quarta-feira, 17 de julho de 2024

Pílulas 20

Aristide Maillol e a mulher

Trabalho do escultor francês enaltece a sensualidade e a graça do corpo feminino

Betty Milan, 17/07/2024, fsp

O Mediterrâneo, Aristide Maillol

Aristide Maillol se deixou inspirar continuamente pela mulher para esculpir e expor os seus nus. Paris fez para a obra dele um lugar especial no Jardin des Tuileries. Perdi a conta do número de vezes que fui olhar as 19 estátuas que ali estão, graças à iniciativa de André Malraux, ministro da cultura do general De Gaule.

Salta aos olhos a sensualidade e a graça do corpo feminino. O espectador gira extasiado à volta das estátuas porque enxerga o que ele nunca viu. A escultura de Maillol não é, como era antes dele, a tradução de um ou outro pensamento — histórico, literário ou mitológico — mas a pura expressão da beleza, ela prenuncia a arte abstrata.

"As Três Ninfas", de Aristide Maillol, no Jardin des Tuileries, em Paris - Miguel Medina /AFP 

Rodin, então considerado o maior escultor da França, afirmou em 1902, que Maillol era tão grande quanto os maiores, "um gênio". Três anos depois, ele expôs no Salão do Outono, uma escultura monumental, O Mediterrâneo. A mulher sentada, inteiramente absorta nos seus pensamentos, que apoia o cotovelo no joelho e a cabeça na mão, arrebata quem olha. O tempo dela é o da eternidade, o do mar e da mãe. A escultura, primeiro feita em gesso e depois reproduzida em mármore, está hoje no Muséé d’Orsay.

Vale a pena ir a Paris, só para ver O Mediterrâneo e visitar o Musée d’Orsay, que abriga obras-primas da pintura e da escultura e possui a maior coleção de arte impressionista. Até porque foi em Paris que o impressionismo surgiu com o "clan dos revoltados", os que eram recusados no salão oficial e subverteram as convenções picturais. No clan estavam, entre outros, Renoir, Degas e Cézanne.

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Era uma vez na América

Diante da paixão por Trump, a dúvida é se, algum dia, os EUA que conhecíamos existiram de verdade 

 Ruy Castro, 17/07/2924, fsp

Diante das imagens que nos chegam de Milwaukee, nos EUA, dando Donald Trump como já vitorioso nas eleições americanas, parece que logo veremos o fim da maior democracia do mundo. Não, não é um alarmismo simplório. Elas estão me fazendo perguntar se, por todos esses séculos, convivemos mesmo com a maior democracia do mundo ou com uma ilusão fabricada pelos próprios americanos.

O que significavam aqueles filmes de julgamento, em que a razão sempre triunfava sobre o obscurantismo e a mentira? Vide o jurado feito por Henry Fonda em "Doze Homens e uma Sentença" (1957), o velho professor por James Stewart em "Festim Diabólico" (1948), o advogado por Spencer Tracy em "O Vento Será Tua Herança" (1960) e muitos outros. Eram homens adultos, justos, lúcidos —pode-se imaginá-los em Milwaukee de chapéu de vaqueiro e apito na boca? Eram ficção ou tinham correspondentes na vida real?

Duke Ellington e Cole Porter estariam em Milwaukee? E Billie Holiday e Judy Garland? Bette Davis, Lauren Bacall, Jane Fonda? Fred Astaire, Cary Grant, Humphrey Bogart? Edgar Allan Poe, Mark Twain, Dorothy Parker? Não sei a filiação política da maioria deles, nem importa. Eram pessoas que admirávamos não só pelo talento, mas pela sensação de inteireza que transpiravam. Sabemos que existiram. Mas seriam amostras reais dos EUA ou uma casta, talvez até fabricada?

A dúvida agora é se, algum dia, os próprios EUA existiram. Ou se os EUA reais não seriam aquilo que Nova York e Los Angeles chamam de F.O.T, "flying over territory", o território que só serve para se passar por cima, de avião. O que nós, brasileiros, sabemos da gente que vive nesse imenso F.O.T. e que, pelo visto, está em massa em Milwaukee, apaixonada por Trump?

Eu me pergunto também se muitos americanos não se estarão fazendo essa mesma pergunta e suspeitando de que, até agora, viviam numa América do era uma vez.

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Guru do vice de Trump defende um governo isolado e religioso

Cientista político Patrick Deneen é amigo de J.D. Vance, herdeiro presumido do trumpismo 

Igor Gielow, 17/07/2024, fsp

A ascensão do senador republicano J.D. Vance ao posto de herdeiro presumido de Donald Trump, que o escolheu para vice na chapa que disputará a eleição presidencial americana, coloca em evidência um arcabouço ideológico no qual desponta como estrela Patrick Deneen.

O cientista político da Universidade de Notre Dame (South Bend, EUA) é um dos gurus conservadores mais associados a Vance. São amigos pessoais, no ano passado participaram de um evento em Washington no qual Deneen foi louvado pelo político, e o acadêmico chamou a escolha do senador de "fantástica" no X.

Patrick Deneen (esq.), o hoje vice de Trump J.D. Vance (centro) e o acadêmico Chad Pecknold durante jantar em 2023 - PatrickDeneen no X 

Pensador católico, Deneen não é um terraplanista qualquer, da estirpe à qual o mundo se acostumou a ver em torno de líderes populistas surgidos na esteira do trumpismo, como o húngaro Viktor Orbán ou o brasileiro Jair Bolsonaro (PL).

Ele emergiu como referência do campo conservador em 2018, quando lançou "Por que o liberalismo fracassou", livro no qual destilava contradições intrínsecas ao sistema ideológico dominante no Ocidente, sobre o qual os EUA foram fundados em 1776.

