Continuação do post Os deuses malditos: o pacto entre nazismo e capitalismo (ler aqui )
Os Malditos de Visconti (I)
Roberto Acioli de Oliveira, 11 de mai. de 2010
“(...) O que sempre me interessou [foi a] análise de uma sociedade doente” Luchino Visconti
Os Podres Poderes da Família
O clã dos von Essenbeck é dono de um grande império siderúrgico na Alemanha durante os primeiros anos da ascensão de Hitler. Eram importantes demais para que o ditador ignorasse a importância deles na consolidação de seu próprio império. Sem a indústria do aço, muitos não se dão conta, pouco é possível fazer numa sociedade industrial. Não há indústria de bens de consumo que possa prescindir do aço, nem guerra que se possa fazer sem ele... Portanto, Hitler tinha que trazer os von Essenbeck para seu lado. Como foi o caso entre muitos alemães, nessa família existia simpatia pelas ideias de Hitler.
(imagem acima, Martin von Essenbeck, depois de passar alguns momentos escondido debaixo da mesa como uma menininha)
“Nunca os delitos privados foram tão possíveis, nos tempos modernos, como naquele período a que nos referimos (...)” Visconti (1)
Uma controversa alusão à família Krupp, reais imperadores do aço na Alemanha do mundo real já há séculos, subjaz aos von Essenbeck (imagem acima, Joachim von Essenbeck, assassinado no dia de seu aniversário por um complô que partiu de dentro da própria família; muito está em jogo para os negócios do clã Essenbeck agora que Hitler subiu ao poder na Alemanha e precisa das siderúrgicas para construir seu império). Acompanhamos seu cotidiano, suas disputas internas por dinheiro e poder sendo atropeladas pela sede de poder do Partido Nacional-Socialista de Adolf Hitler. Em Os Deuses Malditos (La Caduta Degli Dei, 1969), Luchino Visconti nos fornece uma descrição detalhada (2) do caráter das peças desse tabuleiro de xadrez: Frederich é o típico ambicioso com autopiedade. Destrói os outros, mas sentindo pena de si mesmo pelo que fez
Frederich Bruckman é inteligente, tem iniciativa e agressividade: um verdadeiro dirigente (imagem acima). Por conta disso, o patriarca lhe confia tarefas delicadas na gestão das usinas siderúrgicas Essenbeck. Frederich é ambicioso, pretende (e nisso não está sozinho) um dia chefiar a empresa. Seu ramo dentro da família não tinha prestígio, o que marcou sua infância com humilhações. Mas a ausência de preconceitos permitiu que Frederich fizesse carreira. É capaz de tudo, embora ainda tenha “freios morais” que o impedem de violar determinadas regras. Sofia von Essenbeck é sua noiva. Descende da aristocracia, mas, segundo a mentalidade dos prussianos e dos alemães do norte, é considerada uma meridional: quase uma “latina” – de fato, em suas veias também corre sangue italiano. É ainda mais ambiciosa que o marido, mas sem os freios morais dele. Socialmente, seu casamento não é conveniente, razão pela qual ela sempre o incentivou a progredir a qualquer custo – para que pudesse usufruir do poder da posição dela. No final, ela consegue casar-se com Frederich, apenas para logo em seguida suicidar-se com ele, por ordem de Martin. Joachim von Essenbeck é tio de Frederich, o velho é o grande patriarca da indústria familiar e a governa como se fosse um reino. Detém a maioria das ações, portanto toma decisões sem consultar os parentes. Está doente e ainda se ressente da morte de Thomas, seu único filho, na Primeira Guerra Mundial. Todos são obrigados a venerar sua memória, aliviando um sentimento de culpa que, muito eventualmente, se manifesta nessa família cuja riqueza é fruto das grandes encomendas bélicas.
O incesto será o começo do fim de Sofia, que será arrastada para o suicídio por Martin (e ela mesma); destino atroz da viúva do herói de guerra da família.
Martin é filho de Sofia, neto do velho Joachim e seu único descendente direto. A descrição da personalidade desse personagem feita por Visconti é bastante complexa e contraditória. Martin está para completar 21 anos, mas daria no mesmo se tivesse apenas 15 ou 85; pois se alternam nele uma infantilidade tediosa e maligna e uma senilidade inconstante e diabólica – e isso é o que o torna ao mesmo tempo indefeso e perigoso, exaltado e desencantado, divertido e cansativo. Com a morte do avô, herdará a maioria das ações. Mas todos têm a sensação de que ele delegará as tarefas do mundo dos homens a quem lhe permitir continuar em sua cômoda vida de ricaço sem responsabilidades reais – uma postura curiosa, quando sabemos que foi criado pelo avô, que sabia o que Martin herdaria um dia.
