quarta-feira, 17 de setembro de 2025

Década de 1840: o proletariado converte-se em classe para si

 Os anos 1840...

(...) Trata-se do momento em que o mundo burguês se consolida, resultante de um processo multifacético - intersecção da economia, da história e da cultura. É possível sugerir as condições gerais desta consolidação evocando, mesmo que aleatoriamente, alguns dados que conformam o panorama dos anos 1840 [3].

A Inglaterra se oferece como o referencial das modificações que melhor explicitam aquele processo.

Entre 1800 e 1850, a sua população, praticamente, duplicou, com o movimento demográfico acompanhando-se por uma redistribuição espacial condicionada pela industrialização - se, em 1770, 40% da população vivia nos campos, em 1841 esta taxa cai para 26%. A urbanização acelerada e desenfreada encontra em Manchester o seu exemplo cabal: em 40 anos (1801/1841), a população da cidade em 13 vezes. O crescimento industrial responde por estas alterações. Um de seus índices é a produção de ferro fundido, que saltou de 193.000 t. em 1800, para 1.400.000 t. em 1840. Os números mais representativos, porém, nesta etapa da industrialização, referem-se à produção têxtil: somente as exportações para a América Espanhola registraram, entre 1820 e 1840, um aumento de 500% (1820: 56 milhões de jardas; 1840: 279 milhões de jardas). [correção: aumento de 400%].  Explica-se: se os teares mecânicos, em 2013, não passavam de 2.400, em 1850 eram mais de 224.000. Por outro lado, a mecanização incide sobre a estrutura da força de trabalho: dos 240.00 tecelões manuais de 1820, em 1844 só restavam 60.000; no mesmo período, os que operavam teares mecânicos variam de 10.000 para 150.000.  Não nos alonguemos desnecessariamente; mencionemos apenas que, na Inglaterra, os anos quarenta apresentam a maior taxa (relativa a aumento percentual por década) de crescimento industrial em todo o século XIX: 39,3%. Entre 1820 e 1845, o produto líquido industrial (em valor corrente) cresceu em cerca de 40% - mas sua folha de pagamentos não aumentou mais de 5%. É a contrapartida necessária deste padrão de industrialização: os salários reais começam a baixar a partir de 1815 e, entre 1811 e 1840, as taxas de mortalidade ascendem e a miséria das massas conhece uma progressão assustadora [4]. (...) 

... e o protesto operário

Mas a consolidação do mundo burgês é, ao mesmo tempo, a articulação de sua negação. As modificações assinaladas não são as únicas a enformar o novo modo de vida; elas se acompanharam, sempre e inevitavelmente e em todos lugares, do protesto operário - já no século XVIII espocam rebeliões cegas, centradas na destruição de máquinas (1758, Inglaterra; 1792 e 1794, Silésia)

O protesto operário descreve uma curva ascendente até os anos quarenta. Conquistada a legalidade da organização sindical na Inglaterra (1824), manifesta-se na ilha a tendência operária à associação: multiplicam-se as uniões, federações, etc., que serão catalisadas, entre 1838 (data da publicação da Carta do Povo) e meados da década seguinte, pelo movimento cartista, cuja experiência constitui o primeiro legado para os futuros partidos políticos operários. 

No continente, em troca, respira-se, desde o Congresso de Viena (1815) a era de Metternich : repressão e censura. É isto o que, acrescido à defasagem dos ritmos de crescimento industrial na ilha e no continente, explica o baixo nível de organização do protesto operário. A única exceção é a França, especialmente Paris, onde eram mais ou menos amplos, comparativamente, os espaços para a tematização política [5].  Mas o controle rigoroso da movimentação operária, [6] somado à tradição jacobina, dão ao protesto operário francês - cuja combatividade demonstrara-se tanto em julho de 1830 quanto, especialmente, nas revoltas de 1831 e 1834 -, contudo, a configuração conspirativa: o veio carbonário permanece, as "sociedades secretas" se generalizam e tenta-se o golpismo (1839). Na Alemanha, a repressão mais brutal reduz o protesto operário a níveis mínimos (a organização se efetivará, realmente, no exílio), mas não consegue impedir a eclosão de choques violentos (Silésia, 1844).

A ambiência ídeo-política destes anos expressa com fidelidade a evolução do protesto operário na sua curva ascendente - basta evocar a larguíssima bibliografia que acompanha as formulações típicas do que ulteriormente se denominou "socialismo utópico". Na década de quarenta, todavia, o protesto operário, sobretudo no continente, sofreu profunda inflexão. A consolidação do novo modo de vida do mundo burguês põe à luz do dia a dilaceração medular deste mundo: inseparável acólito da burguesia, o proletariado, ao fim da primeira etapa da revolução industrial, já não se opõe simplesmente a ela, mas articula um projeto societário que implica a sua supressão. Numa palavra: consolidado o mundo burguês, o proletariado converte-se em classe para si. Esta é a profunda inflexão testemunhada pelos anos quarenta: esgotado o padrão industrial da pimeira fase da revolução industrial e definida a dominação de classe da burguesia, o proletariado se insere na prática política como um agente autônomo - eis o que, a nível histórico-universal, se verifica em 1948 (e que, documental e programaticamente, se registra no Manifesto Comunista). (...)

Referências

* Introdução de José Paulo Netto ao livro Miséria da filosofia de Karl Marx, Editora Ciências Humanas, 1982

[3] Fontes: Huberman, L.: História da riqueza do homem, Rio de Janeiro, 1976; Hobsbawn, E.J. A era das revoluções, 1789-1848, Rio de Janeiro, 1977 e Da revolução industrial inglesa ao imperialismo, Rio de Janeiro, 1978; Bottigelli, E.: A gênese do socialismo científico, Lisboa, 1971; Passos Guimarães, A.: A crise agrária, Rio de Janeiro, 1979.

[4] Uma clássica descrição das condições em que se operou este processo é oferecida por Engels, F.: A situação da classe trabalhadora na Inglaterra, a ser publicada por esta editora (Livraria Editora Ciências Humanas). Atualização: este livro foi publicado pela Boitempo em 2010. Ler aqui.

[5] Nos anos quarenta, Paris é o exílio privilegiado para os perseguidos políticos de todo o continente. Um dado: em 1843, 7% (cerca de 23.550) dos habitantes da capital francesa eram emigrados alemães.

[6] Controle cuja substância se encontra no Código Napoleônico, cujo caráter de classe é inequívoco: dedica ao trabalho oito parágrafos e, à propriedade, vária centenas.

Leituras complementares

Comuna de Paris - 1871 

IA e a Revolução Industrial   


Nenhum comentário:

Postar um comentário