Veja vídeo exclusivo: “Vai ser o Edson ou vai ser o Pelé que morreu? O Pelé eu acho que não morre mais” Assista à íntegra de uma entrevista, nunca exibida antes, em que o atleta contou sua vida e lembrou os títulos conquistados no futebol O maior jogador de futebol de todos os tempos morreu. Edson Arantes do Nascimento, o Pelé, teve a morte confirmada nesta quinta-feira, aos 82 anos.
Brasileiro, nascido no interior de Minas Gerais, foi tricampeão mundial de futebol nas Copas de 1958, 1962 e 1970. Pelé estava internado havia um mês no Hospital Albert Einstein, em São Paulo, para tratar complicações de um câncer de cólon e sofreu falência múltipla dos órgãos. Foi talvez o maior ídolo que o Brasil já teve, e continuará sendo assim por muito tempo. Como ele próprio previu anos atrás, quem morreu agora foi Edson – Pelé não tem como morrer. O atleta disse isso numa entrevista gravada em 26 de abril de 1997, no Guarujá, para a série documental “Futebol”, de João Moreira Salles e Arthur Fontes, que foi exibida pelo GNT.
A piauí exibe agora pela primeira vez a versão integral da entrevista, sem cortes nem edição. Nela, Pelé conta como começou a jogar futebol, fala de sua admiração pelo pai e das Copas do Mundo que conquistou pelo Brasil – a primeira delas aos 17 anos, em 1958. O vídeo tem 49 minutos e pode ser assistido abaixo.
O Pelé eu acho que não morre mais (vídeo)
MELHOR ATAQUE DAHISTÓRIA | Programa HISTÓRICO com: Dorval, Mengálvio, Coutinho, Pelé e Pepe (vídeo)
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No enterro do Rei do Futebol, histórias e lembranças de encontros com o ídolo
Flávio Leal, 03 de janeiro 2023
Fãs e torcedores fazem fila no velório de Pelé, na Vila Belmiro, para as últimas homenagens ao Rei -Foto: Gustavo Basso | NurPhoto via AFP
A ÚLTIMA VEZ QUE VI PELÉ
No enterro do Rei do Futebol, histórias e lembranças de encontros com o ídolo
Flávio Leal 03 de janeiro de 2023
A fila de 2 km de fãs serpenteava pelas ruas da Vila Belmiro ao meio-dia de uma segunda-feira de sol escaldante. Era gente que queria ver Pelé pela última vez. Cada um trazia um motivo para reverenciar aquele que já foi o cidadão mais conhecido do mundo. Saulo Soares, de 36 anos, era o primeiro da fila do velório já na tarde de domingo, quando começaram a ser colocados os gradis. Veio de Juquiá, no Vale do Ribeira, na sexta-feira. Dormiu em frente à estátua de Zito, outro ídolo do Santos, e na porta do Memorial das Conquistas do Santos no dia seguinte.
Não era a primeira vez que Soares teria um breve encontro com Pelé, dono de uma fazenda na sua Juquiá. “Ele inaugurou um Centro Olímpico lá quando eu tinha 14 anos”, contou. “Saí correndo atrás do carro em que ele estava para tentar um autógrafo. Corri bastante pelas ruas, mas não deu.” Duas horas depois de passar ao lado do caixão na área do velório, ele estava de novo próximo de conseguir uma nova passagem. “Eu vou quantas vezes for possível.”
Pelé morreu na quinta-feira, dia 29, em consequência das complicações de um câncer de cólon. Em Santos, onde viveu boa parte da vida, não é difícil encontrar alguém que não tenha tido pelo menos um encontro o Rei. Ele dava um autógrafo e fazia foto, mas logo evaporava. Em ambientes mais sossegados, gostava de conversar. Sérgio Carranca Neto, comerciante de 38 anos, mora na Vila Belmiro e conheceu Pelé aos 10 anos. “Meu avô era preparador físico e fez um trabalho com ele, já ex-atleta, que iria disputar um jogo em sua homenagem, o jogo em que ele completaria 50 anos de idade.” Não foram poucas as vezes em que ele parava uma das suas Mercedes na Rua José de Alencar, onde Carranca morava, para falar com o avô do comerciante. Depois, ficava dando autógrafos para os meninos da rua. “A última dessas visitas acho que foi em 1996 e, depois, só víamos o carro dele passando”, puxa da memória.
