ligação ao número do serviço de emergência dos EUA, disse ter pedido a Floyd que devolvesse o maço de cigarros, mas que o cliente se negou a fazer, pois já havia pago a mercadoria. A justificativa do empregado ao fazer a ligação foi a de que o cliente tinha ares de “bêbado” e que “não estava sob o controle de si mesmo”. Apenas oito minutos depois da chamada, dois policiais brancos chegaram ao local e se aproximaram do carro em que Floyd estava, junto a dois amigos. O primeiro policial, Thomas Lane, exigiu que Floyd levantasse as mãos, enquanto empunhava sua arma. Recebendo ordem de prisão por suposto uso de notas falsificadas, George Floyd, já detido, foi coagido a entrar no carro dos policiais. Segundo o relatório do caso, a vítima da violência  policial, dizendo que era claustrofóbica, caiu no chão. Nesse momento, o policial Derek Chauvin cometeu o assassinato que chocou os Estados Unidos e o mundo. O assassino ignorou as frases “por favor, por favor, por favor” e “não consigo respirar” [51] , ditas pela vítima, e sufocou Floyd.

Não foi a primeira vez que uma situação como essa aconteceu. Lembremo-nos do homicídio, também por sufocamento, de Michael Brown, na cidade de Ferguson, estado do Missouri, em 2014. O fenômeno não está restrito aos Estados Unidos: ações policiais que torturam e/ou matam pessoas negras são frequentes também no Brasil. Entre muitos, o assassinato de João Pedro Matos Pinto, de 14 anos, com um tiro na barriga após uma operação conjunta da Polícia Federal e da Polícia Civil no Complexo do Salgueiro, em São Gonçalo, estado do Rio de Janeiro, em 18 de maio de 2020, é mais um exemplo dessa racionalidade racializada das forças policiais nas Américas. Os critérios raciais que justificaram o uso da força policial e levaram a esses assassinatos motivaram, até o momento da escrita deste texto, muitos dias de protestos contínuos, nos Estados Unidos e no Brasil. Trata-se de manifestações populares que articulam as pautas antirracistas e antipoliciais por vincularem, a partir das perspectivas da população afro-americana, a violência policial e o racismo à desigualdade social existente nos EUA. Não é muito diferente no Brasil.

Há quem diga que esses tipos de manifestação pecam por não assumirem um caráter anticapitalista [52]. Não me parece o caso. Lá, ou cá – guardadas as diferenças geográficas, políticas, sociais, econômicas e culturais –, o sistema de relações capitalistas avança na sua forma mais cruel, a do neoliberalismo. Seja em sua etapa de produção, em seus processos de circulação de mercadorias ou de criação de demandas, o neoliberalismo, aumentando o nível de cooperação do trabalho e especializando mais e mais a concessão de crédito e o comércio, acirrou a diferença entre os cidadãos, principalmente entre as classes de renda mais baixa e, assim, dificultou a solidariedade entre eles. Essa fórmula interpretativa já é conhecida. 

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51. BBC NEWS BRASIL. “George Floyd: o que aconteceu antes da prisão e como foram seus últimos 30 minutos de vida”. Época negócios, 31 de maio de 2020. Visto em: <https://epocanegocios.globo.com/Mundo/noticia/2020/05/george-floyd--o-que-aconteceu-antes-da-prisao-e-como-foram-seus-ultimos-30-minutos-de-vida.html>. Acesso em: 02 de junho de 2020.

52. HARVEY, David. 17 contradições e o fim do capitalismo. São Paulo: Boitempo, 2016. Locais do Kindle: 5479.

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Ela está no primeiro volume d’O capital de Karl Marx: quanto maior a alienação do trabalho, mais “a capacidade de resistência dos trabalhadores diminui em consequência de sua dispersão” [53]. Ora, com a especialização cada vez maior no trabalho, e na era da falácia da customização da mercadoria, os trabalhadores tendem a não se identificar como classe, separando-se uns dos outros. Um dos fatos sociais mais evidentes dessa separação e diferenciação é o racismo ou o preconceito racial – para retornarmos ao repertório de Florestan Fernandes.

As vozes antirracistas em Ferguson ou em Minneapolis não evocam nitidamente o fim do capitalismo. Porém, parece óbvio que, ao denunciarem os mecanismos racializados das instituições estadunidenses e exigirem o fim do extermínio do povo negro, elas radicalizam a ação política, transmitindo a mensagem de que o racismo é um dos fundamentos do capitalismo. Ao fim e ao cabo, o que a crítica à violência do Estado racista nos EUA revela é a íntima relação entre raça e classe, e demonstra qual é o papel que a raça assume dentro da luta de classes.