Joachim e Konstantin, dois irmãos. De um lado o empresário, calculista e objetivo, do outro um boçal útil prestes a ser fuzilado por Hitler. Ambos com grande sede de poder
Konstantin von Essenbeck é o irmão mais novo de Joachim (imagem acima, à esquerda). Gordo, glutão, bastante capaz como dirigente da indústria. Possui uma quota de ações equivalente a de Frederich, de quem é rival. Não tem um perfil de homem de ação ou político (que Frederich possui), mas é ligado a alguns chefes das SA, o que é conveniente para Joachim. É o pai de Gunther, por quem demonstra desgosto. Seu filho, ao contrário, não aspira privilégios ou poder dentro da empresa. Mantém laços estreitos de amizade com Herbert Thalmann, pertencente ao ramo inglês da família. Herbert vive na Inglaterra, só aparece nas reuniões familiares e não aprecia Hitler.
“Aschenbach produz palavras. Você produz canhões” Comentário de Sofia à Frederich, quando Aschenbach recusou um pedido dela para dar poder total ao marido na empresa. Seria muito poder concentrado em uma só pessoa, argumentou o nazista
Na mesma noite do aniversário do velho Joachim acontece o controverso incêndio no Parlamento alemão – culparam-se os adversários comunistas, mas sabemos que foi Hitler. Joachim anuncia que, por força das circunstâncias, é necessário que alguém com relações entre os nazistas assuma a fábrica. Herbert se altera e expõe toda a sua tese contra os nazistas. Durante a noite, os nazistas invadem a residência dos von Essenbeck em busca dele. Frederich corre para avisá-lo, mas impede-o de levar sua arma. Entrementes, Joachim é encontrado morto, encontram também a arma de Herbert. (imagem acima, Aschenbach, o nazista que sobreviverá a Konstantin)
O espetáculo dantesco das fogueiras de livros será assistido por Gunther
Aschenbach é um parente distante de Joachim, olha o mundo com ironia e desprezo, sempre chegando à conclusão de que o nazismo é o futuro da Alemanha e já estava inscrito no passado da pátria. Antes de a noite começar, já havia assegurado seu apoio a Frederich – Aschenbach já sabia que “os comunistas” iriam incendiar o Parlamento. Martin, já sendo pressionado por Konstantin, nomeia Frederich presidente empresa. Konstantin usou contra Martin o fato de saber sobre Lisa – uma menina que se matou depois que Martin exerceu seus impulsos pedófilos. Depois da morte de Konstantin na Noite das Longas Facas, Aschenbach esclarece a Martin que sabe sobre a menina também. Martin se desespera e Aschenbach utiliza isso em proveito próprio e do Partido Nazista. As palavras dele para Martin: “Acalme-se, eu não o trouxe aqui para chantageá-lo. Konstantin já tentou e isso não lhe trouxe nenhuma sorte. (...) Você, o filho de um herói, o verdadeiro herói, o único von Essenbeck… apenas porque uma judiazinha teve o mal gosto de se enforcar. Você não sabia? Judia. De acordo com a Nova Ordem, você nem cometeu um crime”.
“Nada é impossível nesse país” Sofia, referindo-se a Alemanha (Nazista?)