Sob o sol da fila, também vindo de Juquiá, o caminhoneiro Luiz Andrada de Macedo, de 69 anos, encontrou Pelé num local inusitado. Era um jovem na década de 1970, e um amigo da família o levou até onde Pelé negociava pessoalmente parte do seu rebanho. Sim, Pelé estava vendendo gado, num dos seus muitos negócios malsucedidos. “Ele foi simpático e deu um autógrafo, como sempre”, lembra Luiz que, depois, só via o Pelé fazendeiro a cortar a pequena cidade de carro.
Pelo velório passaram o governador de São Paulo, Tarcísio de Freitas, o ministro do STF, Gilmar Mendes, o prefeito de Santos, Rogério Santos, os presidentes da Fifa, Gianni Infantino, e da Conmebol, Alejandro Dominguez. Os portões foram abertos por volta das 11 horas. Dos alto-falantes do estádio, em volume baixo, como se espera em um velório, saía a voz de Pelé, a cantar um samba calmo. “A vida me ensinou que o prazer dessa glória e desse triunfo é um instante de ilusão, mas que o amor do povo não cabe na razão, é para toda a vida, ilumina o coração.”
Quem teve suas histórias, e muitas, com Pelé é o santista de time e de nascimento José Roberto Torero. Ainda menino, o viu pela primeira vez numa das suas Mercedes, de cor azul. Torero recorda que estava no carro ao lado, com o pai, e o viu por instantes. Pouco tempo depois, o Baleia, ônibus do time do Santos, foi trocar os pneus na loja do pai dele, que chamou o filho para ver a novidade. “Sentei em todos os bancos do ônibus para ter a certeza de que sentaria no banco em que Pelé já tinha sentado.”
Mal sabia o futuro escritor que a bronquite o levaria à Fisioterapia Pelé, no bairro da Ponta da Praia. Claro, era mais um dos negócios do Rei do Futebol, que sempre estava passando por lá. “Eu o via, mas não conseguia, por timidez, falar com ele.”
Décadas depois, Torero reencontrou o ídolo. Ele roteirizou o curta-metragem Uma História de Futebol, de 1998, que chegou a concorrer a um Oscar e que retrata a infância de Pelé. “Quando ele assistiu, chorou”, conta Torero. Pelé era de choro fácil.
Cinco anos depois, o destino de Torero cruzou novamente com o de Pelé. Dessa vez num contato mais estreito. Era para roteirizar o filme Pelé Eterno, de 2004. Foram muitas reuniões, entrevistas. “Estive na casa da mãe dele, dona Celeste, também muito simpática, foram diversos contatos.” Torero conta que, em todos os locais que percorreu com Pelé, ficou impressionado com a simpatia e humildade com que ele tratava as pessoas e a paciência para atender a todos. “Você pode ver as fotos de Pelé por todos esses anos e não vê nenhuma dele estressado, olhando feio para as pessoas ou irritado com o assédio”, diz Torero.
Após a conclusão de Pelé Eterno, uma sessão foi preparada para que Pelé assistisse ao filme com o presidente Lula, à época em seu primeiro mandato. Torero foi convidado e jantou com os dois. “Lula e Pelé conversaram bastante, mas eu estava meio atordoado com toda a situação e prestei atenção a poucas coisas. Lembro que os dois falaram que foram engraxates quando crianças e que a família tinha que ser valorizada para que as coisas melhorassem no país”, afirma Torero.
O presidente Lula compareceu ao velório na Vila Belmiro nesta terça-feira. Depois, o velório foi fechado ao público.