Parto desse argumento, pois, como sabemos, as obras de Fernandes aqui selecionadas escancaram a importância da análise da formação e consolidação da sociedade de classes brasileira sob o prisma das relações raciais. Para ele, “na medida em que não estavam incorporados ou apenas se incorporavam parcialmente ao sistema de classes emergente”, os negros paulistanos viram-se em constante confronto com os brancos, nacionais ou estrangeiros. Valendo-se de depoimentos de brancos e de negros, além de textos de jornais, ele salienta que o racismo também contribui para que os brancos se efetivassem nos “papéis sociais que os convertiam – quisessem ou não – em ‘assalariados’ ou em ‘empresários’”. Já “os negros e os mulatos, ao contrário, desfrutavam dessa regalia somente quando se inseriam na teia das ocupações urbanas institucionalizadas – ou seja, só uma minoria da ‘população de cor’ estava em condições de enfrentar o desemprego como problema social”. Para o sociólogo, “ainda prevaleciam vários ajustamentos e critérios de avaliação incorporados à herança socio-cultural do passado rústico” [54].

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53. MARX, Karl. O capital: crítica da economia política. Livro I: o processo de produção do capital [1867] (trad. Rubens Enderle). São Paulo: Boitempo, 2013, p. 533-534.

54. FERNANDES, A integração do negro na sociedade de classes, v.1, op. cit. Locais do Kindle 2593-2599.

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O que seriam esses “critérios de avaliação incorporados à herança sociocultural do passado rústico” senão padrões sociais racializados de hierarquização entre brancos e negros? A pergunta, evidentemente, é retórica, mas vale acompanhar a resposta dada por Florestan: “no nível da integração e do funcionamento da ordem social competitiva, as coisas se passavam como se à ‘população de cor’ estivesse vedado o acesso à estrutura da sociedade de classes” [55].

Latente à crítica que Florestan Fernandes fez ao mito da democracia racial está, portanto, a íntima relação entre classes sociais e raça. Como a formação e o desenvolvimento das classes sociais se emaranharam à “desigualdade racial na desigualdade inerente à ordem social competitiva”, a noção de democracia racial é “um belo mito” ideológico, que serve para encobrir a realidade fundadora do sistema de classes no Brasil [56].

A pesquisa de Florestan, portanto, tem muito a nos informar sobre como as “determinações de raças se inseriram e afetaram as determinações de classes” no Brasil [57].E isso desde seu primeiro livro, Branco e negros em São Paulo. A crítica de que sua análise não levou em conta as transformações do racismo na cidade de São Paulo pós-Abolição parece um pouco exagerada quando se percebe que o importante para Bastide e Fernandes era entender as formas pelas quais as “atitudes preconceituosas e discriminatórias” se exprimiram e que funções sociais elas assumiram na formação e consolidação da sociedade de classe [58].

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55. Ibidem. Locais do Kindle 4177-4181.

56. FERNANDES, Florestan. O negro no mundo dos brancos. São Paulo: Global/Edição do Kindle, 2013. Locais do Kindle 1913.

57. Ibidem.

58. BASTIDE & FERNANDES, Brancos e negros em São Paulo, op. cit., p. 19.

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Desse modo, e devido à “herança [cultural] escravista”, o racismo aparece na obra de Florestan como mecanismo de preservação de lugares sociais, que produz efeitos na dominação política e econômica do branco sobre o negro [59]. Não que para eles a noção de raça assumiria o mesmo significado na sociedade de castas e na emergência da nova ordem competitiva. Ao contrário: legalmente, patrões, empregados e operários “não se distinguiriam como os senhores, os escravos e os libertos, mediante a combinação de posição social à cor da pele ou à ascendência racial”. No entanto, a adaptação de algumas “representações e estereótipos associados à cor e às diferenças raciais” da antiga estratificação racial à ordem social capitalista não só impediu que a população negra paulistana ocupasse posições sociais superiores às que acabaram por ocupar como, também, perpetuaram “a noção de que o negro é ‘inferior’ ao branco” [60].

Para Fernandes e Bastide, a industrialização, a urbanização de São Paulo, a vinda dos imigrantes e o surgimento das classes sociais, “deixando (...) subsistir subterraneamente, como num edifício em conserto, partes inteiras da antiga sociedade tradicional” [61], devem necessariamente compor uma análise da sociedade paulistana que vincule os conceitos de raça e classe.