Konstantin percebe que a morte de Joachim foi tramada e se retira – como membro das SA, ele não terá muito mais tempo de vida. Antes de tudo acontecer, Herbert comentou com sua esposa que se Hitler não tivesse vindo da classe baixa, Joachim já teria aderido a sua política. Aschenbach confirma isso ao avisar Frederich, depois deste assumir a fábrica, que existe uma intranqüilidade entre os nazistas porque Joachim não chegou a contribuir com dinheiro – como já haviam feito os outros industriais. Visconti conclui a descrição da personalidade deste nazista de forma ameaçadora, afirmando que ele “sabe dar às suas palavras o obscuro fascínio da profecia”. (imagem acima, à esquerda, queima de livros incitada pelo biblioclasta Adolf Hitler; acima, à direita, Sofia tenta sem sucesso convencer Aschenbach a apoiar Frederich a tomar o poder nas empresas do velho Joachim; eles caminham dentro dos arquivos da Gestapo, a polícia secreta de Hitler)
Família, Alemanha e Decadência
“(...) Durante o nazismo, ocorreram massacres, assassinatos, tanto em massa quanto pessoais, que ficaram absolutamente impunes. Por isso, ambientei a história desta família, que devia ser a história dos industriais do aço, na Alemanha, quando do surgimento do nazismo (...)” (3)
Entre outros, Os Deuses Malditos foi um dos filmes dirigidos por Luchino Visconti que evidenciam sua fascinação pelo potencial dramático das famílias. O filme é parte da chamada Trilogia Alemã, incluindo Morte em Veneza (Morte a Venezia, 1971) e Ludwig (1972). Nos três filmes, Visconti examina as raízes do surgimento do Nacional Socialismo na Alemanha da República de Weimar através de seus desastrosos efeitos numa família aristocrática (1º filme); a decadência a partir da adaptação de obra homônima de Thomas Man (2º); e a psique de Ludwig II da Baviera, o “rei louco” e excêntrico patrono de Richard Wagner (3º) (4). O próprio Visconti define seu objetivo:
“Eu conto estas estórias sobre autodestruição e dissolução de famílias como se eu estivesse narrando um Réquiem... Tenho uma opinião elevada da ‘decadência’, assim como, por exemplo, Thomas Mann teve. Fui impregnado desse espírito: Mann foi um decadente de cultura alemã, eu, de formação italiana. O que sempre me interessou é a análise de uma sociedade doente” (5)
Stefano Roncoroni perguntou a Visconti por que não fez da Itália o cenário dessa história de “monstros”. O cineasta disse que certamente em muitos casos o fascismo foi também uma tragédia, mas que o nazismo havia sido muito mais trágico. O nazismo, afirmou Visconti, foi capaz de muito mais crueldades, certo tipo de criminalidade que o tornou muito mais significativo para o mundo inteiro. Já o fascismo, só teve influência na Itália e Albânia. O nazismo foi uma ópera, comparou Visconti, enquanto o fascismo foi uma opereta. O fascismo, concluiu, foi mais uma comédia do que uma tragédia (6). (imagem acima, Aschenbach assiste calmamente a mais uma discussão em família: dividir para conquistar)
Influências e Estereótipos Malditos
Incesto, pedofilia, intrigas, vinganças, comércio de armas, homossexualismo: a burguesia industrial alemã segundo Visconti (7)
Os Deuses Malditos com aquela família degenerada, e Morte em Veneza, com aquele homossexual, foram sucessos de bilheteria. Entretanto, receberam uma acolhida extremamente hostil na imprensa, que se baseou na noção equivocada de que a representação da decadência na tela era o sinônimo de uma sugestão para que continuasse. Embora a dissolução da família von Essenbeck na década de 30 em Os Deuses Malditos represente os Krupp, fabricantes de armas que na vida real se uniram a Adolf Hitler, Peter Bondanella sugeriu algumas fontes culturais e literárias da obra. O banquete da seqüência inicial remete ao capítulo de abertura de Buddenbrooks, de Thomas Mann. As complicadas relações entre Sofia, Martin e Frederich mostram a influência da Tragédia Grega, Macbeth, de Shakespeare e Wilhem Reich em sua hipótese da relação entre fascismo e homossexualidade. Crepúsculo dos Deuses (Götterdämmerung), o subtítulo do filme (fora do Brasil) aponta para atmosfera da ópera de Wagner.
De Luchino Visconti a Pier Paolo Pasolini, de Roberto Rossellini à Ettore Scola, a sexualidade foi problematizada nas telas italianas
Com a Trilogia Alemã, Visconti foi um dos responsáveis pela emergência do homossexualismo nas telas dos cinemas italianos. Pier Paolo Pasolini já o havia feito em 1968, com Teorema. Em 1970, Bertolucci apresentaria sua contribuição com O Conformista (Il Conformista, 1970). Entretanto, ao ligar os nazistas e o homossexualismo, Os Deuses Malditos estabeleceu um padrão freqüentemente repetido na década seguinte. De acordo como Bondanella, trata-se de uma conexão completamente gratuita, talvez encorajada pela pedofilia presente em Alemanha Ano Zero (Germania Anno Zero, direção Roberto Rossellini, 1948) ou ainda pelos escritos de Reich. Um padrão que foi quebrado por Ettore Scola com Um dia muito especial (Una Gionata Particolare, 1977), que apresenta um intelectual antifascista e homossexual.
Röhm, o homossexual e ganancioso chefe das SA, não via porque sua opção sexual poderia desqualificar seu trabalho
Para Visconti (ele próprio homossexual), esta opção sexual não incorpora apenas qualidades ruins (Os Deuses Malditos), mas também boas e artísticas (Morte em Veneza e Ludwig). Lembramos aqui das opiniões do cineasta alemão Rainer Werner Fassbinder (também homossexual), um contemporâneo de Visconti, para quem era um erro não criticar os homossexuais, tanto quanto seria apenas criticá-los. Fassbinder os via como pessoas normais, capazes do melhor e do pior – opinião que lhe valeu muitas críticas por parte dos grupos de direitos dos homossexuais.