@Patrick Deneen 

Foi considerado uma das obras obrigatórias daquele ano por Barack Obama pelas provocações intelectuais e pelo diagnóstico sobre os motivos da desilusão da classe trabalhadora americana que viu seus empregos e seus valores se esvaírem —um motivo para Trump ter chegado ao poder em 2017.

O ex-presidente democrata, antecessor do republicano, ressaltou não concordar com as conclusões de Deneen. De modo geral, o cientista político pede uma volta ostensiva a um sistema tradicional calcado na religião e o isolamento em comunidades, o chamado localismo, em oposição ao que vê como balbúrdia infértil da globalização.

Tal receituário era temperado por tiradas machistas bem ao gosto dos populistas, sugerindo que a inserção feminina no mercado de trabalho foi prejudicial às mulheres, que estavam melhor no lar. Já a crítica às pautas identitárias pode ser vista como presciente, dadas as discussões em ambientes acadêmicos americanos.

Seja como for, Deneen caiu no gosto de figuras como Marco Rubio, figurão do Partido Republicano, e não só: em 2019, o escritor foi convidado pelo premiê húngaro Viktor Orbán, o prócer da dita "democracia iliberal" na Europa, para lhe explicar suas ideias.

Este é um outro ponto importante de contato com Vance e Trump: o agora vice na chapa republicana é um admirador aberto de Orbán, particularmente da forma com que o húngaro tomou para si o controle do ensino superior em seu país, item zero das ditas guerras culturais.

Quiseram os deuses da política que Orbán, sempre próximo de Trump, estivesse neste semestre à frente da presidência rotativa da União Europeia, para enorme desagrado de seus pares, que desautorizam sua tentativa de mostrar-se um mediador para o fim da Guerra da Ucrânia.

O húngaro, assim como o rival de Joe Biden, tem simpatias não disfarçadas por Vladimir Putin, uma espécie de ícone dos populistas dos anos 2010, embora a realidade política russa e a trajetória do presidente sejam uma história à parte.

Desde que assumiu o posto temporário, Orbán esteve com Volodimir Zelenski, Putin, o chinês Xi Jinping e Trump. Concluiu que só o republicano poderá promover a paz na Europa, algo que os aliados de Kiev veem como acomodação análoga à promovida por Londres e Paris com Adolf Hitler antes da Segunda Guerra Mundial.

Alguns críticos apontaram que o trabalho de Deneen, lançado no Brasil pela Editora Âyiné em 2020, era frágil na prescrição de suas receitas. Ele tentou responder no ano passado como outro livro, "Mudança de Regime", no qual apresentou uma lista convencional de medidas para impor sua revolução conservadora.

Entre ideias bastante aceitas, como abrir a caixa-preta de grandes empresas, sugeriu coisas há muito abandonadas como panaceia, como a volta do serviço militar e civil obrigatório. Na essência, sugeriu que não era preciso implodir o sistema, e sim substituir a elite por gente como ele e outros conservadores.

Sugeriu a validade de métodos de Nicolau Maquiavel (1469-1527) de uso da turba, mas rejeitou em entrevista o site Politico a invasão do Capitólio em 2021. Novamente, há a pregação pela cristalização de uma classe dominante conservadora e religiosa, e a promoção de valores espirituais, que encontram eco na onda populista renovada na Europa.

De quebra, é um discurso que se encaixa ao momento da campanha de Trump, na qual o atentado do sábado passado (13) o cobriu com uma aura de mártir político entre seus apoiadores. Pesquisa entre eleitores republicanos feita pela Reuters/Ipsos mostra que 65% deles atribuem sua sobrevivência a uma intervenção divina.

O livro falou para convertidos, sendo visto por alguns observadores como simplista. Já outros, como Zack Beauchamp, apontaram para o que veem como uma crença real de tomada de poder.

Por óbvio, é preciso ter cautela com a hipótese de que tais ideias estarão necessariamente na ordem prática do dia de um governo Trump-Vance. Populistas do mundo todo são ávidos em se livrar em alguma medida de seus supostos gurus uma vez no poder, como Steve Bannon viu no início do governo Trump e o falecido Olavo de Carvalho, ao longo dos anos Bolsonaro.

Isso dito, o ideário de Deneen conversa com outros roteiros à disposição dos republicanos, como o Projeto 2025, bancado pela conservadora Fundação Heritage.

Como Vance já provou ao longo de sua curta carreira, na qual também foi celebrado como um observador da decadência americana e foi de crítico a vice de Trump, tal instrumental pode ser bem útil quando se escolhe pedaços dele ao sabor da conveniência política.

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Morre, aos 94 anos, a economista Maria da Conceição Tavares 

Referência no pensamento desenvolvimentista, a portuguesa de nascimento e brasileira de coração, deixa dois filhos, dois netos e um bisneto

O Globo, 08/06/2024 

A economista Maria da Conceição Tavares — Foto: Leo Pinheiro

A economista Maria da Conceição Tavares morreu neste sábado em Nova Friburgo aos 94 anos. Referência do pensamento desenvolvimentista no país, sem papas na língua, a portuguesa de nascimento e brasileira de coração, formou uma geração de economistas no país que têm decidido o destino econômico do Brasil nas últimas décadas. Ela deixa dois filhos, Laura e Bruno, dois netos, Ivan e Leon e o bisneto Théo. A família não divulgou a causa da morte.

A sua festa de 80 anos, em 2010, na Casa do Minho, exatamente em frente ao prédio onde morava no Cosme Velho, encheu o lugar de ex-governadores, ex-ministros da Fazenda, da Saúde e por aí vai. Dois candidatos à Presidência, Dilma Rousseff e José Serra, dividiram a mesa com a economista.