Ao fazer isso, ambos se contrapunham à visão conciliatória de Donald Pierson, segundo a qual o Brasil seria uma sociedade multirracial de classes – diferente da situação dos Estados Unidos, onde as divisões raciais entre as classes eram evidentes. Lá, segundo Pierson, a ascensão de uma nova classe média negra não garantiu condições de igualdade entre brancos e negros, já que os segundos não foram aceitos pelos primeiros social e institucionalmente. Caso diverso teria ocorrido no Brasil: aqui, os negros, ao ascenderem de classe, seriam aceitos tal qual os brancos. Portanto, o que existiria no Brasil seria um preconceito de classe, não o racial [62].

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59. Ibidem, p. 118.

60. É importante frisar o que foi dito na parte anterior desse texto. A esse processo de exclusão, Florestan Fernandes explica a partir de um labiríntico argumento que, pari passu disserta os efeitos negativos da estratificação racial na vida da população negra à paulistana, alardeia uma falsa “incapacidade de ajustamento econômico dos negros”. Cf. BASTIDE & FERNANDES, Brancos e negros em São Paulo, op. cit., p. 140.

61. Ibidem, p. 154.

62. PIERSON, Donald. Brancos e pretos na Bahia: estudo de contato racial. Rio de Janeiro: Companhia Editora Nacional, 1945.

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Para confrontar essa afirmação, Bastide recorreu às entrevistas com negros e brancos em São Paulo:

Um negro de boa posição social quer entrar numa boate. O porteiro aborda-o: Por favor, entre pela porta de serviço. – Uma preta está à janela. Um vendedor ambulante passa: Vá dizer à patroa que tenho frutas bonitas. – Mas eu sou a patroa. – Não brinque, não tenho tempo a perder. Vá avisar a patroa [63].

Na lida cotidiana, a cor torna-se critério de distinção entre indivíduos e impõe lugares sociais subalternos aos negros. Portanto, o preconceito de cor identifica-se com o de classe. Na interpretação dos relatos colhidos pelo sociólogo francês, o “espanto admirativo” foi a regra, ao descreverem negros que ascenderam de classe. Mesmo quando respeitados, afirma Bastide, “o respeito é o segundo momento de uma dialética afetiva, que começa por rebaixar o negro e que corrige em seguida esse primeiro ponto de vista adotado” [64]. Em suma, a cor serve como símbolo dos lugares sociais ocupados pelos sujeitos.

A análise vai além. Se o preconceito racial se confunde com o de classe, o que torna possível generalizar raça como um fato social a impor determinações que afetam as relações de classes? Para responder à questão, Bastide ressalta a importância do exame do “preconceito de cor” dentro de uma mesma classe, “para ver em que momento a cor começa a ser um estigma racial e não apenas um símbolo de status social [65].

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63. BASTIDE & FERNANDES, Brancos e negros em São Paulo, op. cit., p. 166.

64. Ibidem, p. 166.

65. Ibidem, p. 167.

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Desse modo, o caráter heterogêneo do proletariado paulista explicaria a inexistência de uma consciência de classe que conseguisse dominar os conflitos étnicos existentes entre brancos e negros, nacionais e imigrantes europeus. A conclusão é que “a cor prevalece sobre a classe”. Ainda mais numa cidade em que, durante os primeiros anos republicanos, a “classe proletária” localizou-se socialmente “não no nível mais baixo da sociedade, mas num nível intermediário, acima da ‘plebe’, [...] constituída justamente pelos homens de cor, vagabundos, mulheres semiprostituídas, e por gente que só trabalha intermitentemente” [66].

Vimos que essa concepção de plebe e da população egressa do cativeiro sofria das imputações racistas e que fora contestada por diversos trabalhos historiográficos que, contra as acusações de vadiagem, de prostituição e de alcoolismo, comprovaram a existência de uma moral de trabalho e a permanência de laços familiares que contribuíram para a construção de diversos tipos de trajetórias de negras e negros antes e depois da Abolição. Longe de existirem em um estado de anomia social, a população de ex-escravizados soube tecer, manter e utilizar redes interpessoais que contribuíram para a construção de estratégias de vida em liberdade, inclusive estratégias políticas [67].

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66. Ibidem, p. 167-168.