Os Deuses Malditos consolidou a estética dos filmes com uniformes e cores do nazismo
Além disso, ressalta Bondanella, Os Deuses Malditos não deve ser entendido como uma análise sociológica ou psicológica séria da cultura alemã durante a República de Weimar. Algo que certamente, Bondanella enfatiza, não teria sido a intenção de Visconti. Seria mais correto, continua Bondanella, considerar a poderosa metáfora visual do filme para a natureza infernal da degradação moral nazista. A característica atormentada dessa sociedade surge imediatamente através do título do filme colocado sobre uma ardente explosão vermelha no alto-forno – certamente já apontando para aquilo que todos os guerreiros do século 20 precisam para seus jogos mortais: ferro, aço. Cor infernal que constantemente volta às telas – na suástica nazista, nos interiores com lareira, nas cenas de queima de livros, na cena de execução das tropas SA pela Gestapo e SS, ou ainda pelas tapeçarias que servem de pano de fundo para o macabro duplo suicídio no final do filme (8). (as quatro imagens acima mostram Martin fantasiado de Marlene Dietrich, numa apresentação durante o aniversário de seu avô Joachim, que se mostrou irritado; é curioso perceber que enquanto Ernst Röhm, o ambicioso chefe das SA, era criticado por seu homossexualismo, Martin será aceito nas fileiras de Hitler; talvez não seja um acaso que uniformes militares constituam uma espécie de fetiche entre algumas mulheres e alguns homossexuais)
Freud Explica
“Não me parece que exista nada de freudiano no filme, com exceção da relação entre mãe e filho”. Visconti
A cena do incesto entre Martin e sua mãe representa o último passo dele para conquistar o direito de ser um verdadeiro nazista. Com estas palavras Visconti justifica a cena. Primeiro, o nazismo havia escolhido Konstantin como vítima (violento, falastrão, brutal). Em seguida, o nazismo se serve de Frederich, um técnico com um grande defeito (a pretensão de querer raciocinar com a própria mente). Restou Martin, absolutamente inconsciente, um degenerado, um verme, sem os freios morais de Frederich, tornando-se um instrumento sem vontade própria nas mãos dos nazistas.
Sua mãe, que jogou todas as fichas em Frederich, deseducou Martin, a quem ao mesmo tempo ama e odeia. Desde sempre, Martin planeja vingar-se dela. Depois de ser possuída por ele, explica Visconti, a mãe se entrega a uma regressão freudiana. Vai em busca de livros e brinquedos, sapatos e fotografias do pequeno Martin. Ela encontra cadernos com desenhos do filho, especialmente aquele onde está escrito: Martin mata a mãe (imagem acima). Com um traço de criança, vemos Martin com uma faca na mão e uma mulher ensanguentada (9).
Notas:
1. VISCONTI, Luchino. Os Deuses Malditos. Tradução Joel Silveira. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira S.A., 1970. P. 31.
2. Idem, pp. 33-8.
3. Ibidem, p. 3.
4. BONDANELLA, Peter. Italian Cinema. From Neorealism to the Present. New York/London: Continuum, 3ª ed., 2008 [1983]. Pp. 199, 203.
