quinta-feira, 12 de maio de 2022

O Homem do Norte - filme

 'O Homem do Norte' se perde entre os urros de um viking meritocrata

Novo filme de Robert Eggers faz banho de sangue com tintas de 'Hamlet', mas diálogos ruins não ajudam jornada de vingança

Inácio Araujo, 11/05/2022

A primeira questão que suscitam os filmes de mitologia contemporâneos diz respeito à sua cor. A tonalidade geral varia entre o bronze e o chumbo. As variações privilegiam uma gama que vai do marrom ao amarelo. O azul é raro e o vermelho quase inexiste.

Não é um detalhe. Em "O Homem do Norte", novo filme do diretor Robert Eggers, de "A Bruxa" e "O Farol", o sangue jorra abundante. Cabeças são cortadas, barrigas são abertas, mas nem assim o vermelho aparece. Estamos em território viking. Ali, um rei guerreiro é traído pelo irmão —Fjölnir, "o bastardo". Amleth, o filho, de não mais de dez anos, jura vingar o pai e parte para o exílio.

Vale a pena aproveitar a sugestão shakespeariana do nome Amleth. De fato, existe algo de podre naquele reino nórdico. Talvez sejam os diálogos. Entre os vikings se fala de maneira solene, embora o essencial pareça ser a capacidade dessa gente de emitir urros. Eles urram para odiar, urram para lutar, urram para matar. Costumam urrar também quando matam um inimigo e bebem o seu sangue. O urro corresponde, no mais, às metáforas animalescas que representam. O rei morto é um corvo, cujo espírito aparece providencialmente de tempos em tempos para livrar a cara do filho. Amleth vestirá a pele de lobo em dado momento e ela terá repercussões no futuro.

Aos fatos. Depois de adulto e bombado, Amleth decide que é hora de preparar sua vingança. Descobre que Fjölnir foi deposto e se refugiou na Islândia, ainda mais ao norte, com família e corte. Ele se dispõe a ser escravizado para melhor se aproximar do tio que usurpou o seu trono.

Cada etapa de sua preparação é regada a sangue, claro, embora nem o sangue seja vermelho. No mais, algumas surpresas existem ao longo da trama, mas não chegam a transformar nada de significativo. A sede de vingança de Amleth permanece intacta e, para executar seu plano, conta com a ajuda de uma bela jovem, por quem se apaixonará e será mútuo e tal e coisa.

O intrigante em "O Homem do Norte" é saber a que corresponde essa vingança. A um juramento feito ao pai, sem dúvida. Mas, à parte isso, estamos diante de um herói sem outro tipo de substância. Seu desejo de vingança não tem transcendência. Ele não pretende, por exemplo, fazer o bem a populações maltratadas. Não importa a mínima liberar os homens e mulheres escravizados. Ele o fará apenas na medida em que isso convenha a seus planos. Muito menos deseja instaurar justiça.

O Homem do Norte – Trailer Oficial #1

Por que luta, afinal, Amleth? Ele é o homem que precisa superar as adversidades para se afirmar no mundo. Ele precisa vencer, eis o essencial. Transposto para nossos dias, esse homem seria um empreendedor, o sujeito que luta para não naufragar num mundo hostil e precisa (ou deseja) demonstrar, a si mesmo, o seu valor.

Amleth é, afinal, um meritocrata, um príncipe destituído que deve demonstrar o valor da monarquia —ou melhor, a virtude de seu sangue. Por isso se preocupa com o prosseguimento de sua linhagem, e com efeito a sua amada Olga terá filhos gêmeos — que poderão dar sequência à saga de Amleth, caso o filme emplaque e se transforme numa franquia.

À inacreditável platitude do roteiro corresponde uma encenação que se dedica, basicamente, a gerenciar os urros e massacres que se organizam em torno do neomonocromatismo que caracteriza o cinema comercial "de grande espetáculo" na era digital. Para resumir, "O Homem do Norte" são duas horas e tanto de intenso sofrimento.