Flávio Leal
É jornalista freelancer. Nasceu e mora em Santos, na Ponta da Praia, a poucas quadras de onde morou o Rei do Futebol por quase duas décadas. É repórter com passagens por Diário de S.Paulo, Infoglobo, Diário do Grande ABC, A Tribuna de Santos e Publimetro.
Conhecendo Pelé
O rei do futebol não era um homem fácil de se entender, mas podia ser generoso de maneiras inesperadas
Brian Winter | 30 de dezembro de 2022
Na primeira vez que encontrei Pelé, eu, como a maioria dos mortais, não sabia realmente o que dizer. Uma editora americana me contratou para ajudá-lo a escrever um livro para a Copa do Mundo de 2014, que o Brasil sediou, mas eles não queriam apenas mais um livro tradicional de memórias do futebol, contando sobre os antigos gols e outras glórias. (Pelé já tinha publicado dois livros desses em inglês – o primeiro em 1977, ano em que se aposentou do New York Cosmos e também, coincidentemente, o ano em que eu nasci.)
Então, quando nos sentamos no escritório dele em Santos, cercados por fotos envelhecidas e troféus, decidi tentar uma abordagem diferente, mais pessoal: “Pelé, eu vi uma foto da década de 1970 em que você estava numa mesa no Studio 54 com Rod Stewart, Mick Jagger, Liza Minnelli e Andy Warhol. Como foi isso? Você se lembra?” Pelé sorriu – aquele sorriso grande e icônico. “Rod Stewart! Grande cara! Ele amava futebol, amava o Brasil. Sempre rápido com uma piada. Muito divertido. Ótimo rapaz.” Esperei um pouco. Isso foi tudo? Sim, foi tudo. Ok, pensei, talvez as coisas tenham sido meio loucas nos anos 1970. O que acontecia no Studio 54 ficava no Studio 54? É justo. Vamos tentar outra: “Pelé, você foi à festa de aniversário de 18 anos de Michael Jackson. Como foi isso? Como Michael mudou ao longo dos anos? Como você se sentiu quando ele morreu?” Aquele sorriso de novo. “Michael Jackson – grande cara! Amava o Brasil, amava a dança do nosso povo. Ele sempre queria falar sobre o Brasil, sobre as nossas tradições. Realmente, um cara espetacular.” Isso continuou mais ou menos do mesmo jeito por mais uma hora, e saí daquela primeira reunião me sentindo totalmente consumido pelo pânico.
Por causa da maneira agonizantemente lenta como os livros são produzidos e impressos, e uma certa temeridade inexplicável de nosso editor, teríamos apenas nove semanas para fazer as entrevistas, escrever e editar esse livro. Onde eu iria conseguir o material? Contei nossa conversa para alguns amigos de confiança, e todos tiveram a mesma reação: Pelé estava senil? Ou simplesmente não era muito inteligente? Logo descobri que, na verdade, quem não era muito inteligente era eu.
Pelé era uma das pessoas mais famosas do mundo desde que levou o Brasil a ganhar sua primeira Copa do Mundo, com apenas 17 anos, em 1958. Nas décadas seguintes, Pelé cruzou caminhos com a rainha Elizabeth, Muhammad Ali e os Beatles. Ele conheceu vários papas e todos os presidentes dos Estados Unidos desde Lyndon Johnson. Estrelou um filme de Hollywood ao lado de Sylvester Stallone e Michael Caine. O que quer dizer: é claro que Pelé não se lembrava muito daquela noite no Studio 54, porque provavelmente não lhe causou muita impressão.