5. Idem, p. 203.
6. VISCONTI, Luchino. Op. Cit., p. 5.
7. Idem, p. 31.
8. Ibidem, pp. 204-6.
9. Ibidem, pp. 18-9.
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Os Malditos de Visconti (II), 16 de mai. de 2010
R. W. Fassbinder e os ativistas do Baader- Meinhof diziam que a Alemanha do pós-guerra era uma continuação da Alemanha de Hitler
Visconti e Krupp: Um Tema Contemporâneo
Constantino surge no roteiro quando Visconti tem a idéia de inserir no filme o episódio da Noite das longas facas. Constantino era integrante das SA, o que justificaria sua presença durante o massacre. Frederick, que deseja a liderança da empresa, aproveita para eliminar Constantino, pois sabia que ele estaria lá na hora da chegada das tropas das SS. Constantino também era importante para Visconti criar o choque desse personagem com Herbert, possibilitando a escolha de Constantino para vice-presidente da empresa. O velho Joachim acredita que deveria colocar no posto um homem que estivesse nas graças ou nas mãos do Movimento Nacional-Socialista, em benefício dos interesses da empresa. Esta foi, lembra Visconti, uma daquelas típicas ações de Gustav Krupp von Bohlen, que só pensava nas vantagens para a empresa - as encomendas de canhões e armas. Caracterizando Joachim dessa maneira, Visconti pretendia chamar atenção para o modo de agir dos grandes industriais como Thyssen ou Krupp (1). (imagem acima, cena do massacre das SA de Röhm em plena orgia homossexual na Noite das Longas Facas)
Curioso como capitalistas quase sempre estão implicados em crimes contra a humanidade
Stefano Roncoroni polemiza com Visconti a respeito dos Krupp. Afinal, pergunta ao cineasta, os von Essenbeck de Os Deuses Malditos são os Krupp da vida real? Roncoroni cita inclusive um livro então recém lançado por William Manchester sobre os Krupp, The Arms of Krupp: 1587-1968, que seria o modelo para o roteiro do filme. Visconti negou, mas admitiu que o livro mostrasse muito bem os Krupp. A família do filme nada teria a ver com aquela, Visconti chega a dizer que os Krupp da vida real são mil vezes piores. Visconti se refere aos fatos históricos em torno da relação entre os Krupp e o nazismo: “refiro-me à responsabilidade moral, humana, política, social em relação à Europa, ao mundo, como fabricantes de canhões, exploradores de escravos judeus e de prisioneiros de guerra, como financiadores do Partido Nazista...” (2) Roncoroni insiste, pois o livro apareceu justamente quando Visconti trabalhava no roteiro de Os Deuses Malditos. Visconti chega a dizer que o Krupp a que Manchester e Roncoroni se referem não tinha nada de louco, mas era isso sim um industrial extraordinário que levou a empresa avante de maneira terrível.
Não é raro que governos e empresários ajam como as prostitutas e seus clientes
Por falar em “industriais extraordinários”, poderíamos citar o caso do italiano nascido na pequena nobreza do Piemonte – região ao norte da Itália; portanto, um pouco menos “meridional” em relação aos europeus do sul, que os alemães da nobreza desprezavam como inferiores -, Giovanni Agnelli, co-fundador (com um amigo da nobreza italiana) do império Fiat. Em 1914-15, às portas da I Grande Guerra, Agnelli não apóia a adesão da Itália ao conflito. O motivo, muito objetivo, era porque sua empresa tinha contratos com três dos países envolvidos – as marinhas da Grã-Bretanha e da Alemanha, além do exército Russo. “No entanto, uma vez que a entrada foi determinada, explorou a oportunidade financeira que se apresentava” (3). Portanto, não foi por falta de exemplo que Visconti optou pela postura “objetiva”, da classe empresarial e industrial alemã. (imagem acima, à direita, Frederich e um oficial nazista em frente a uma metralhadora produzida com o aço dos Krupp; acima, após a morte de Joachim, os nazistas são recebidos na siderúrgica;
Visconti nunca poderia admitir que usou o livro sobre os Krupp, a não ser que desejasse pagar direitos autorais!
Visconti também não viu relação entre a abordagem que seu filme faz do homossexualismo presente nas tropas das SA (ou, pelo menos, na cúpula) e o fato de que Manchester descreveu o caso do homossexual na família Krupp que havia montado um bacanal num castelo no sul da Itália. Descoberto, ele se suicidou. Segundo Visconti, se pudéssemos comparar Martin von Essenbeck com alguém da família Krupp, ele se assemelharia mais com o último deles (Visconti está respondendo Roncoroni em 1969), que não se ocupa de nada, que vive correndo o mundo em seu iate e que comparece ao Festival do Rio com Gina Lollobrigida (4). Com relação ao episódio entre Martin e a pequena Lisa, quando ele confessa ser o autor da sedução e a causa do suicídio da judia, tampouco Visconti teria se inspirado nalgum caso da família Krupp. Ele disse que neste caso se inspirou na confissão de Stavroguin, em Os Possessos, de Fiódor Dostoyevski (5).
Hitler e Röhm: A Noite das longas facas
“Jamais hostilize inimigos em potencial. Ataque-os somente quando puder ser destruídos” Adolf Hitler (6)
Em 1918, Ernst Röhm, então no comando do “exército secreto” chamado Reichswehr Negra (7), conhece Adolf Hitler e seu Partido dos Trabalhadores Alemães (Deutsche Arbeiterpartei, DAP) (8). Ficou impressionado com Hitler e ingressou no Partido. Além disso, Röhm conseguiu que o exército alemão financiasse o Partido e também fornecesse armas – os confrontos eram freqüentes nas ruas. O que viria a se transformar no maior exército regular do mundo foi organizado por Röhm e disfarçado sob o nome de “seção de ginástica e esportes” do Partido. Em seguida, o nome mudou para Destacamento de Choque (Sturmabteilung), conhecido pela abreviação: SA (9).