O respeito pelo conhecimento da mais provocativa economista brasileira se soma ao carisma da professora da Unicamp e da UFRJ, que conseguia hipnotizar uma plateia de jovens, entrantes na faculdade de Economia, por mais de uma hora, como na aula magna que lotou o auditório Pedro Calmon, no campus da UFRJ na Urca. Era 2009.

Nascida em 24 de abril de 1930, em plena Grande Depressão, temia aquele início de ano, quando o Brasil e o mundo viviam a recessão: “Nasci numa depressão e vou morrer noutra”, falou, para ser desmentida pela realidade. Em abril de 2018, estava de volta àquele mesmo palco para receber homenagem pelos seus 88 anos.

Em entrevista concedida ao GLOBO, um pouco antes, disse que estava pessimista com o Brasil e esperava que os jovens pudessem ajudar o país a sair da crise política e econômica.

—É difícil não ficar pessimista hoje no Brasil. Tem alguém otimista que você conheça? Nem eu. Essa geração de jovens que faça paralisações, mova-se. Tirando os jovens, estamos mal. Eu não gostaria nada de estar velha e pessimista, nada. É péssimo, queria uma velhice feliz, do jeito que está não estou tendo. O que me dá um certo alívio é que tem uma geração de jovens para entrar. O que está aí é um lixo.

Maria da Conceição Tavares chegou ao Brasil em 1954, três anos depois, tornou-se cidadã brasileira. Intensa, neutralidade nunca fez parte do seu vocabulário. Combateu ferozmente a política econômica do regime militar e os planos liberais dos governos de Fernando Henrique Cardoso.

Chorou em frente às câmeras de TV na defesa do Plano Cruzado, nos anos 1980, em um dos momentos mais marcantes daquela época de euforia que o congelamento dos preços trouxe ao povo brasileiro, a crença de que finalmente a inflação tinha sido vencida. A preservação dos ganhos dos trabalhadores foi a razão para essa defesa emocionada na frente das câmeras de televisão, contou ela 30 anos depois:

— Pela primeira vez se fazia um plano anti-inflacionário que não prejudicava o trabalhador. Isso é comovedor, todos os outros, como este agora também (referindo-se ao ajuste fiscal promovido em 2015), provocaram recessão, desemprego e queda de salários. Acompanhei o plano todo, até que capotou de maneira estrondosa.

Na homenagem à professora no seu aniversário de 80 anos, José Luís Fiori, da UFRJ, escreveu: "Poucos professores no mundo, ao chegar aos 80 anos, poderão assistir a uma eleição da importância da que ocorrerá no Brasil, em 2010, e saber que os dois principais candidatos foram seus alunos, e se consideram, até hoje, seus discípulos”.

Em nota, o presidente do BNDES, Aloízio Mercadante, citou a contribuição da professora "para a construção do BNDES, instituição na qual ela entrou concursada em 1958"

"Destaco também que Conceição ajudou na concepção e na implantação do Plano de Metas. Segundo Mercadante, o Brasil hoje perde "uma referência intelectual de integridade e de compromisso com o Brasil e com o povo brasileiro."

Prisão e exílio no Chile

Ela não passou incólume ao período da ditadura militar. Exilou-se no Chile, trabalhando na Comissão Econômica para América Latina e Caribe (Cepal), sendo a principal defensora e estudiosa do modelo nacional desenvolvimentista, com substituição de importações.

É obrigatório seu texto de 1972, “Auge e Declínio do Processo de Substituição de Importações no Brasil - Da Substituição de Importações ao Capitalismo Financeiro”, escrito quando estava no Chile. Foi criadora, junto com Mário Henrique Simonsen, Delfim Netto e João Paulo dos Reis Velloso da pós-graduação em economia no Brasil e do Instituto de Economia da Unicamp.

No período militar, chegou a ser presa sem saber muito bem o motivo. Era 1974, e ela passou 48 horas nos porões do DOI-Codi, no Rio. Os enviados do então presidente Ernesto Geisel demoraram a encontrá-la. Foi vítima de uma briga de poder no regime entre Geisel e os aparelhos de repressão.

O amigo Mario Henrique Simonsen foi quem a tirou da cadeia: “Foi desagradável, celas muito nojentas, geladas, pintadas de branco, um frio desgraçado. Não fui torturada nem nada, mas fui ameaçada. Pelo menos não sumiram comigo.” contava.

As discussões com o amigo Simonsen eram antológicas. Ambos lecionavam na Fundação Getulio Vargas. Só que Conceição assistia às aulas de Simonsen, e os alunos se deliciavam com as discussões:

— Mário era ortodoxo. Se tivesse inflação, valia tudo até desemprego. No fundo, defendia a política do regime (Simonsen foi ministro da Fazenda de 1974 a 1979). Então, no debate, não estávamos de acordo em nada (risos).

Em 2004, Aloízio Mercadante disse sobre a professora:

— Ela é uma referência obrigatória. Pode-se divergir, mas não há como não respeitá-la. Ela é a matriarca, e Celso Furtado, o patriarca, de uma geração. São pessoas que se dedicaram ao Brasil e se mantiveram íntegras.

Livros foram mais de uma dezena, ganhou o Prêmio jabuti de Economia em 1998.

Casou-se duas vezes. O primeiro casamento foi com o engenheiro português Pedro José Serra Soares com quem teve a filha Laura e o segundo com o professor de Ciências Biológicas da UFRJ, Antônio Carlos de Magalhães Macedo, pai de seu filho Bruno. Teve dois netos, Leon e Ivan.

Ela era vascaína e o futebol, nos últimos tempos, tomou mais tempo da economista do que a própria economia, como ela falou ao “Valor”, em 2012: “Se for para falar de tudo, prefiro futebol. Passei a gostar mais de futebol do que de economia. Felizmente, a imprensa do Rio parou de falar da crise no Flamengo. Antes da Olimpíada só dava saída do Ronaldinho Gaúcho, queda do Joel Santana, entrada do Dorival Júnior…”

Foi contra o Plano Real, não acreditava na época que desse certo e chegou a classificá-lo como algo “muito conservador e recessivo, um horror”. A crítica era o arrocho salarial embutido, diante do congelamento dos salários por um ano. Enganou-se, o plano deu certo e estabilizou os preços.