Ele conheceu todas as celebridades da segunda metade do século XX em diante, e nenhuma era mais famosa que ele. Então, em nosso encontro seguinte, deixei de lado as fofocas de celebridades e tentei conhecer o homem em seus próprios termos. Eu teria sucesso apenas em parte: Pelé havia sido queimado por muitas pessoas ao longo dos anos, perdendo toda a sua fortuna não uma, mas duas vezes em maus investimentos e fraude total. Ele aprendeu da maneira mais difícil a não confiar em agentes, contadores, escritores e outros que supostamente estavam lá para ajudá-lo. Pelo que pude deduzir, não era a fama extrema que representava os maiores desafios para Pelé – na verdade, ele era tão famoso havia tanto tempo que isso era tudo o que conseguia se lembrar, e ele me disse que tinha pesadelos sobre ninguém se lembrar de quem ele era. Não, o que mais incomodava Pelé eram os amigos e outros que viviam em busca de dinheiro, favores, ingressos, uma apresentação. Ele me tratou educadamente, mas com cautela, como se eu fosse mais uma pessoa que inevitavelmente iria decepcioná-lo. Apesar dessas barreiras, aprendi que havia duas coisas com as quais Pelé parecia verdadeiramente se importar. A primeira coisa, é claro, era o futebol. Nada animava tanto Pelé quanto as histórias de seu tempo dentro e ao redor do campo – seus três títulos inigualáveis da Copa do Mundo, a era do Santos go-go, os anos crepusculares de sua carreira, quando ele foi o rei inquestionável da cidade de Nova York nos anos 1970 e apresentou o futebol para muitos americanos pela primeira vez, jogando pelo Cosmos.
Pelé claramente contou algumas dessas histórias milhares de vezes e, francamente, algumas delas podem não ter resistido aos rigores da verificação de fatos dos dias modernos. Mas ele parecia gostar mais das histórias de seus primeiros tempos, de um mundo antes do advento das comunicações de massa ou da cultura pop, um mundo que não existia mais para ele – ou para qualquer pessoa. Ele me contou que passeou pelas ruas da Suécia, país-sede da primeira Copa de que participou, em 1958, ao lado de seus companheiros da seleção, entre eles o querido Mané Garrincha, que, como Pelé, era uma espécie de caipira naqueles primeiros anos. Eles avistaram uma invenção inédita no Brasil, os rádios a bateria, e começaram a testar os alto-falantes. Garrincha torceu o nariz e declarou que jamais compraria aquilo. Um dos jogadores mais velhos, surpreso, perguntou por quê. “Não entendo nada do que ele diz!”, respondeu Garrincha. A voz que vinha do rádio era, claro, em sueco. Os outros jogadores tentaram explicar que o rádio “falaria” português no Brasil, mas Garrincha não acreditou. “De jeito nenhum.” Cerca de sessenta anos depois, as lágrimas de riso ainda vieram aos olhos de Pelé – junto com uma certa nostalgia. A segunda coisa que preocupava Pelé talvez fosse mais surpreendente.
Apesar de toda a exploração ao longo dos anos, apesar dos incontáveis encontros com torcedores em êxtase, chefes de Estado e outras celebridades, Pelé ainda parecia ter uma alegria autêntica em se conectar com as pessoas. Nem todo mundo, veja bem – adultos comuns, com suas agendas ocultas, não lhe causavam grande interesse. Mas com crianças, e especialmente com os doentes e vulneráveis, vi esse homem repetidamente se esforçar para entender o que as pessoas queriam e depois ser generoso o suficiente para lhes dar. Em visitas a hospitais e em seus projetos de caridade, ele passava tempo, tempo real, conversando com as pessoas. Muitas eram, como eu, jovens demais para tê-lo visto jogar futebol – mas mesmo crianças pequenas pareciam entender intuitivamente que ele era uma pessoa de magia e carisma especiais.
Perguntei a Pelé se ele já se cansara de autógrafos e conversa fiada. “Às vezes”, ele admitiu. “Mas acho que Deus me colocou aqui para tentar fazer as pessoas felizes.” Se isso soa piegas ou decorado para você, eu entendo. Mas acredito que ele foi sincero. Acredito nisso em parte porque, como quis o destino, minha família experimentou esse lado de Pelé em primeira mão. Durante o curto período em que ele e eu trabalhamos juntos, minha irmã mais nova, de apenas 30 anos, foi diagnosticada com um câncer altamente agressivo. Enquanto trabalhávamos no livro, Pelé perguntava sobre ela regularmente. Quando as coisas ficaram realmente difíceis, ele tirou uma foto de si mesmo – sorrindo, é claro – segurando uma placa com o nome dela e uma mensagem: “Mantenha a bola rolando.” Minha irmã simplesmente não conseguia acreditar. “Meu Deus, adorei”, ela respondeu. Foi a última mensagem que recebi dela. Sei que Pelé tocou centenas, e provavelmente milhares, de pessoas da mesma forma, longe dos holofotes e das câmeras.
