Na terra dos caubóis, a luta para evitar suicídios de ‘homens durões’
Por Jose A. Del Real, 30/05/2022,
Bill Hawley, servidor da saúde pública do Wyoming, combate a masculinidade tóxica que pode levar à morte
THE WASHINGTON POST- Bill Hawley acredita que é grande demais o número de homens que não se dispõem ou não conseguem falar a respeito de seus sentimentos, e encara cada dia como uma oportunidade de mostrar a eles como fazer isso. “Aí está aquele sorriso que eu gosto”, diz ele a um caubói vestindo couro na zona rural do nordeste de Wyoming, onde ele mora. “Eu poderia chorar só de pensar em como você tem um coração maravilhoso”, diz ele a um amigo de meia idade no trabalho. “Depois de conversarmos na semana passada, pensei muitas vezes nas suas palavras”, diz ele a um militar veterano usando roupas camufladas. “Pode pensar o que quiser, mas aquilo foi importante para mim.”
No papel, Bill é o “especialista em prevenção” do departamento de saúde pública de Johnson County, uma região que liga a planície às montanhas de Wyoming e tem quase o tamanho de Connecticut, mas uma população de apenas 8.600 moradores. Sua autoridade oficial está ligada a pessoas com problemas ligados ao tabagismo e abuso de drogas e álcool, bem como impulsos suicidas, frente aos limitados programas estaduais de serviço social. Parte burocrata, parte orientador, boa parte da vida de Bill gira em torno de chamadas no Zoom e subcomissões, siglas governamentais e solicitações de recursos.
Mas a missão dele vai além do monótono edifício do governo local na rua Klondike Drive, onde trabalha. Um a um, ele espera cultivar nos homens de Wyoming um novo tipo de masculinidade americana. A abordagem dele é a um só tempo radical e comum.
Normalmente, tudo começa com uma simples pergunta.
“Como está se sentindo?” pergunta Bill ao homem de roupas camufladas, que vive no Lar dos Veteranos de Wyoming, que Bill visita várias vezes por semana. Recentemente, Bill o convenceu a deixar de fumar.
O homem caminha apoiado em um andador, levando um tanque de oxigênio.
“Podemos falar um pouco a respeito de gatilhos”, incentiva Bill. “São coisas que vão espreitar você e preparar uma armadilha.” “Tenho um monte de gatilhos”, responde finalmente o veterano de 72 anos, entre violentos espasmos de tosse. “Pode chamar de gatilhos, mas são coisas que nunca vão embora.”
Homens estoicos e durões que sofrem sozinhos
Aqui, na terra dos caubóis, paisagem e origem de incontáveis mitos americanos, Bill sabe que os “homens de verdade” devem ser estoicos e durões. Mas, em um momento em que há tantas visões concorrentes de masculinidade, seja nos Estados Unidos ou no próprio Wyoming, Bill está questionando o significado de ser um homem de verdade.
Com frequência, o que ele vê nos homens americanos é o desespero.
Em todos os EUA, os homens responderam por 79% dos suicídios em 2020, de acordo com análise do Washington Post dos dados dos Centros para a Prevenção e Controle de Doenças, que indicam também o Wyoming como estado com maior incidência de suicídios per capita no país. A maioria dos suicídios envolve armas de fogo, e há muitas delas no Wyoming, e o uso de álcool e drogas costuma desempenhar um papel importante. Entre os sociólogos, o Oeste Montanhoso foi apelidado de “Cinturão do Suicídio”.
Cada vez mais, teorias a respeito da disparidade de gênero nos suicídios se concentram nas potenciais armadilhas da própria masculinidade.
Os dados também contêm um mistério sociológico que nem os especialistas sabem explicar totalmente: das 45.979 mortes por suicídio nos EUA em 2020, cerca de 70% ocorreram entre homens brancos, que representam apenas 30% da população total do país. Isso faz dos homens brancos o grupo mais exposto ao risco de suicídio no país, especialmente na população de meia idade, mesmo sendo super-representados em posições de poder e destaque nos EUA. Essa proporção aumentou constantemente nos 20 anos mais recentes.
Alguns pesquisadores clínicos e estudiosos do suicídio agora se perguntam se há algo de especial na masculinidade branca americana que mereça uma investigação aprofundada. As implicações são significativas: em média, há duas vezes mais suicídios do que homicídios anuais nos EUA.
Expectativa dos homens acaba dissociada da realidade
Bill, branco de 59 anos, tem sua própria teoria. É algo ligado à dissociação entre as expectativas dos homens para suas vidas e a realidade de suas experiências individuais, agravado por normas culturais que incentivam a repressão de qualquer sentimento diferente da raiva. A masculinidade tóxica costuma se manifestar externamente. Mas ela também causa estragos internos.
“Conversas podem salvar vidas”, Bill costuma dizer, pois elas salvaram a vida dele muitas vezes desde o dia em que ele tentou se matar, duas décadas atrás, depois que uma sequência de comportamentos destrutivos e angústia mental levou a um divórcio, à perda da esperança, ao afastamento em relação aos dois filhos. Então, agora ele conversa com outros homens “a respeito de como nos sentimos quebrados por dentro”, a respeito “de uma saúde completa: mente, corpo e alma”.