Conceição comprou brigas. Contra o Real e o achatamento salarial e até contra o primeiro governo do PT. Chegou a chamar de débeis mentais assessores do então ministro da Fazenda Antonio Palocci. Eles defendiam a focalização da política social. Conceição defendia a universalização como está na Constituição: saúde, assistência social e educação para todos.

“Não sou da área social e estou histérica. Temos políticas universais há mais de 30 anos. Somos o único país da América Latina que tem políticas universais. A focalização foi experimentada e empurrada pelo Banco Mundial na goela de todos os países e deu uma cagada. Não funciona nada”, disse a economista em 2003 à Folha de S.Paulo.

A amiga pessoal e vizinha, Hildete Pereira de Mello organizou livro sobre ela com os ensaios: “Conceição cientista e mulher política se confundem; ela rompeu todas as barreiras que ainda hoje relegam às mulheres tanto no cenário político como no científico do mundo atual, e que a jovem Conceição dos anos cinquenta enfrentou com tanta garra e destemor”, escreveu a amiga de mais de 40 anos.

Nos 88 anos da economista, o cineasta José Mariani lançou filme sobre ela. A película começa com a análise de Conceição sobre o livre pensar, que dá título ao documentário:

—O livre pensar, de todos os direitos, tem sido o mais recorrentemente violado, sempre provoca, desde a antiguidade, horror nas sociedades estabelecidas. Para ver como o idealismo, a razão é tão revolucionária.

Nele, ela fala de seu sonho que não se concretizou:

— Continuo querendo uma democracia multirracial nos trópicos, que era a tese de Darcy Ribeiro. Isso era realmente o que eu queria ver, mas por enquanto não tem.

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Encyclopaedia Britannica

Encyclopaedia Britannica exibida em estantes no ano de 2017 Foto: Tiago Queiroz/Estadão

Dei falta do meu exemplar da Encyclopaedia Britannica - boa notícia: em sebos, sai por até R$ 6

E viva o iluminismo escocês, sem o qual a Britannica não teria vindo ao mundo em Edimburgo, 256 anos atrás

Sérgio Augusto, O Estado, 02/06/2024

Semana de três dias não é bem uma semana, é um tríduo, em que, geralmente, nada de muito relevante costuma acontecer depois da quarta-feira, prevalecendo, pois, o salomônico “nihil novi sub sole” – ou “sub pluvia”, ao câmbio climático atual. Daí porque, irrelevando a tunda que Trump levou na quinta, retomo a conversa da semana passada, não mais para falar da Barsa, mas de sua matriz, a Encyclopaedia Britannica, cujos 32 volumes, com suas alinhadas lombadas grenás e letras douradas, faziam a maior vista na minha estante.

Consegui comprar a edição de 1968, já conformado com o fato de que jamais teria condições de adquirir a cobiçada edição de 1911, até hoje disputada por bibliófilos a peso de ouro. Façanha do jornalista londrino Hugh Chisholm, com uma divisão por assuntos diferente das anteriores, foi a primeira edição a oferecer um índice onomástico e a contar com uma equipe de especialistas do balacobaco: Whitehead explicando a matemática e Kropotkin o anarquismo, e por aí vai – ou melhor, foi.

Ao que dela tive acesso sem precisar ir a uma bem fornida biblioteca pública até nós chegou através de uma antologia maneiríssima, traduzida no Brasil no final do século passado: O Tesouro da Enciclopédia Britânica, editada por Clifton Fadiman. Uma primeira seção cobria a evolução de dez campos do conhecimento nos séculos 19 e 20, a outra continha 46 ensaios assinados por uma plêiade de sabichões entre 1815 e 1974.

Algumas preciosidades: o texto que sir Walter Scott escreveu sobre cavalaria para a edição de 1815, o mais antigo da coletânea; o de Freud sobre psicanálise; o de Einstein sobre a noção de tempo e espaço; o de Thomas Malthus sobre controle na natalidade; o de James Frazer sobre totemismo e tabu; o de Bertrand Russell sobre as consequências filosóficas da relatividade – e um abundante, etc.

O socialista Fabiano Bernard Shaw sumarizou a evolução das ideias socialistas; o réprobo comunista Trotski embolsou U$ 106 para fazer um perfil de Lenin; o prolífico romancista inglês Anthony Burgess precisou de 22 páginas para dissertar sobre o romance, mesmo espaço que o escritor e jornalista húngaro Arthur Koestler gastou para refletir sobre o riso. E que título Koestler deu ao seu ensaio! Uma Contração de 15 Músculos Faciais.

Noves fora os verbetes, bem mais curtos, igualmente encomendados a experts comprovados como Cecil B. De Mille (cinema), Lee Strasberg (interpretação) e George Jean Nathan (teatro norte-americano).

Dia desses, dei pela falta do meu exemplar, cujo destino permanece ignorado. O que alinhavei acima extraí de anotações feitas na época de seu lançamento pela Nova Fronteira. A boa notícia é que esse tesouro enciclopédico ainda é facilmente encontrado em sebos por até R$ 6. Isto mesmo: seis reais.

E viva o iluminismo escocês, sem o qual a Britannica não teria vindo ao mundo em Edimburgo, 256 anos atrás.

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A enciclopédia é o mais bem-acabado subproduto do iluminismo

‘Barsa’ foi lançada às vésperas do golpe de 1964, que em nada afetou seu sucesso: a tiragem inicial (45 mil coleções) logo se esgotou

Por Sérgio Augusto, O Estado, 26/05/2024

Antes das trevas, veio a luz. Às vésperas do golpe de 64, foi lançada no Brasil a Enciclopédia Barsa, a primeira do gênero totalmente produzida aqui.