Nada disso fez dele um santo, é claro. No Brasil, onde morei naqueles anos, era comum ouvir as pessoas dizerem que amavam Pelé, mas não gostavam de Edson Arantes do Nascimento – fazendo uma distinção entre o ícone do futebol e o ser humano da vida real. Sua recusa durante anos em reconhecer uma filha nascida fora do casamento, mesmo depois que os testes de DNA provaram que era dele, afastou muitos fãs. Outros reclamavam de seu mercantilismo crasso, de sua constante necessidade de lucrar ao longo dos anos com a marca Pelé: café, chocolates, farmácias e até gado. Para os mais próximos, ele podia ser distante e indiferente, mostrando pouco da generosidade que dedicava a estranhos.
Suponho que Pelé, como todos nós, teve que conviver com as consequências de seus fracassos e deficiências. Tudo o que posso dizer é isto: pessoalmente, não consigo imaginar viver a bizarra trajetória de vida do atleta superstar, cuja fama e poder aquisitivo atingem o pico por volta dos 20 anos, apenas para passar as próximas quatro, cinco, seis décadas sendo solicitado a reviver velhas histórias que, com o passar dos anos, devem parecer que aconteceram com outra pessoa. Passei minha carreira trabalhando com presidentes e outras figuras famosas; nenhuma delas gerou nada remotamente parecido com a pura histeria que Pelé provocou em pessoas aparentemente normais. Vi homens crescidos chorarem, e suas mãos tremerem, na presença dele enquanto contavam algum gol que ele marcou pelo Santos nos anos 1960. Em retrospecto, parece inteiramente plausível que mesmo Rod Stewart e o jovem Michael Jackson possam ter, no auge da celebridade de Pelé, apenas conseguido dizer algumas palavras sobre amar o Brasil e a “dança do seu povo”. Talvez a lembrança de Pelé daquelas conversas no Studio 54 fosse realmente exata. Não me surpreenderia.
O livro que Pelé e eu escrevemos juntos, Why Soccer Matters (Por que o futebol é importante), foi publicado – no prazo, milagrosamente – às vésperas da Copa do Mundo de 2014. Não era a novidade incrível que o editor esperava; em vez disso, narrava principalmente velhas histórias, aquelas que Pelé queria contar e que todos queriam ouvir. Perdemos contato logo depois; eu o conheci apenas brevemente. Mas a observação mais honesta que já ouvi veio de seu assessor mais próximo, José Fornos Rodrigues, conhecido como “Pepito”, um verdadeiro cavalheiro em quem, segundo todos os relatos, ele confiava totalmente. “Nesta fase da sua vida”, Pepito me disse, “Edson é um ator que faz o papel de Pelé.” Sim, foi uma atuação, mas uma atuação genial, em que ele se entregou mais do que precisava, mesmo quando quase ninguém estava assistindo. Ele fez muita gente feliz. Que descanse em paz.
Tradução: Luiz Roberto M.Gonçalves
Flávio Leal É jornalista freelancer. Nasceu e mora em Santos, na Ponta da Praia, a poucas quadras de onde morou o Rei do Futebol por quase duas décadas. É repórter com passagens por Diário de S.Paulo, Infoglobo, Diário do Grande ABC, A Tribuna de Santos e Publimetro.