"O Homem do Norte" confirma: Robert Eggers é um senhor cineasta 


'O Homem do Norte' pode desmontar fixação da direita pelos vikings

Filme traz cultura que lembra muito mais a dos indígenas do Brasil pré-colônia do que a do ideal supremacista europeu

Reinaldo José Lopes, 11 05 2022 - FSP

Narrativas de fantasia épica têm sido cada vez mais instrumentalizadas por extremistas de direita e supremacistas brancos nas últimas décadas. Aconteceu com "O Senhor dos Anéis" e está acontecendo com "O Homem do Norte", filme do americano Robert Eggers lançado agora que tenta recriar a atmosfera do mundo dos vikings, retratando a Islândia de mais de mil anos atrás.

Não é difícil entender por que a direita raivosa e racista gosta de se apropriar desse tipo de história. Para começar, as tramas e personagens se inspiram com frequência nas mitologias do norte da Europa —em geral as da Escandinávia, mas por vezes também as de povos celtas, como galeses e irlandeses—, retratando culturas supostamente puras e isentas de qualquer influência "não branca".

Seus personagens masculinos representariam um ideal descomplicado de coragem marcial e resistência indômita ao inimigo, sem dúvida um prato cheio para quem quer se matricular num clube de tiro. E as mulheres dessas narrativas costumam exibir uma beleza padronizada e longos cabelos louros que reforçam o estereótipo de pureza europeia.

Ao menos alguns dos lunáticos que invadiram o Congresso americano logo depois da eleição de Joe Biden, em janeiro do ano passado, se veem representados nesses elementos, assim como os "tupinivikings" brasileiros que aderiram ao bolsonarismo –durante a campanha eleitoral de 2018, por exemplo, surgiram memes comparando Jair Bolsonaro a Faramir, personagem heroico e abnegado de "O Senhor dos Anéis".

Para que tais histórias funcionem como simples roteiro ideológico desses grupos, porém, é necessário ignorar a complexidade e a ambiguidade presentes nelas. É nesse ponto que "O Homem do Norte" pode, ironicamente, funcionar como uma ferramenta para desmontar os contos de fadas supremacistas, porque o filme deixa claro que não havia nada de "europeu" nos guerreiros louros e cabeludos da era dos vikings.

A afirmação talvez pareça maluquice, mas é exatamente esse o resultado da pesquisa detalhada feita pela equipe de Eggers durante a produção do longa. O diretor contou com a ajuda de alguns dos principais arqueólogos que estudam a Escandinávia medieval, como o britânico Neil Price, da Universidade de Uppsala, na Suécia, para reconstruir o cotidiano e a maneira de pensar dos nórdicos do século 9º d.C.

O apego quase obsessivo a essas referências trouxe às telas uma cultura que lembra muito mais, digamos, os tupinambás que dominavam a costa brasileira em 1500 do que qualquer sociedade que classificaríamos como europeia hoje.

Com efeito, as estruturas tribais da Escandinávia dessa época, com seu apego aos códigos de vingança, sua religião fortemente influenciada pelo xamanismo —incluindo a crença de que certos guerreiros podiam se identificar espiritualmente com lobos, corvos e ursos— e sua anarquia política não poderiam estar mais distantes da suposta defesa da "cultura ocidental" feita pela extrema direita de hoje.

Isso para não falar, é claro, dos supostos "valores cristãos" dos ideólogos atuais. No filme, personagens cristãos só aparecem como escravos dos escandinavos, sendo acusados de adorar cadáveres torturados, uma maneira plausível de imaginar como um viking pagão enxergaria um crucifixo.

Em suma, o protagonista Amleth e os demais vikings de "O Homem do Norte" claramente não pensam em si mesmos como "ocidentais", "europeus" —e talvez nem mesmo como "brancos". Seu horizonte cultural é muito mais estreito, peculiar e difícil de conceber com a cabeça do século 21. E não deixa de ser irônico também o fato de que a amada do protagonista seja uma serva de origem eslava, enquanto boa parte das teorias racistas dos séculos 19 e 20 consideram os povos eslavos uma "raça inferior", atrasada e indigna de ser considerada 100% europeia. Hitler não curtiu isso.

Por fim, quem se sente tentado a ver no filme uma glorificação da violência viril precisa deixar de lado o fato de que a vingança implacável desencadeada por Amleth é essencialmente fratricida e autodestrutiva. É significativo que a extrema direita se reconheça nesse tipo de espelho.

The Northman OST | Original Motion Picture Soundtrack 


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