Não sei se o Clube Militar festejou, mesmo intramuros e sem alarido, a quartelada de 60 anos atrás; mas hoje, apesar do atraso, faço questão de brindar a chegada ao Bananão, naquele março fatídico, do mais bem-acabado subproduto do Iluminismo: a enciclopédia, o Livro dos livros, o pai, não dos burros, pois a estes já atendem os dicionários, mas o tutor dos ignorantes e curiosos.

A ideia foi de uma empresária americana, naturalizada brasileira e casada com um diplomata do Itamaraty. Dorita Barrett era filha do editor executivo da Encyclopaedia Britannica no Brasil. Para coordenar o ambicioso projeto, Barrett convidou o lexicógrafo Antonio Houaiss, que, na década seguinte, cuidaria de outra empreitada bancada por ela, a enciclopédia Mirador.

Houaiss montou uma equipe de 257 colaboradores, com o máximo de estrelas da intelectualidade nativa dispostas e disponíveis na época. Sérgio Buarque de Holanda incumbiu-se do verbete sobre São Paulo (não o santo, claro), Jorge Amado escreveu sobre o cacau, Gilberto Freyre sobre o Recife, etc., consoante o modelo britânico original, lançado em 1768 e depois mantido por seus novos donos norte-americanos (Sears Roebuck, 1920, Universidade de Chicago, 1943).

Comprar os 32 volumes da Britannica foi um de meus sonhos de consumo tornado realidade. Consultava-os sem parar. Para tanto, precisava tirar a bunda da cadeira e ir até a estante, mas que prazer o mergulho naquela suma gnosiológica me proporcionava! Com a internet e o Google, a bunda sossegou – mas, e o prazer que se perdeu?

Voltemos, contudo, à nossa sessentona Barsa. O historiador e crítico de cinema Alex Viany, a quem coube a curadoria dos textos sobre cinema, me convidou para dividir com ele alguns verbetes. Caiu-me nas mãos a história do cinema alemão, que eu tinha fresca na cabeça por obra de duas recentes mostras retrospectivas nas cinematecas do MoMa e do MAM. Fiquei mais prosa do que besta com a proposta, e não me saí mal. Custei a passar pelo crivo de Otto Maria Carpeaux, um dos consultores de Houaiss; Antonio Callado era o outro. Carpeaux cismou com a minha avaliação do imenso talento, consensualmente aceito, de Leni Riefenstahl, a cineasta oficial da Alemanha nazista.

O sábio Carpeaux foi um dos intelectuais mais inflexíveis com quem convivi, em redações e na vida. Sempre nos demos maravilhosamente bem, mas sua birra com a Alemanha pós-Weimar e o que em parte lá se produziu em matéria de cultura me surpreendeu algumas vezes. Não chegamos a discutir muito por causa de Leni Riefenstahl (1902 - 2003), mas só graças ao bom senso de Callado e Houaiss ela não foi banida da história do cinema alemão por mim resumida na enciclopédia.

O Golpe em nada afetou o sucesso da Barsa. Sua tiragem inicial (45 mil coleções) logo se esgotou.

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A gota

Na verdade, a principal razão para a Terra Internacional e a Frota Internacional decidirem enviar um ser humano até a sonda (Trissolaris - extraterrestres) não era para uma inspeção. Quando o mundo viu a sonda pela primeira vez, todos ficaram fascinados pelo exterior magnífico. A gota de mercúrio era lindíssima, uma forma extremamente simples, mas produzida com extraordinária maestria. Cada ponto de sua superfície parecia perfeitamente posicionado, e ela tinha um elegante dinamismo, como se cada instante gotejasse sem parar na noite cósmica, inspirando a sensação de que artistas humanos, mesmo se tentassem criar a forma mais lisa possível jamais conseguiriam chegar perto daquilo. A sonda transcendia toda e qualquer possibilidade. Nem na República de Platão havia uma forma tão perfeita: mais reta que a linha mais reta, mais circular que um círculo perfeito, um golfinho espelhado que saltava de um mar de sonhos, a cristalização de todo o amor do universo... Como a beleza sempre foi associada ao bem, se de fato havia alguma separação entre o bem e o mal no universo, aquele objeto só poderia pertencer ao lado do bem.

Assim, logo surgiu uma hipótese: o objeto talvez nem fosse uma sonda. Observações posteriores confirmaram essa hipótese, de certa forma. A princípio, as pessoas perceberam a superfície externa, o extraordinário acabamento liso que fazia com que a sonda fosse completamente reflexiva. A frota realizou um experimento no alvo com uma grande quantidade de equipamentos de monitoração: a superfície toda foi irradiada com ondas eletromagnéticas de alta frequência e comprimentos variados, e a refletância foi medida. Para espanto geral, descobriu-se que em todas as frequências, inclusive a luz visível, a reflexão era de praticamente cem por cento. Não se detectou nenhuma absorção, o que indicava que a sonda não era capaz de detectar nenhuma onda de alta frequência – ou, em termos leigos, que ela era cega. Um objeto cego devia trazer algum significado especial. A suposição mais razoável era que se tratava de um gesto de boa-fé de Trissolaris para com a humanidade, expresso pelo design não funcional e pela beleza da forma. Uma demonstração genuína do desejo de paz. 

Desse modo, a sonda recebeu um nome novo em homenagem à forma: “gota”. Tanto na Terra quanto em Trissolaris, a água era a origem da vida e um símbolo de paz.

A gota foi capturada por Mantis, uma nave não tripulada. 

