quinta-feira, 5 de janeiro de 2023

Anistia não

Morre pai de vítima de Covid que recolocou cruzes em protesto contra a pandemia

Cena de indignação do taxista Márcio Antônio do Nascimento Silva no Rio viralizou e ele foi um dos convidados a depor em CPI 

Aléxia Sousa, 4.out.2022, FSP

Morreu, no Rio de Janeiro, o taxista Márcio Antônio do Nascimento Silva, 58, que viralizou em 2020 ao recolocar nas areias da praia de Copacabana cruzes de madeira em memória às vítimas da Covid-19 que haviam sido retiradas do local.

Silva estava internado com problemas no coração. Ele, que tinha perdido o filho Hugo, 25, para o coronavírus no auge da pandemia, em abril de 2020, causou emoção com seu gesto ao recolocar a homenagem que fora derrubada momentos antes por um morador.

Márcio chegou a comparecer à CPI da Covid, do Senado, onde deu seu testemunho de pai.

Márcio Antônio do Nascimento Silva, pai de vítima do Covid-19, fala à CPI da Pandemia, em 2021 - PT no Senado / Divulgação

No enterro realizado no Cemitério São João Batista, em Botafogo, nesta terça (4), parentes e amigos carregaram uma cruz em homenagem ao taxista. A Rio de Paz lamentou a morte em uma nota divulgada nas redes sociais.

Márcio Antônio do Nascimento Silva foi enterrado no Cemitério São João Batista, em Botafogo, zona sul do Rio de Janeiro - ONG Rio de Paz/Divulgação

A ONG mandou fazer ainda uma faixa com a frase: "Em memória de Márcio Antônio do Nascimento Silva, pai de vítima da Covid, que defendeu bravamente o direito à vida e à liberdade de expressão. Exigiu e não teve do poder público o combate eficaz da pandemia".

O presidente da Rio de Paz, Antônio Carlos Costa, disse que os familiares de Márcio se disseram surpresos ao ver o taxista fincar com indignação as cruzes na areia. "O que levou Márcio a expressar aquela revolta foi o seu senso de justiça. O desejo de lutar nesse momento dramático da história do nosso país, pela liberdade de expressão, pelo direito à vida. Ele parte deixando para nós o exemplo de compromisso com a democracia", disse.

Hugo Dutra do Nascimento Silva, filho do meio do taxista, morreu em abril de 2020 de complicações do coronavírus. Aos 25 anos, deixou o pequeno Arthur, então com 5 anos. Hugo ficou internado por 16 dias, mas não resistiu à doença.

Marcio Nascimento, taxista, e a indignação da retirada das cruzes na areia. (vídeo)

Na época, a ONG Rio de Paz colocou cem cruzes que representavam covas nas areias da praia de Copacabana, a fim de cobrar ações do governo federal contra a pandemia. Durante a homenagem, porém, um homem que passava pelo calçadão decidiu derrubar as cruzes. Silva, indignado, fincou novamente os objetos na areia. A cena viralizou.

"Gostaria, por favor, que as pessoas tivessem mais empatia e compaixão pelas pessoas, pelas vítimas, por todos nós", disse o taxista à época.

Em outubro daquele ano, Márcio foi convidado a depor na CPI da Covid. Na ocasião, o taxista entregou aos senadores 600 lenços brancos.

Durante o enterro, parentes e amigos fazem homenagem ao taxista que ficou conhecido por recolocar no lugar cruzes de homenagem às vítimas de Covid - ONG Rio de Paz/Divulgação

"A minha dor não é ‘mimimi’. Não é, não é. Dói para caramba mesmo —dói, dói. Não aceito que ninguém aceite isso como normal. Não é normal. Não é minha só, não. É de todas as pessoas que perderam, de todas as pessoas que perderam pessoas tão queridas, porque todas são queridas. Não importa que meu filho tenha 25 anos, isso não é relevante. Não importa que a mãe dela tenha 80. São vidas, são pessoas que a gente ama, como todos aqui amam" disse Silva, durante a CPI.

No dia do ato em Copacabana, 11 de junho, o Brasil registrava 40 mil óbitos pela Covid. De acordo com os dados do Ministério da Saúde, atualizados nesta terça (4), já são 686 mil vidas perdidas.


 Anistia é o caramba

Para uns, a justiça é um fuzil na cara; para outros, o compadrio 

Thiago Amparo, FSP, 04/01/2023

"Não carregamos nenhum ânimo de revanche (...), mas vamos garantir o primado da lei. Quem errou responderá por seus erros, com direito amplo de defesa, dentro do devido processo legal", disse Lula na posse. Opinião na Folha qualificou o trecho como "caça às bruxas." Discordo da leitura política, contrafactual, e da metáfora, desmedida. Justiça não é revanchismo; qualificá-la como tal faz pouco caso da lei que pune crimes contra a democracia e contra a humanidade.

Do pedestal da bondade alardeiam anistia enquanto é a anistia, ela própria, uma vingança contra a lei, jogada no lixo. O homem cordial brasileiro é o que anistia atrocidades antes sequer de serem investigadas, mas diz fazê-lo por amor: é quem iguala punir torturadores a estar "preso no passado, na vingança, no ódio" (Dias Toffoli, em 2022), "em prejuízo do reencontro da sociedade consigo mesma" (editorial nesta Folha, em 2013).

Não devemos reduzir o debatido dilema entre paz e justiça a uma picuinha político-partidária; é o Judiciário quem levaria a responsabilização a cabo. O perigo, isso sim, é de Lula e seu governo — e não as instituições de controle— tomarem as rédeas, o que não parece por ora nem desejado por eles, nem factível; o papel do governo é, primordialmente, acender as luzes sobre os sigilos, fatos e dados. Fazer mais que isso seria um erro histórico.

Já tentamos anistia e não funcionou: quem diz o contrário precisa dizer na conta de quem pomos a tortura que persiste, a Justiça militar que escandaliza, e o golpismo que se aquartela. Já tentamos juízes heróis e igualmente não funcionou: para uns, a justiça é um fuzil na cara; para outros, o compadrio.

"A minha dor não é ‘mimimi’. Dói para caramba mesmo. Não aceito que ninguém aceite isso como normal", disse Márcio Silva, pai de vítima da Covid-19, à CPI da Pandemia. Ao vencido, nem ódio nem compaixão, mas justiça; ao vencedor, nem as batatas nem a glória, mas a lei. Anistia é o caramba, dói mesmo.

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