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Pelé, o muro e o mar
Lembranças de um menino das vizinhanças da casa do Rei em Santos
João Paulo Charleaux 29 de dezembro de 2022
Pelé ficava atrás de um muro. Tinha lá um muro coberto de hera ou de unha-de-gato onde a cidade acaba. Ele ficava atrás desse muro. Santos tem uma geografia estranha – a maior parte da região urbana da cidade é insular, é uma ilha, mas ninguém percebe. O muro atrás do qual Pelé morava ficava na Ponta da Praia, um bairro em que você olha para a direita e vê o mar; olha para a esquerda e vê o mar também, ou pelo menos os guindastes do porto, que indicam que ali, no horizonte, está o mar de novo. A coisa causa uma desorientação.
A maior parte das pessoas acha graça quando percebe, mas muito morador passa a vida toda sem se dar conta de que o mar circunda o bairro. A Ponta da Praia é mesmo como um fim de caminho, onde só se vai – ou onde só se ia, porque hoje inventaram muita coisa para fazer lá – se você morasse na região ou fosse pegar a balsa para atravessar o Estuário na direção do Guarujá. Existe um ambiente de desorientação geral no bairro em que Pelé morava porque, além de o mar estar por todo lado – como num planeta que tenha mais de um sol ou um par de luas a girar em torno de si –, há ainda a predominância de uma iluminação difusa que nunca deixa a zona anoitecer direito.
O fenômeno é causado pelo efeito dos potentes holofotes do porto. As torres imensas projetavam uma luz amarelada que, refletida nas nuvens baixas e na umidade espessa que marca o clima da Baixada, sobretudo no verão, terminava por empastelar o ar com uma sensação de que não havia transição precisa entre o dia e a noite. Era como se o sol inclemente que brilhava de dia se recolhesse para dentro das ampulhetas de tungstênio que mantinham vigília atenta sobre todos os recônditos do bairro na hora de dormir, dando uma impressão de que a cidade tinha um verão de Oslo, onde nunca anoitece de verdade. Antes de o dia acabar, ele já parece recomeçar. Antes de as ruas terminarem, elas dão a volta na esquina e recomeçam, abalroadas pelo mar que cerca o bairro. A desorientação que o lugar provoca não está completa sem o cheiro. Dezenas de silos fazem subir na atmosfera nuvens invisíveis de um fedor característico. Os moradores dizem que o cheiro é causado pelas montanhas de açúcar e grãos que fermentam nos armazéns. Se você cheira o açúcar do açucareiro ou um punhado de grão-de-bico, não sente nada. Mas espere até metê-los em carretas de caminhões que atravessam o país antes de serem amontoados por escavadeiras dentro de galpões do tamanho de prédios, onde esperam por dias até serem dragados para os porões de navios que atravessam o Atlântico. Parece que a operação toda é que faz a alquimia de deixar o açúcar fedendo. É o que a gente ouve dos adultos em Santos quando é criança. Piscou, passam-se quarenta anos em que você repete isso sem nunca googlear para saber se é verdade. Mas o cheiro está lá, onde morava o Pelé. A escola pública onde primeiro estudei ficava no fim do fim desse bairro. Era o último imóvel antes da delegacia, do mercado de peixe e da balsa, nessa ordem. Um pouco antes, um pouco para dentro, ficava o muro atrás do qual Pelé morava.
“O Pelé mora aí”, meu pai dizia quando a gente passava de mão dada na frente do muro do Pelé. Não era caminho para lugar nenhum. Caminho é pela Avenida dos Bancários ou pela Avenida da Praia, apelido da Avenida Almirante Saldanha da Gama. A casa do Pelé, na Praça Nossa Senhora do Carmo, não é caminho para nada. A praça mesmo não tem nada. Dá a impressão de que o pessoal foi fazendo rua e no fim precisou criar uma pracinha de arremate, só para amarrar o enredo viário do bairro. Nunca vi Pelé lá. Nunca ouvi nem voz atrás do muro. Os adultos sabiam que aquela era uma das muitas casas que ele devia ter no mundo, mas, para a criança que eu era em 1984, vai, por aí, – com o quê, com 5, 6 anos? –, Pelé vivia chutando uma bola no gramado imenso que existia atrás do muro coberto de hera ou unha-de-gato na Ponta da Praia. Ele não fazia outra coisa que chutar bolas.