67. ANDREWS, Negros e brancos em São Paulo; CHALHOUB, Trabalho, lar e botequim; COSTA, Carlos Eduardo C. De pé calçado: família, trabalho e migração na Baixada Fluminense, RJ (1888-1940). 2013. (Tese de Doutorado em História Social do Programa de Pós-Graduação em História Social), Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2013; DOMINGUES, Petrônio José. Uma história não contada: negro, racismo e branqueamento em São Paulo no pós-Abolição. São Paulo: Ed. Senac São Paulo, 2004; FRAGA, Walter. Encruzilhadas da liberdade: histórias de escravos e libertos na Bahia (1870-1910). 2ª ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2014; GOMES, Flávio dos Santos. Negros e política (1888-1937). Rio de Janeiro: Zahar, 2005; LARA, “Escravidão, cidadania e história do trabalho no Brasil”, op. cit.; MACHADO, Maria Helena P. T. O plano e o pânico: os movimentos sociais na década da Abolição. 2ª ed. São Paulo: Edusp, 2010; MACHADO, Maria Helena P. T. e CASTILHO, Celso !omas. Tornando-se livre: agentes históricos e lutas sociais no processo de Abolição. São Paulo: Edusp, 2015; MATTOS, Hebe. Das cores do silêncio: os significados da liberdade no Sudeste escravista (Brasil, século XIX). 3ª ed. Campinas: Ed. da Unicamp, 2013.

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Ao que parece, a principal tese de Florestan Fernandes ainda tem peso interpretativo para a realidade do Brasil e, com tal, influencia, mesmo que subterraneamente, grande parte dos estudos sobre o pós-Abolição brasileiro. Primeiramente, ao lidar com as dificuldades de “integração” negra inseridas no processo de instituição da sociedade de classes na cidade de São Paulo, serve como pontapé inicial para a resolução de perguntas fundamentais. Esse movimento foi homogêneo em todo o país? Como se desenrolou a construção do mercado de trabalho livre em outras regiões? Qual o perfil racial desses trabalhadores? Qual a relação entre escravidão e liberdade no Brasil republicano?

Em segundo lugar, por meio da análise das relações raciais entre imigrantes europeus, nacionais brancos e negros, Florestan nos lega interpretações sobre os conflitos étnico-raciais que nos permitem perceber como as identidades raciais dos brasileiros brancos, dos imigrantes europeus e seus descendentes construíram barreiras raciais que inviabilizaram e ainda inviabilizam o acesso dos negros aos direitos básicos de cidadania durante os séculos XX e XXI.

Em síntese, ao reconhecermos os dois volumes d’A integração do negro na sociedade de classe como um todo, o que ainda hoje parece ter grande impacto em nossa produção acadêmica sobre o pós-Abolição é a noção de que as transformações histórico-sociais das estruturas e do funcionamento da sociedade brasileira, quando da passagem da sociedade de castas para a de classes, “quase não afetaram a ordenação das relações raciais, herdadas do antigo regime” [68].

A continuidade da ordenação das relações raciais perpetuou o problema da “absorção” econômica da “população de cor” na cidade de São Paulo. Esse é o problema central do primeiro volume d’A integração do negro na sociedade de classes. Essa ordenação teve o efeito de excluir a população afrodescendente de uma “vida social organizada” nos moldes da ordem social competitiva – argumento duramente questionado pela historiografia social dos anos 1980. Então, Florestan Fernandes conclui que mesmo o hipotético vencimento de todo “o estado de miséria, de desorganização e de abandono, em que vivia a maior parte dessa população” não bastaria para acabar com o “dilema do preconceito de cor”. Afinal, ele assumiria o significado de perduração da “velha associação entre cor e posição social ínfima”, excluindo o negro “de modo parcial ou total (conforme os comportamentos e os direitos sociais considerados), da condição de gente”. A citação literal de Fernandes, ainda que cause certa estranheza ao leitor de hoje, me parece apropriada para ressaltar a tese central de que a sociedade de classes e competitiva brasileira, na prática, ao negar a cidadania à parcela negra de sua população, não oferece condições de igualdade para que a competição se realize [69].

Esse enunciado já aparecia em Brancos e Negros em São Paulo. Ali constatava-se que, durante os anos 1950, mesmo com a melhoria das condições profissionais do negro, “devido à interrupção do movimento imigratório”, a relação do branco com o negro continuou a ser pautada pela defesa dos privilégios que a branquitude arrendava aos primeiros. “Numa palavra, os brancos não querem ver o esforço dos homens de cor para se integrar na sociedade de classe, como proletários” e “mantêm a imagem do ‘antigo negro’, a fim de isolá-lo em certos setores da sociedade e deixar a outros brancos os empregos mais bem remunerados ou mais ‘decentes’ [70].