Para conquistar o exército, Hitler cortaria na própria carne: liquidou as SA que o haviam colocado no poder
Hitler, entretanto, não gostava de ver a milícia de “seu” Partido sob o comando do exército – que era o objetivo de Röhm. Hitler tentou sem sucesso aumentar seu controle sobre a SA ao designar como chefe o nazista convicto, brutal e morfinômano, Hermann Göring. Foi então que, em 1923, Hitler organizou um Corpo de Elite, leal unicamente a ele – mas ainda como parte das SA (10). Esta é a origem da Tropa de Proteção (Schutzstaffel) conhecida pela abreviação: SS (11). De acordo com Nikolai Tolstoy, Hitler e Röhm compartilhavam um traço psicológico em comum, ambos eram ressentidos. No caso de Hitler, nutria grande desprezo pelos oficiais graduados e de nome – isso talvez explique sua resistência em permitir o controle sobre “seu” Partido pelo exército, e sua resistência às opiniões dos oficiais sobre o as campanhas durante a II Guerra Mundial. O historiador Konrad Heiden afirmou que a falta de um diploma era uma ferida aberta. Em 1931, Hitler escreveu:
“Não fui criança nascida em berço de ouro, tampouco desfrutei de educação superior, mas formei-me na difícil escola da vida, da necessidade e da miséria. O mundo superficial jamais pergunta o que o homem aprendeu, e muito menos o que ele realmente sabe fazer – mas como regra, infelizmente, apenas corteja [aquele] que pode exibir certificados. O fato de haver eu aprendido mais do que muitos de nossos intelectuais jamais foi cogitado, mas sim o fato de não possuir certificado algum” (12)
“Esses senhores, esses condes e generais nada farão. Eu, sim. Somente eu” Adolf Hitler
Não obstante, Hitler sentia-se bem ao ver-se rodeado de brilhantes oficiais-generais e jovens da nobreza em reluzentes uniformes. Hitler via um contraste entre suas maneiras e sua elegância e o comportamento brutal dos companheiros das SA. Röhm também se ressentia de não ter recebido as “graças sociais”. Seus interesses se restringiam às questões militares, muito diferente do Ministro da Defesa da Alemanha, Werner von Blomberg. Homem culto, comandava um exército eficiente e moderno, não o bando de rufiões e arruaceiros de camisas pardas (o uniforme das SA) de Röhm. Como Hitler, ele também nutria profundo ódio pela oficialidade. Entretanto, ao contrário de Hitler, Röhm jamais mudou de atitude. Mas o grande problema para a oficialidade era seu homossexualismo. Segundo Tolstoy, sua depravação era notória. Comentando sobre o assunto, Röhm declarou,
“Esses hipócritas... O homossexualismo não constitui razão suficiente para afastar um líder capaz e honesto de qualquer posição, na medida em que seja discreto, pois maior ou menor anormalidade não é da conta de ninguém. Mas ao inferno com a pederastia. Faço o que quiser dentro de quatro paredes, como qualquer outro”. (...)
“Nada mais falso do que a chamada ética social. Declaro, solenemente, que me recuso a fazer parte desse grupo de ‘quadrados’ e não nutro ambições de tornar-me um deles. Não faço questão nenhuma de ser considerado homem de moral, pois aprendi, pela experiência, que a ‘moral’ desses ‘moralistas’ não é assim tão severa...” (13)
O fato de Röhm ser homossexual só facilitou sua eliminação quando ele perdeu a utilidade
O problema de Röhm, além da homofobia dos círculos militares talvez fosse o fato de que depois que a Alemanha perdeu a Grande Guerra (tendo ainda sofrido com a crise econômica mundial a partir de 1929), a vida ficou muito difícil e a prostituição se tornou endêmica (inclusive a prostituição homossexual). Sendo assim, toda essa degradação sexual, ainda que mais em busca de um prato de comida do que de prazer sexual, era vista como um câncer. Talvez não seja por acaso que Hitler, tornou o homossexualismo ilegal quando subiu ao poder em 1933. Muitos morreram em campos de concentração pelo crime de homossexualismo. Consta que a cor rosa que viria a caracterizar a homossexualidade popularizou-se a partir do triângulo rosa que os homossexuais eram obrigados a ostentar nos seus trapos dentro dos campos de concentração. Além disso, muito antes, no começo do século 20, Berlim era conhecida como a capital mundial da prostituição homossexual.