Tinha duas traves brancas no gramado. Eu nunca as vi, mas apareciam nítidas na minha cabeça, adornadas por redes que os campos da minha infância nunca tiveram. Traves com redes é o tipo de luxo que se pode almejar até os 10 anos de idade. Você não quer marcar mil gols no Maracanã, você sonha com uma rede enfeitando a trave de pau erguida no campo riscado na areia. “Essa é a casa do Pelé?”, eu perguntava a cada vez que passava lá, como que para confirmar ou realçar a excitação que aquilo causava em mim. Pensava que ele estava tocando bola para algum filho. Eu não sabia se ele tinha filho, mas devia ter alguém com quem ele jogava no gramado de casa. Um gramado tão grande, afinal, com essas redes brancas, perfeitas. Devia ter. Um dia ele passou de carro, na rua. Na Avenida dos Bancários. “Olha o Pelé. É ele”, alguém me disse. Meu pai, talvez. Eu não vi. Outra vez ele estava num dos camarotes da Vila Belmiro num dia de jogo. A gente estava derretendo na arquibancada de concreto, apertando os olhinhos para separar o que é sol do que é jogo, tentando enxergar o gramado, com aquela luz imensa de verão refletida nos onze uniformes brancos dos jogadores do Santos, quando correu um burburinho na massa. O pessoal olhava para cima. Via o Pelé no camarote. Eu olhava lá, mas as crianças têm esse poder de dispersão. Não veem o que todo mundo vê. E, de novo, eu não sei se vi o Pelé. Sou de uma geração que por pouco não viu Pelé.
Ele se aposentou do futebol profissional em 1977, numa partida entre o Santos e o Cosmos de Nova York, para onde foi depois de pendurar as chuteiras, numa transferência menos esportiva e mais publicitária, que talvez tenha inaugurado a era do futebol-negócio, pois, até então, nem patrocínio os uniformes tinham. Nasci dois anos depois e peguei o rastro que Pelé deixou no ar. Então, ele vagava na cidade ainda de forma muito presente, mas pouco palpável. O Santos com o qual cresci foi um time difícil, de poucas conquistas. Em 1978, teve a primeira geração dos chamados “meninos da Vila” – Juary, Pita, João Paulo, Ailton Lira. Mais tarde, Chulapa. Mas isso tudo eu não peguei de memória, peguei de ouvir contar. As torcidas adversárias se referem aos torcedores do Santos como “viúvas do Pelé”. Não há melhor definição, sobretudo para meninos da minha geração.
A gente cresceu de luto por um negócio que não conheceu, mas cujo rastro era sentido em toda esquina, num carro que passava, num muro de bairro, num vulto no camarote. Um dia, quando eu era pequeno, o Pelé participou de algum jogo com a Seleção. Algum amistoso, evento, partida arranjada, alguma coisa. Eu vi na tevê. Chorei. Eu achava que as pessoas não passavam a bola para ele. Minha mãe veio me consolar e eu me lembro de perguntar a ela por que ninguém passava a bola para o Pelé. Isso deve ter acontecido. Eu devia estar grudado em alguma tevê de tubo de algum daqueles apartamentos da parte surreal da cidade, que existe do canal 5 para lá. Hoje, adulto, vejo as pessoas discutindo sobre um Pelé que eu desconheço. Tentam determinar o tamanho do legado deixado por ele, situá-lo em relação aos craques atuais, compará-lo com Maradona, escrutinar suas posições políticas, seus aspectos raciais.
As pessoas de Santos ficam vendo esse debate passar, ficam sacando a confusão em que todo mundo cai ao tentar capturar a essência de um vulto negro que no curto tempo que dura uma vida conseguiu impregnar a existência de tantos, como um fenômeno estranho, como uma luz difusa, como um fenômeno onírico que marcou uma infância nacional na qual projeções e verdades, mitos e lendas se fundem na cabeça dos que tentam materializar Pelé apenas por meio de vídeos borrados, imagens granuladas, realidades contadas, sempre tapadas por um muro alto num fim de caminho que nunca termina.
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