Se a gota fosse uma sonda militar, sem dúvida teria se autodestruído ao cair nas mãos do inimigo. Ora, como a destruição não havia acontecido, estava comprovado o que as pessoas sempre tinham imaginado: aquilo era um presente de Trissolaris para a humanidade, um símbolo de paz enviado pela misteriosa forma de expressão daquela civilização.

O mundo voltou a estourar de alegria. (...) A presença da frota combinada (Terra Internacional e a Frota Internacional) no espaço dera às massas uma expressão visual do poderio humano, e a Terra agora acalentava a confiança tranquila de que podia fazer frente a qualquer inimigo.

E se destruo, o que podes fazer?

E o enredo girou 180 graus. 

A gota era um presente de grego, um cavalo de Troia. Não era um símbolo de paz, era uma sonda militar dos Trissolaris. A gota ou uma gotícula de 3,5 metros de comprimento (um grão de areia no espaço cósmico) deu partida à hecatombe. Num período de 20 minutos destruiu mil belonaves das forças armadas da humanidade (metade da frota) com 1,2 milhão de pessoas em seus interiores. O ataque ocorria pelo tanque de combustível nuclear das belonaves. Trinta minutos depois, não restava uma belonave sequer na nuvem macabra que se formou no espaço. Quantum e a Era de Bronze se tornaram as únicas belonaves sobreviventes daquele cenário de destruição.

E se destruo, o que podes fazer?

Como a distância entre as naves havia aumentado, a gota acelerou e começou a avançar duas vezes mais rápido, a sessenta quilômetros por segundo. Com uma inteligência fria e calculista, seus ataques resolviam o problema praticamente de primeira e com perfeição, como um mensageiro que levasse a morte para regiões específicas quase sempre em viagem única. Com seus alvos estavam em movimento constante, a gota realizava uma infinidade de medições precisas e cálculos complexos, sem a menor dificuldade e com velocidade impressionante. Durante seu massacre extremamente calculado, ela às vezes se desviava para a margem do grupo de naves, a fim de eliminar as poucas mais periféricas e impedir a tendência da frota de escapar naquela direção.

Cixin Liu, A floresta sombria, tradução: Leonardo Alves, pp. 370 – 397, 1ª edição, Suma, 2012

A ver mais em A trilogia (ficção científica) de Cixin Liu 

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Tomates marcianos? Brasileira usa técnica maia para criar plantações em Marte

André Biernath, Da BBC News Brasil em Londres, 3 junho 2024

Rebeca Gonçalves fez um mestrado sobre agricultura espacial nos Países Baixos. Arquivo pessoal

A brasileira Rebeca Gonçalves lembra com saudades das histórias que ouvia de um tio astrônomo durante a infância.Para ela, saber os detalhes de planetas, constelações, astros e satélites sempre foi objeto de fascinação. Porém, alguns anos depois, quando chegou a hora de escolher a faculdade, ela optou por se especializar em outra área de interesse: a biologia. "À época, tinha a ideia errada de que o setor espacial só era para quem deseja virar astronauta", lembra ela.

Foi nessa hora que ela teve uma ideia: por que não unir as duas paixões? Foi assim que ela decidiu perseguir o sonho de virar uma astrobióloga. Para isso, Gonçalves encontrou um programa de mestrado sobre esse tema no Centro de Análise em Sistemas de Colheita da Universidade de Wageningen, localizado nos Países Baixos. "Decidi investigar como nós poderemos utilizar os recursos limitados, como água, nutrientes e energia, para cultivar alimentos em Marte", resume a pesquisadora. "Afinal, esse é um fator muito importante para a segurança das futuras colônias marcianas. Elas não poderão depender do envio de suprimentos por foguetes vindos da Terra", complementa ela.

Para fazer esse trabalho, a brasileira contou com a orientação do ecologista e exobiólogo Wieger Wamelink, professor na universidade neerlandesa e um dos poucos cientistas do mundo a estudar a viabilidade de estabelecer plantações fora do planeta Terra. "Para ter ideia de como a agricultura espacial é um campo novo, meu orientador é uma das primeiras pessoas no mundo a estudar o assunto e publicou uns seis artigos até o momento", conta ela.

Rebeca e o orientador do trabalho, Wieger Wamelink, numa das estufas da universidade. Arquivo pessoal

Inspiração que vem do passado

Mas como seria fazer uma plantação num lugar distante como Marte? Será possível que as espécies vegetais típicas do nosso planeta se desenvolvam num ambiente tão distinto?

Para responder a essas perguntas, a primeira fase do trabalho de Gonçalves consistiu em estudar diferentes técnicas agrícolas que poderiam garantir a sobrevivência das plantas — e eventualmente até aumentar a produtividade delas.

Foi nessa etapa que a cientista descobriu uma abordagem chamada policultura, socialização de culturas ou consorciação. "Essa é uma prática milenar que foi inventada pelos maias", explica ela. Vale lembrar que os maias formaram uma das mais importantes civilizações da Mesoamérica — região que engloba partes dos atuais México, Belize, Guatemala, Honduras e El Salvador. Esse povo antigo é conhecido pelo sistema de escrita bem avançado, além de ter conquistado avanços notáveis em áreas como matemática, arquitetura, arte e até astronomia.

Na agricultura, os maias se destacaram por fazer a consorciação — em resumo, eles cultivavam abóbora, feijão e milho, entre outros, num mesmo local. "A ideia é usar o mesmo espaço de terra para plantar espécies que apresentam qualidades complementares, para que uma ajude no desenvolvimento da outra", resume Gonçalves.

A brasileira considerou que a consorciação poderia ser uma boa ideia para Marte e logo ganhou o apoio e a empolgação de seu orientador. "A ideia era bastante inovadora, ninguém havia testado algo parecido no campo da agricultura espacial", conta ela. Começava, assim, uma nova fase da pesquisa: quais plantas incluir no estudo? "Passei quase três meses para selecionar as espécies ideais", confessa a pesquisadora.