O homossexualismo latente era um incômodo para os que viam a sociedade alemã como uma raça de guerreiros nórdicos
Conclui então Tolstoy, dois ressentidos, mas que cresceram paralelamente em seus campos, Hitler e Röhm iriam se enfrentar. Se Hitler tinha que engolir Röhm porque a SA já contava com três milhões de homens, ele podia encontrar compensações para suas inseguranças e fraquezas, Röhm não. As tropas das SA, muito maiores do que as do exército deveriam se fundir com as deste, essa era a intenção de Röhm. Mas esse novo exército deveria seguir os princípios das SA, sob o comando de Röhm, naturalmente. Ele começa a pressionar Hitler, inclusive publicamente, pela ajuda prestada pelas SA para a vitória nazista no governo alemão. Quando fosse conveniente, Hitler poderia “descobrir” sobre a vida sexual de Röhm e repudiá-lo publicamente. Por enquanto, Hitler faz vista grossa aos que criticam o comportamento de Röhm. Figuras importantes do exército queixavam-se de Röhm e seu bando “de cafajestes”. O exército não tolerava a hipótese de que, tendo permitido a ascensão de Hitler ao poder em 1933, fossem neutralizados por arruaceiros.
Antes Hitler chamava os capitalistas alemães de entreguistas. Eleito, trabalhou de mãos dadas com eles
A situação insustentável de Röhm era a seguinte... Em primeiro lugar, na opinião dos generais, seria impossível criar um exército verdadeiro com a presença de Röhm. Em segundo lugar, as potencias ocidentais se preocuparam. Em terceiro lugar, as classes conservadoras preocupavam-se com o comportamento pouco civilizado dos soldados de Röhm: banqueiros, financistas e grandes industriais estavam descontentes. Antigamente, Hitler investira contra aqueles a quem chamava de “aliados do capital judaico”. Mas agora, no poder, Hitler mudou o discurso. Em 1933, Hitler comunicou a uma série de personalidades influentes que em breve uma ordem de ferro seria imposta ao país. Grandes industriais como Thyssen e Krupp ficaram encantados e deram um donativo de três milhões ao Partido Nazista. Daí por diante, resume Tolstoy, as grandes empresas financiaram Hitler.
Os arruaceiros que puseram Hitler no poder agora são pedras em suas botas
A falta de estabilidade no país fazia os lucros caírem, os camisas-pardas de Röhm e alguns outros nazistas não paravam de falar numa segunda revolução (a primeira fez a vida de Hitler), além de continuar seu habitual passatempo de surrar e assassinar rivais políticos, aterrorizar os judeus e interferir na Justiça. Invadiram escritórios, fábricas, expulsavam seus donos e assumiam as empresas. Hitler passou a deixar claro que agora o Partido Nacional-Socialista dos Trabalhadores Alemães passou a trabalhar de mãos dadas com o mundo dos grandes negócios. Em pouco tempo, Röhm e a cúpula das SA seriam destruídos - e os soldados foram incorporados ao exército. O episódio, que Visconti inseriu em Os Deuses Malditos, ficou conhecido como A Noite das Longas Facas. (acima, os homens das SA se divertem atirando numa imagem do Kaiser von Hindenburg, o único impeilho entre Hitler e o poder total)
Os resultados do expurgo foram tão bons que Stalin teria tirado daí a ideia de fazer seu próprio banho de sangue no exército vermelho
A Arte de Lucrar Com a Morte e Ficar Impune
Naquela Alemanha, a expectativa de vida dos trabalhadores-escravos era de 3 meses e meio
A caminho do aniversário do Barão Joachim, Friedrich e Aschenbach conversam a respeito da situação e das possibilidades de controle da empresa. Aschenbach assegura a Friedrich que nem todos os castelos de Joachim, ou todo o seu dinheiro e seus 10 mil escravos podem impedi-lo de tomar o controle, porque é Hitler quem o quer no poder. Quando Aschenbach se refere aos “10 mil escravos do Barão”, ele não está apenas se falando de trabalhadores braçais, ignorantes escravos de salários baixos. O trabalho escravo na Alemanha de Hitler não era uma questão apenas uma forma humilhar os judeus, todo mundo que fosse contra o Partido, e também os prisioneiros de guerra de todas as partes da Europa, foram amplamente utilizados como mão-de-obra. (imagens acima e abaixo, Aschenbach; última imagem do artigo, Martin faz a saudação nazista na direção de Frederich e Sofia, que, depois de casarem, foram induzidos ao suicídio por Martin)
O trabalho escravo é parte do cálculo racional capitalista. Apenas isso!
