domingo, 14 de setembro de 2025

Hermeto Pascoal, 1936-2025


Hermeto Pascoal se tornou universal ao fazer música com as sensações

Alagoano, morto aos 89, criou obras ligadas aos sentimentos

Artista não tocava bem só instrumentos, mas qualquer coisa

Lucas Brêda, fsp, 14.09.2025

Uma lenda da música brasileira, celebrado dentro e fora do país, Hermeto Pascoal morreu neste sábado (13), aos 89 anos. A causa da morte não foi revelada.

Conhecido como o bruxo dos sons, tanto pelo visual com barba e cabelos compridos quanto pelas habilidades fora do comum com os instrumentos, Hermeto marcou seu nome na história com uma abordagem jazzística para a música brasileira. Ele compunha e tocava a partir da improvisação, tendo como base os ritmos musicais feitos no Brasil, e foi até a morte um defensor ferrenho da espontaneidade como motor da criação artística.

Hermeto Pascoal fotos

Seu estilo único, razão do reconhecimento que recebeu por décadas ao redor do mundo, tornava difícil a missão de classificar sua música em gêneros pré-estabelecidos. Em lojas de discos, era mais fácil encontrar sua obra na sessão de jazz ou de música brasileira, mas para Hermeto sua arte poderia ser definida simplesmente como "música universal".


Mais do que a sonoridade de seus álbuns e faixas, a classificação resumia a maneira de o artista pensar e abordar a música. Ele não tocava bem apenas instrumentos, mas qualquer coisa —uma chaleira, uma garrafa, um tamanco, um serrote, um porco, plantas ou a própria barba. Em sua visão, havia música no barulho de insetos e do trânsito de São Paulo.


Isso não quer dizer que Hermeto gravava ruídos e sons estranhos e os chamava de música. O exotismo de seus experimentos com essas texturas sonoras inusuais eram chamarizes para o coração de sua expressão — as construções harmônicas intrincadas que impressionaram de Elis Regina a Miles Davis e serviram de munição para seus críticos.

Bruxo da música, Hermeto Pascoal chega aos 87 colecionando histórias inusitadas 

"Só pode dar pancada em instrumento quem sabe o que é dó maior", ele disse, em 2004, à revista Continente, de certa forma se defendendo da pecha de músico extravagante, que para muita gente o resumia à imagem de um maluco balbuciando sons em uma bacia cheia d'água.


Mas a verdade é que o próprio Hermeto não sabia dizer o que é um dó maior quando começou a batucar insetos no interior de Alagoas. Ele nasceu em 1936 em Olho d’Água, um entre dezenas de povoados que integram o município de Lagoa da Canoa. Até 1962, quando se emancipou, era um distrito de Arapiraca, a segunda maior cidade do segundo menor estado do Brasil.


Se hoje a maior parte da população de Lagoa da Canoa vive na zona rural, naquela época era mais ainda. Nascido albino e com dificuldade para enxergar, Hermeto passou a infância sem iluminação elétrica à noite e com dor nos olhos sob o sol forte no agreste nordestino. Só conseguia jogar futebol no fim de tarde, quando a luz era menos intensa.


Brincava com os sons da natureza e dizia que os animais eram seu público, mas também ouvia música no ofício de seu avô, ferreiro, e aprendeu o instrumento do pai —a sanfona. "Já nasci música, não fiz nada que não tivesse música", ele disse à Folha no ano passado. "Montar num cavalo e sair andando é música. Uma cor, um desenho num papel, tudo isso vale como música."


Nos últimos anos, vira e mexe circulou nas redes sociais um vídeo dele numa lagoa tocando flauta —e a própria água. Trata-se de um trecho exemplar de sua relação musical com a natureza, retirado do filme "Sinfonia do Alto Ribeira", de Ricardo Lua, de 1985.

Vejas fotos históricas do músico Hermeto Pascoal

Hermeto deixou Lagoa da Canoa nos anos 1950 para tentar a vida como artista em Recife, ao lado do irmão mais velho, José Neto. Começou a trabalhar como músico de rádio, aos 14 anos, substituindo outro gênio albino da música brasileira, Sivuca — que na época tinha 20, e com quem era frequentemente confundido pela semelhança física.


Dali em diante, Hermeto não parou. Rodou o Nordeste tocando em orquestras, rádios e eventos até se mudar para o Sudeste —primeiro para o Rio de Janeiro, em 1958, e depois para São Paulo, nos anos 1960. Integrou o Quarteto Novo, tocando flauta ao lado de Theo de Barros, Heraldo do Monte e Airto Moreira, com quem gravou o único disco do grupo em 1967.


Foi com Airto Moreira e sua mulher, Flora Purim, aliás, que ele foi aos Estados Unidos ainda no fim daquela década. Conheceu Miles Davis, de quem Airto era percussionista, e ganhou da lenda do jazz o apelido de "crazy albino".


A atração entre eles foi tanta que Davis chegou a gravar com Hermeto —e de Hermeto. Três das oito faixas de "Live - Evil", lançado em 1971, foram compostas pelo alagoano, ainda que no LP original todas elas tenham sido creditadas ao americano. As músicas são "Little Church", "Selim" e "Nem um Talvez". Hermeto, que só é citado como instrumentista, nunca reclamou da falta de créditos. Tratava o americano com um amigo a quem sempre admirou.

Miles Davis - Live Evil [HQ FULL ALBUM] 

Parcerias de Hermeto Pascoal em 70 anos de carreira

De volta ao Brasil, estabeleceu residência em Bangu, no Rio de Janeiro, com a mulher Ilza, que ele conhecera ainda em Recife. A casa do casal era conhecido ponto de encontro de músicos, abastecidos com a lendária feijoada da mulher de Hermeto. Ele dizia que ela cozinhava como ele tocava —espontaneamente, sem seguir receitas.