No final, as escolhidas foram a cenoura, a ervilha e o tomate-cereja — cada um por uma razão específica. "As ervilhas, ou as leguminosas no geral, têm uma espécie de superpoder, que é fazer uma parceria com uma bactéria que vive no solo." "Juntas, elas transformam o nitrogênio em amônia no solo. É como se essas plantas produzissem seus próprios fertilizantes", ensina Gonçalves.

Já o tomate-cereja cresce como um pequeno arbusto, que tem uma função dupla: servir de apoio para os ramos das ervilhas crescerem e de meia-sombra para os pés de cenoura se desenvolverem perto do solo. Por fim, a cenoura foi selecionada por ter a capacidade de arejar a terra com suas pequenas raízes.

Tomates, cenouras e ervilhas foram as três culturas que a astrobióloga escolheu para fazer a pesquisa. Arquivo pessoal

A 'terra' de Marte

Mas um experimento desses só poderia ter alguma utilidade prática se usasse um solo parecido ao que os futuros exploradores encontrarão no planeta vermelho.

Para isso, Gonçalves contou com uma ajuda valiosa da Nasa, a agência espacial dos Estados Unidos. "Como já foram enviadas sondas e robôs para Marte, nós sabemos exatamente a composição física e química do solo deste planeta, que é chamado de regolito", explica Gonçalves. "Com essas informações,  parecida e é retirado de um vulcão no Havaí ou do deserto de Mojave, ambos nos EUA."

Esse composto é manipulado em laboratório para ficar 97% similar ao regolito marciano — ou seja, um solo que não possui nenhum nutriente ou matéria orgânica na composição. Com a técnica, as espécies e os materiais definidos, Gonçalves estava pronta para botar a mão na massa e ver como as plantas se desenvolveriam.

"E nós ficamos muito felizes com os resultados que obtivemos", antecipa a astrobióloga. O trabalho, que também contou com a contribuição dos cientistas Peter van der Putten e Jochem B. Evers, foi publicado no início de maio na publicação acadêmica Plos One.  "Conseguimos demonstrar que a técnica funciona muito bem para uma das três espécies analisadas", complementa ela.

Nas duas fichas comparativas, é possível ver a diferença dos tomates cultivados na consorciação (à esquerda) ou como monocultura (à direita) de acordo com o solo utilizado: areia (à esquerda), regolito marciano (centro) e solo orgânico (à direita). Arquivo Pessoal

Nas estufas da universidade, os tomateiros cultivados no regolito marciano com o sistema de consorciação produziram o dobro de frutos em comparação com as plantas da mesma espécie que cresceram sozinhas. "Os tomateiros da consorciação ainda se desenvolveram mais, tinham um tronco mais grosso e amadureceram mais cedo", diz Gonçalves. Para os pés de ervilha, o resultado da comparação terminou no empate: essas plantas se desenvolveram de forma similar se foram plantadas juntas de outras espécies ou sozinhas.

Já as cenouras preferiram a monocultura (ou seja, o cultivo separado, num espaço reservado apenas para esse vegetal). "O fato de que a consorciação funcionou para uma das espécies representa uma base incrível para a gente construir pesquisas futuras", analisa a cientista. "Agora a questão é fazer pequenos ajustes, como modificar os nutrientes ou escolher outras espécies para compor o sistema."

O regolito 'marciano' que foi usado na pesquisa, entremeado pelas raízes das plantas. Arquivo pessoal

Benefícios para os dois planetas

Gonçalves reforça que, embora a pesquisa tenha como foco as futuras expedições humanas a Marte, ela pode gerar repercussões positivas no planeta que habitamos hoje. "A Terra enfrenta um grande problema: cerca de 40% dos solos agrícolas foram degradados, em grande parte por causa da monocultura", estima ela. "Essa é uma questão que afeta 1,5 bilhão de pessoas ao redor do mundo e tem repercussões na segurança alimentar e financeira de muitas famílias, especialmente de pequenos produtores."

A astrobióloga destaca que as técnicas de consorciação — como a que foi utilizada na pesquisa dela — são uma estratégia com eficácia comprovada para fazer a regeneração do solo. "Esses sistemas só não são utilizados em larga escala porque ainda são um tanto caros e requerem mais manutenção quando comparados à monocultura", compara ela.

Já para as futuras colônias de seres humanos que vão para Marte, cultivar diversos alimentos em conjunto traz uma série de vantagens, a começar pela otimização de recursos — afinal, é possível usar uma porção de água ou fertilizantes num espaço menor. Além das barreiras logísticas que dificultam um envio de remessas de comida a partir da Terra, há também uma questão de saúde que justifica o desenvolvimento de um "agro do espaço".

Até o momento, os astronautas sobrevivem com comidas desidratadas — por não carregarem água, elas são muito mais leves, compactas e fáceis de transportar. "Só que esse processo de desidratação elimina todos os antioxidantes dos alimentos, como as vitaminas A e C, o betacaroteno e o licopeno, que são essenciais para a saúde humana", explica a astrobióloga. "Isso significa que, se quisermos colonizar a Lua ou Marte, seremos obrigados a plantar alimentos frescos, pois há certos nutrientes que só existem nessas fontes", reforça ela.

Gonçalves fez análises em laboratório para saber a composição dos vegetais obtivos após o cultivo. Arquivo pessoal

Para a cientista, a primeira geração de cultivares precisará contar com suprimentos externos, como nutrientes e fertilizantes vindos da Terra. "Mas, a partir da segunda geração, conseguiremos fazer um sistema autossustentável, em que usamos as partes não comestíveis das plantas, além de fezes e urina humana, para fazer adubo", antevê ela. Esse cenário futuro remete ao filme Perdido em Marte, lançado em 2015. Na trama, o astronauta Mark Watney (Matt Damon) se vê sozinho no planeta vermelho e precisa encontrar meios de sobreviver.