Ele não tem medo nenhum de soar meloso. Alguns homens respondem com desconforto, encarando-o sem piscar. Mas, talvez improvavelmente, alguns respondem à sinceridade dele falando de seus vícios, dos problemas com valentões de meia idade que ainda os provocam por “agir como gays”, a respeito da sua busca por escassos terapeutas na zona rural dos EUA que possam ajudá-los a cicatrizar suas feridas.
É um trabalho lento. Como está se sentindo? O veterano controla o acesso de tosse e começa a contar a Bill a respeito da mulher, que morreu. Fala do pai, morto há muito. E fala do filho, morto recentemente. Então, falam do Vietnã. Do soldado seu colega que subitamente se matou um dia quando os dois estavam juntos. “É o mesmo pesadelo toda vez”, diz o homem, com os olhos cada vez mais cheios d’água. “Nunca consegui entender.” Bill toca o braço dele.
“Quero que saiba que, depois que você parar de fumar, não deixarei de visitá-lo. Vou continuar visitando, ajudando e apoiando você”, diz Bill.
Ele é apenas um homem vivendo nos EUA em 2022, igual a outros 162 milhões, presos entre antigos padrões de masculinidade americana e um mundo novo em que tais ideias mudam rápido. Aqui ele enxerga uma oportunidade, de ajudar os homens a serem melhores para quem convive com eles ao ajudá-los a serem versões melhores de si mesmos. Se o mito do caubói americano foi forjado em cidades de fronteira como esta, por que tal mito não pode ser desconstruído e reconstruído também aqui?
De quase pastor luterano à tentativa de suicídio
Anteriormente em sua vida, Bill quis ser um pastor luterano, como o pai tinha sido, e às vezes a fala dele assume a cadência de um sacerdote. Em vez disso, tornou-se educador e, entre meados dos anos 80 e meados dos anos 90, trabalhou em escolas ligadas a religiões. Esse trabalho o levou a Nova York com a primeira mulher, seguindo para St. Louis e, finalmente, Myrtle Beach, Carolina do Sul. Chegou ao cargo de diretor. O casal teve dois filhos.
Bill se sentia importante. De vez em quando, liderava as preces na sua igreja. Isso o fazia se sentir próximo do exemplo do pai. Dava a ele uma sensação de realização.
Mas foi durante esses anos que as expectativas em relação à sua vida colidiram com a realidade e a falibilidade humana. Um caso com uma subordinada envolvendo bebedeiras, que ele tentou esconder sem sucesso, deixou-o sem alternativa a não ser renunciar à diretoria. Isso marcou o início do fim do seu primeiro casamento. Já em 1997, ele acabou em Baltimore, onde começou uma espiral de pobreza. Basicamente, abandonou os filhos, diz com arrependimento.
Participou de festanças. Dirigiu bêbado. Envolveu-se com as mulheres erradas nos lugares errados. E houve a crise que se seguiu a um longo episódio de mania, conforme os sinais do seu transtorno bipolar se tornavam difíceis de ignorar. Ele se tornou violento e ameaçador. Um dia, tentou se matar.
Hoje, Bill diz que o período é confuso, uma névoa de mudanças de humor, drogas e álcool. Mas ele tem clareza quanto a um fato: levado pelo ego e seus impulsos, ele se tornou um mau marido e um pai ausente. Estava ferido por dentro, e feria os demais à sua volta.
A capacidade para o suicídio é fomentada pelo convívio com a dor e a violência, dizem acadêmicos e clínicos, sendo facilitada pelo conhecimento técnico de como usar armas letais. Pesquisas mostram que, em média, os homens desenvolvem mais capacidade para o suicídio do que as mulheres porque isso é incluído na sua socialização. E ainda que as mulheres sejam mais propensas a tentar o suicídio, ao menos nos EUA, entre os homens a probabilidade de morrer de suicídio é maior, pois eles costumam escolher formas mais letais, como armas de fogo ao invés de remédios.
O medo de não fazer parte e de se tornar um fardo são preocupações mais centrais nos casos de suicídio entre homens, de acordo com importantes especialistas no assunto, e os desafios de saúde mental podem intensificar tais fatores. Os homens costumam ser mais resistentes à busca de ajuda com a própria saúde mental do que as mulheres, de acordo com os especialistas, pois emoções diferentes da raiva são consideradas por eles como femininas.
Em 2000, depois da sua tentativa de suicídio, Bill se mudou para Buffalo para viver com a mãe e o pai, a pedido deles. “Trinta e sete anos nas costas, e morando com os pais”, diz ele agora, lamentando.
A reconstrução da sua vida passou por antidepressivos e estabilizadores de comportamento. Foi necessário ir à terapia. Ele conseguiu um emprego em um restaurante local ligado a um motel, o Stagecoach Inn, onde trabalhou em troca da estadia. Foi onde conheceu Denise, mãe de Jeremiah. Bill diz que foi nesse momento que sua vida recomeçou.
Se a ideia que ele tinha de “ser um homem de verdade” foi destruída, foi a partir dos seus destroços que ele conseguiu reconstruir uma versão mais saudável de si.
Ele enxerga sua história como um caso de redenção, que só foi possível por ter sobrevivido à tentativa de suicídio. Passou a acreditar que pode usar os pedaços quebrados de si para ajudar os outros. / TRADUÇÃO DE AUGUSTO CALIL
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