Esse argumento fica ainda mais evidente no segundo volume d’A integração do negro na sociedade de classes. Em diversas passagens do livro, Fernandes fundamentou incontestavelmente que não bastaria reduzir a distância social do negro e do branco a explicações meramente econômicas.

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68. FERNANDES, A integração do negro na sociedade de classes, v. 2, op. cit. Locais do Kindle 65-69.

69. FERNANDES, A integração do negro na sociedade de classes, v. 2, op. cit. Locais do Kindle 74-82.

70. BASTIDE & FERNANDES, Brancos e negros em São Paulo, op. cit., p. 201-202

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Atribuindo essa justificativa à doutrina da democracia racial, ele revela que o intuito de tal encadeamento de ideias era, na verdade, “confundir os aspectos visíveis do ‘preconceito de cor’ com algo que às vezes se subestima como ‘um simples preconceito de classe’” [71].

Ainda pautando-se nas conclusões de Bastide, desde o início do segundo volume d’A integração do negro Florestan afirmava que, embora cruel e grave, talvez o drama econômico vivenciado pela população negra em São Paulo não fosse “o pior aspecto da condição humana oferecida ao ‘negro’ na era da civilização industrial”. Acompanhando relatos de brancos e negros sobre seus cotidianos, ele percebeu que as manifestações do racismo interferiram diretamente nos mecanismos de ascensão social criados ou alcançados pelos negros paulistanos. Por isso, a condição socioeconômica dessa parcela da população sempre esteve ligada a padrões de relações raciais tradicionalmente assimétricos.  Podemos discutir a exatidão da ideia de tradição desses padrões, mas é inegável que, no pós-Abolição paulistano, a categoria cor serviu para justificar as posições de classe de uns e a exclusão de outros nos discursos do dia a dia, na imprensa, nas contratações de funcionários ou na elaboração de políticas públicas.

Esse tipo de relação entre raça e classe continua, conforme uma parcela da população negra passa a ocupar lugares profissionais e sociais antes destinados somente aos brancos. Nesses momentos, o “preconceito racial” como fato social expressa-se de maneira inconfundível, escancarando as tensões raciais. “O ‘branco’, que antes somente se empenhava numa defesa indireta e invisível de sua posição de supremacia, precisa descer ao corpo-a-corpo indisfarçável” [72] da competição intraclasse.

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71. FERNANDES, A integração do negro na sociedade de classes, v. 2, op. cit. Locais do Kindle 7116-7126.

72. FERNANDES, A integração do negro na sociedade de classes, v. 2, op. cit. Locais do Kindle 4686-4689.

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Permanecendo o racismo como uma autodefesa do branco contra a escalada de classe do negro e preservado o estigma de hierarquização racial, a sociedade de classes empurra aos pretos e pardos paulistanos à necessidade de, pelas suas próprias mãos, vencer as barreiras raciais que os impedem de usufruir integralmente a cidadania republicana, sem a qual nenhum tipo de democracia é possível.

De modo geral, durante muito tempo houve resistência, inclusive entre os intelectuais mais engajados nas lutas democráticas e/ou anticapitalistas, em caracterizar a luta antirracista como um componente importante para as pautas de diversos movimentos sociais. Inversamente, é conhecida a militância de Florestan para romper as amarras dessa resistência. Para ele, “nas lutas dentro da ordem, a solidariedade de classe não pod[ia] deixar frestas”: tanto greves, quanto outras modalidades de conflitos de classe “que visam o padrão de vida e as condições de solidariedade para os trabalhadores, não podem admitir a reprodução das desigualdades e formas de opressão que transcendem a classe”. Afinal, no capitalismo, “embora o trabalho seja uma mercadoria, onde há uma composição multirracial nem sempre os trabalhos iguais são mercadorias iguais” [73].

