O estupro como arma de guerra contra os corpos das mulheres Yanomamis
Milly Lacombe, UOL, 22/01/2023
Estamos apenas começando a finalmente acessar todo o horror e toda a destruição dos últimos quatro anos. Relatos, dados, imagens e números represados desde 2018 - ou talvez desde 2016 - nos são oferecidos sem cerimônia e sem preocupação de como serão recebidos.
Cada um lida com as imagens que vê e os relatos que ouve do jeito que pode. Relatos trágicos seguirão chegando: o que se descobriu em território Yanomami é o começo. Corpos famintos e envenenados pela atuação ilegal de garimpeiros em nossas florestas. Ilegal, mas protegida por homens poderosos cujos nomes saberemos em breve. Saques, exploração, usurpação.
Entram, machucam a terra, as pessoas e todos os seres que nela vivem, roubam, matam, ferem, estupram e saem deixando um rastro de devastação a fim de colher seus lucros. Parte do território Yanomami esteve isolado de cuidados durante o governo Bolsonaro. Remédios não chegavam; denúncias não saíam. Postos de comunicação foram controlados pelo invasor. O exército brasileiro deu os ombros. Quem morria, morria uma morte lenta, suja e fedorenta.
Brasileiros esquecidos, corpos matáveis, corpos descartáveis, corpos violáveis. Bolsonaro nunca negou o que pensa de indígenas. Assim como de gays, de negros e de mulheres. Não foi acidente, foi planejamento O discurso é claríssimo desde sempre, mas alguns optaram por deixar isso pra lá "pra acabar de vez com a corrupção em nome da minha família e de Deus".
O Nazismo prometia a mesma coisa: acabar com a corrupção. Proteger a família. Em nome de alguma coisa sagrada, de uma pátria higienizada. E, assim como em toda a guerra, nessa travada contra corpos e espíritos Yanomamis há os estupros cometidos pelos invasores. O coletivo de jornalistas Sumaúma - que fala desde o coração da Amazônia - em setembro de 2022 ’ já havia feito matéria a respeito dos regulares relatos de estupro contados pelas mulheres Yanomamis.
‘Não estamos conseguindo contar os corpos’
"Por que os garimpeiros comem nossas vaginas?", perguntava uma habitante do território à reportagem da Sumaúma. Relatos de estupros coletivos (que envolvem crianças), de envenenamento seguido de estupro, de muita aniquilação e dominação. Relatos que mal ecoavam e que, quando ecoavam, eram ignorados. Nessa guerra contra nossas florestas e povos originários, homens morrem de bala, mulheres morrem de pênis.
O corpo do homem capturado para o trabalho, o da mulher capturado para a violação. O gozo estridente que exala poder e controle. Historicamente, toda guerra terminada deixa um rastro de mulheres estupradas e começaremos agora a saber um pouco mais a respeito das mortes e violções dentro do território Yanomami. Jair Bolsonaro e sua turma serão levados a Haia. Serão julgados pelo que fizeram. Enquanto isso, temos uma nação para construir.
Uma em que as únicas destruições toleráveis deveriam ser a de preconceitos, racismos, machismos, misoginias e a de todo e qualquer monumento que celebre quem os praticou em qualquer época de nossa sangrenta história; de nome de ruas, estradas e cidades a imensas estátuas. Construir um espaço de memória que seja legítimo, que conte a verdadeira história do Brasil. E começar a encarar a violência sexual de gênero pelo que ela é: uma arma de guerra usada regularmente, mesmo em tempos de suposta paz, contra corpos femininos.
Milly Lacombe, 53, é jornalista, roteirista e escritora. Cronista com coluna nas revistas Trip e Tpm, é autora de cinco livros, entre eles o romance O Ano em Que Morri em Nova York. Acredita em Proust, Machado, Eça, Clarice, Baldwin, Lorde e em longos cafés-da-manhã. Como Nelson Rodrigues acha que o sábado é uma ilusão e, como Camus, que o futebol ensina quase tudo sobre a vida
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