Após a ascensão de Hitler, Krupp e os barões da indústria alemã se beneficiaram de uma situação problemática. Guardadas as devidas proporções, toda essa situação de trabalho escravo, de acordo com Norbert Elias, não tinha nada de grotesco. Tratava-se de um cálculo racional, ao qual os nazistas tiveram de se render. Não era mais possível pura e simplesmente aniquilar as populações dos países conquistados, como se fez nas guerras do mundo pré-industrial. Embora Hitler desejasse simplesmente matar todo mundo, não havia população alemã suficiente para povoar os territórios conquistados, produzir o material bélico necessário, fazer a economia de tantos lugares funcionarem a seu favor. Os países que Hitler conquistou eram bastante industrializados, e a guerra moderna só pode acontecer entre países industrializados – daí a importância dos Krupp para o Reich. Nem mesmo a política de crescimento da natalidade, as bonificações para famílias numerosas, os aumentos de impostos para os homens solteiros e os estabelecimentos de procriação para “arianos racialmente puros”, foi capaz de gerar um excedente populacional suficiente para ocupar as regiões que os nazistas pretendiam colonizar (14).
De acordo com o Tribunal de Crimes de Guerra, os Krupp foram diretamente responsáveis pelo re-erguimento da força militar de Hitler. Documentos capturados em 1944 provam que o império Krupp chegou a usar mais de 103 prisioneiros de guerra mil em trabalho escravo. Mas Krupp não estava sozinho, em 1997 Hugo Boss (aquela marca de roupas) admitiu publicamente produzir os uniformes de todo o mundo nazista com o uso extensivo de trabalho escravo. E não para por aí, BMW, Volkswagen, Mercedes, Porsche, Siemens e até mesmo a norte-americana Ford fizeram uso extensivo de trabalho escravo (esta última, em suas fábricas na Alemanha). Henry Ford, anti-semita e fundador desta marca, foi até citado por Hitler em sua autobiografia (Minha Luta) como o único industrial norte-americano livre das garras dos judeus. A Opel, uma subsidiária da General Motors também usou trabalho escravo (a GM disse que cortou os laços com eles durante a guerra, mas pouca diferença faz, já que retornaram depois do conflito e se beneficiaram dos ganhos com trabalho escravo). Bayer, a indústria química, tinha uma fábrica com escravos dentro do próprio campo de extermínio de Auschwitz-Birkenau, onde manufaturava borracha sintética, combustível e Zyklon-B (o veneno usado nas tristemente famosas câmaras de gás). O trabalho forçado que ainda se descobre nas periferias do mundo atual (América Latina, África e Ásia), é considerado uma aberração medieval. Entretanto há não mais do que 60 anos atrás, na Alemanha de Hitler, era basicamente o alicerce da locomotiva industrial que nutria a guerra! Portanto, pode-se dizer que não há nada para ensinar aos alemães sobre este assunto! (mais alguns dados aqui)
“Tudo deve mudar para que tudo fique como está”
Príncipe Falconeri, personagem do romance O Leopardo. Escrito por G. T. Lampedusa, fala da decadência da aristocracia siciliana durante o Risorgimento (unificação italiana)
Notas:
1. VISCONTI, Luchino. Os Deuses Malditos. Tradução Joel Silveira. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1970. Pp. 17-8.
2. Idem, p. 21.
3. BOSWORTH, R. J. B. . Mussolini’s Italy. Life Under the Fascist Dictatorship, 1915-1945. London: Penguin, 2005. P. 18.
4. VISCONTI, Luchino. Op. Cit., p. 22.
5. Idem, p. 20.
6. Ibidem, p. 117.
7. Ligado ao exército alemão regular que, por força do Tratado de Versailles, havia sido drasticamente reduzido pelos vencedores da Grande Guerra – como se chamava a I Grande Guerra Mundial antes da II Guerra Mundial.
8. Precursor do Partido Nacional Socialista dos Trabalhadores Alemães (Nationalsozialistische Deutsche Arbeiterpartei, NSDAP).
9. TOLSTOY, Nikolai. A Noite das Longas Facas. Tradução Alcídio M. de Souza. Rio de Janeiro: Editora Renes, 1976. P. 21.
10. Idem, p. 85.
11. Ibidem, p. 24.
12. Ibidem, inclusive para a citação em seguida.
13. Ibidem, pp. 27-8.
14. ELIAS, Norbert. Os Alemães. A Luta Pelo Poder e a Evolução do Habitus nos Séculos XIX e XX. Tradução Álvaro Cabral. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1997. Pp. 328-9.