Embora apareça com maior força nos escritos declaradamente políticos de Fernandes, é importante que não percamos de vista que a relação de mútua complementaridade entre raça e classe já estava presente na elaboração das teses contidas em Brancos e Negro em São Paulo e n’A integração do negro na sociedade de classe. Essa conexão ganha força à medida que se radicaliza a crítica ao mito da democracia racial:

Muitos afirmam que o preconceito de cor é um fenômeno de classe e que no Brasil não existem barreiras raciais. Todavia, estas se manifestam de vários modos e são muito fortes. Aqueles que conseguem varar as barreiras sociais, qualificando-se como técnicos ou como profissionais liberais, logo se defrontam com barreiras raciais. Promoção, reconhecimento de valor e acesso a vários empregos são negados por causa da condição racial, embora os pretextos apresentados escondam as razões verdadeiras. Para a massa de população negra a questão é ainda mais grave que para suas elites. Ela se vê expulsa da sociedade civil, marginalizada e excluída. E defronta-se com o peso de um bloqueio insuperável e de uma forma de dominação racial hipócrita, extremamente cruel e camuflada, que aumenta a exploração do negro, anula suas oportunidades sociais, mas, ao mesmo tempo, identifica o Brasil como um país no qual reina harmonia e igualdade entre as raças. A armadilha faz a cabeça do negro, que se desorienta e com frequência acaba capitulando, como se ele fosse responsável pelos seus “fracassos” [74]

A riqueza e a coragem da análise de Florestan Fernandes residem na análise desse mito como uma ideologia que, por ocultar “as razões verdadeiras” da exclusão econômica e social do negro, produz ilusões tanto para os brancos quanto para os negros. Como discurso hegemônico na sociedade capitalista paulistana, faz com que os primeiros, escorados em seus privilégios raciais, enxerguem a desigualdade social como mero reflexo da desigualdade econômica e os segundos, capturados pela crença no mito da democracia racial, ordenem os discursos sobre suas vidas de modo a enevoar os conteúdos reais advindos das tensões raciais em que estão inseridos [75].

A crítica à fábula racial da democracia adverte: “Nada de isolar raça e classe”! A análise de Fernandes acerca da luta de classes brasileira, desde Brancos e negros em São Paulo, é primorosa e pode servir de guia para orientar nossos estudos e práticas. Sem negligenciar a raça como formação social fundamental, Florestan enxerga “um potencial revolucionário no negro” [76], ou melhor, na “consciência racial” do negro.

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73. FERNANDES, Florestan. “Prefácio”. In: Significado do protesto negro. São Paulo: Expressão Popular/ Ed. da Fundação Perseu Abramo, 2017, p. 86.

74. FERNANDES, Significado do protesto negro, op. cit., p. 40.

75. Florestan Fernandes, pautando-se nos materiais produzidos pela Frente Negra Brasileira e pelos depoimentos de militantes negros históricos, como o de José Correia Leite, taxa esse tipo de estratégia como capitulação passiva do negro. Ora, tal argumento não pode ser corroborado, tendo em vista que a assimilação do mito da democracia racial não se dá de forma passiva e sem se levar em conta os contextos de manutenção material da vida dos sujeitos, conforme comprovado pela historiografia social brasileira sobre o pós-Abolição. Para uma melhor análise sobre o conceito de capitulação, ver FERNANDES, A integração do negro na sociedade de classes, v. 1, op. cit. Locais do Kindle 5213-5214; FERNANDES, A integração do negro na sociedade de classes, v. 2, op. cit. Locais do Kindle 1011-1091.

76. FERNANDES, Significado do protesto negro, op. cit., p. 86.

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Sofrendo na pele a exclusão social das condições racial e proletária, “o negro nega duplamente a sociedade na qual vivemos”. Não se pode negar que a interação entre raça e classe existe objetivamente. Diante disso, essa interação “fornece uma via para transformar o mundo, para engendrar uma sociedade libertária e igualitária sem raça e sem classe, sem dominação de raça e sem dominação de classe” 77 . Daí que, para Florestan Fernandes, só pode haver um vínculo efetivo entre raça e democracia quando o negro participar dos mais diversos movimentos sociais, sindicais e dos partidos políticos, “levando para eles as exigências específicas mais profundas da sua condição de oprimido maior”78. É nesse ponto que classe e raça revigoram-se mutuamente, enlaçam elementos essenciais “para a negação e a transformação da ordem vigente”; a raça, como categoria social importante na luta de classes, dá lastro às “distintas radicalidades que precisam ser compreendidas (e utilizadas na prática revolucionária) como uma unidade, uma síntese no diverso”79

A obra de Florestan Fernandes tem muito a dizer sobre os nossos dias e muito mais a nos orientar na luta por uma sociedade justa e por uma “democracia para valer”, que reflita verdadeiramente sobre a realidade racial e social brasileira e que “dê as mãos aos negros e a todos que exigem uma abolição que se atrasou historicamente e deve ser feita dentro do capitalismo, contra ele, ainda na era atual”80

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77. Ibidem, p. 26.

78. Ibidem, p. 41.

79. Ibidem, p. 85.

80. Ibidem, p. 87

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