Até o ano passado, Hermeto nunca parou de gravar e tocar regularmente. Do jazz, emprestava a liberdade e o improviso, assim como as dinâmicas de intensidade —que cresciam ou diminuíam a partir da interação com os músicos. Mas os caminhos melódicos e as bases rítmicas sempre estiveram conectados com música brasileira, do baião à bossa nova.


Em "A Música Livre de Hermeto Pascoal", um de seus grandes álbuns, de 1973, https://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/2025/09/conheca-a-obra-de-hermeto-pascoal-morto-aos-89-anos-em-cinco-discos.shtml gravou suas versões de "Asa Branca" e "Carinhoso". Em "Lagoa da Canoa Município de Arapiraca", de 1984, relê o frevo de Pernambuco e Alagoas. Em "E Sua Visão Original do Forró", reforça a conexão com o baião.

Hermeto Pascoal site iutubi 

Hermeto Pascoal - Bebê 

Hermeto Pascoal - Missa dos Escravos (Slaves Mass) 

Hermeto Pascoal - zabumbê-bum-á - Pimenteira 

Hermeto Pascoal - Montreux (ao vivo em Montreux - 1979) 

Passeando pelo Jardim | Hermeto Pascoal & Grupo | Pra Você, Ilza (2024) 

O músico também nunca largou o hábito de tocar coisas. Em seu primeiro disco, de 1970, usou dezenas de garrafas afinadas com água. Em "Brincando de Corpo e Alma", de 2012, gravou partes do corpo —assovios, palmas e batimentos cardíacos, entre outros.


Mas talvez seu maior experimento tenha sido com animais. Ele primeiro tentou, sem sucesso, tocar um porco num show em plena ditadura militar.


Só conseguiu realizar a ideia nos Estados Unidos. Ele estava gravando o disco "Slave Masses", de 1977, quando descobriu uma família que criava o animal como um cachorro. Airto Moreira teve a missão de extrair os sons do bicho na gravação.


"A criança da família chorou achando que ia fazer alguma coisa, bater no porco", ele disse a este repórter no passado. "Aí falei para os pais que é música, seu porquinho vai fazer música. A criança ficou assistindo, da técnica, ao Airto mexendo com o porco como eu pedia para ele mexer. Eu digo, ‘mexe na orelha’, e tudo isso gravando. Tiramos som do porco todo. Foi uma sensação eterna —é até hoje."

O que vira som na mão de Hermeto Pascoal

Outra história famosa do bruxo tem a ver com Elis Regina. Há 45 anos, os dois protagonizaram uma performance memorável no Festival de Montreux, na Suíça. Depois do show com seu grupo, eles apresentaram juntos "Garota de Ipanema", "Asa Branca" e "Corcovado".


O alagoano martelou o piano com dissonâncias e caminhos melódicos nada óbvios, enquanto a cantora se virava para acompanhar. Até hoje se comenta que Hermeto estaria pregando uma peça em Elis. Mas ele a chamou de "cantora mais musical que acompanhei na vida", enquanto ela o descreveu como um deus numa entrevista da época.


Essa apresentação é um bom exemplo do apelo incomum de Hermeto — especialmente em cima do palco. Ele não costuma seguir roteiros, e quem tocava em sua banda tinha que se acostumar ao ritmo.


Seus shows poderiam durar horas a fio — só tinham hora para começar. Abundam também as histórias de que em várias apresentações Hermeto e sua banda simplesmente saíam tocando pelo meio da rua acompanhados pelo público. Até o fim da vida, o brasileiro foi atração em festivais espalhados pelo mundo.


Sua abordagem incomum da arte o pôs em rota de colisão com gigantes da nossa música. O famoso crítico José Ramos Tinhorão afirmou que suas canções eram originais, mas não chegavam a conclusão alguma.


Até mesmo Caetano Veloso chegou a ter embates com o bruxo — enquanto o baiano era partidário da música popular e admirador dos sons dos Estados Unidos, o alagoano via mais valor na produção tida como regional ou folclórica do Brasil.


Era um embate conceitual entre o popular e o erudito, a cultura brasileira pura e o hibridismo do tropicalismo. Ainda assim, é possível dizer que ambos, de alguma forma, se alimentaram desses dois mundos.


Em "Estrangeiro", Caetano cita na letra Hermeto, dizendo que o albino "não enxerga muito bem", em versos em que também fala de deficientes visuais — Ray Charles e Stevie Wonder. Em "Podres Poderes", também fala do alagoano no verso "será que apenas os Hermetismos Pascoais/ Os Toms, os Miltons, seus sons e seus dons geniais/ Nos salvam, nos salvarão dessas trevas/ E nada mais?".


Hermeto sempre foi tido como um artista de difícil compreensão — o que não chega a ser mentira. Mas sua abordagem da arte sempre esteve mais ligada a sentimentos e sensações do que a elaborações conceituais, sociais ou políticas.


Mais do que um compositor original e absolutamente inventivo, e um instrumentista de talento reconhecido mundo afora, Hermeto sempre foi um escultor da vida em estado bruto. Para ele, desde que chocou sua mãe ao tocar "Asa Branca" com ferrinhos do avô, ainda criança, a música sempre foi uma extensão da existência —e vice-versa.


Com seu jeitão matuto, adorava se gabar por ter ganhado o título de doutor honoris causa da Julliard, uma das mais importantes instituições de música dos Estados Unidos, em Nova York, em 2023. Mas Hermeto nunca coube em títulos. Como dizia da música que fez, foi universal.

Pra você, Ilza 

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