Numa das cenas, Watney cria uma plantação de batatas — e usa as próprias fezes para adubar o tubérculo no solo marciano. "É totalmente possível pensar numa possibilidade dessas, como mostrado no cinema. Aliás, esse filme teve um consultor científico que trabalhou na Nasa, então boa parte do roteiro está alinhado com as evidências", explica Gonçalves.

Na foto, é possível ver a diferença entre os tomates que foram cultivados no regolito com a técnica de consorciação (à esquerda) ou sozinhos (à direita). Arquivo pessoal

O Sistema Solar é logo ali

A cientista aponta que a exploração espacial vive uma nova era de ouro. O Programa Artemis, capitaneado pela Nasa, pretende "estabelecer as fundações para a exploração científica de longo prazo da Lua", com missões programadas para 2025, 2026 e 2028.

Em dois anos, a agência espacial pretende levar os primeiros astronautas ao Polo Sul de nosso satélite natural. Já para 2028, está programado o início da construção das bases de uma futura estação espacial lunar. "E, na próxima década, é muito provável que os primeiros seres humanos sejam enviados a Marte também", acredita Gonçalves. Diante desse futuro nem tão distante assim, a astrobióloga destaca a necessidade de avançar nas pesquisas sobre a agricultura no espaço.

Ela lembra que o Brasil é um dos signatários dos Acordos Artemis, uma série de tratados pela exploração pacífica da Lua, de Marte e de outros objetos astronômicos. "Nesses acordos, o Brasil se comprometeu como nação a fazer os estudos relacionados à agricultura, já que é referência mundial nessa área", informa a pesquisadora.

A Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa) e a Agência Espacial Brasileira, inclusive, criaram uma parceria para desenvolver pesquisas que garantam a segurança alimentar das futuras colônias lunares e marcianas.O Sistema Solar é logo ali

A cientista aponta que a exploração espacial vive uma nova era de ouro.

O Programa Artemis, capitaneado pela Nasa, pretende "estabelecer as fundações para a exploração científica de longo prazo da Lua", com missões programadas para 2025, 2026 e 2028.

Em dois anos, a agência espacial pretende levar os primeiros astronautas ao Polo Sul de nosso satélite natural. Já para 2028, está programado o início da construção das bases de uma futura estação espacial lunar. "E, na próxima década, é muito provável que os primeiros seres humanos sejam enviados a Marte também", acredita Gonçalves.

Diante desse futuro nem tão distante assim, a astrobióloga destaca a necessidade de avançar nas pesquisas sobre a agricultura no espaço.

Ela lembra que o Brasil é um dos signatários dos Acordos Artemis, uma série de tratados pela exploração pacífica da Lua, de Marte e de outros objetos astronômicos. "Nesses acordos, o Brasil se comprometeu como nação a fazer os estudos relacionados à agricultura, já que é referência mundial nessa área", informa a pesquisadora.

A Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa) e a Agência Espacial Brasileira, inclusive, criaram uma parceria para desenvolver pesquisas que garantam a segurança alimentar das futuras colônias lunares e marcianas.

As futuras instalações humanas na Lua e em Marte precisarão plantas os próprios alimentos. Arquivo pessoal

Enquanto traça os próximos passos da carreira e já se desfez de impressões antigas — como pensar que só astronautas poderiam trabalhar nesse universo —, a astrobióloga ressalta as oportunidades no setor espacial. "Não importa se você é designer, engenheiro, biólogo, químico, relações públicas, jornalista, diplomata... Sempre haverá oportunidades numa área tão ampla como essa", diz ela.

"E é importante lembrar que o setor espacial tem impactos diretos no nosso mundo: diversas tecnologias essenciais hoje surgiram a partir de pesquisas nessa área, como é o caso do GPS, do wi-fi, do telefone celular, das próteses e das roupas dos bombeiros", conclui ela. 

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Anitta no terreiro

A cantora tinha 65 milhões de seguidores, perdeu 200 mil (0,3%), mas, na ótica do terreiro, livrou-se de um encosto 

Muniz Sodré, FSP, 01/06/2024

No deserto moral do digitalismo, impera a lei dos números. Cem vale menos que mil, que vale menos que um milhão, independente da qualidade do fato. Uma mentira óbvia compartilhada por milhões parece verdade. Um político pode ter popularidade numérica positiva, embora com qualificações morais negativas. Isso vai de mídia e rede social ao cotidiano vivido.

Recente é o episódio da cantora, compositora e empresária Anitta, com refluxo de milhares de seguidores devido a um clipe em terreiro afro. Dissipando temores de doença grave, ela homenageou ritualmente, vestida de palha, a divindade da doença e da cura. A mesma, aliás, que inspirou a coreógrafa Deborah Colker no espetáculo "Cura". Forte a intolerância, mais forte foi a confirmação por Anitta de sua crença. Os números deram foco à notícia: tinha 65 milhões, perdeu 200 mil (0,3%). Na ótica do terreiro, entretanto, livrou-se de um encosto, ganhou.

Anitta grava clipe de 'Aceita', em terreiro de candomblé no Rio de Janeiro - Ricardo Brunini/Divulgação

Ao olhar ligeiro, a modernidade das redes seria incompatível com a tradição afro. Achille Mbembe pensa o contrário: "a África era digital antes do digital" (em "Animismo e Visceralidade"). Para o filósofo, nos mitos africanos se evidencia a centralidade dos fenômenos de migração e conexão, isto é, a criação de espaço por circulação e mobilidade, assim como plasticidade na organização social frente ao novo e ao inédito. A mesma da cognição e do cálculo. Mbembe: "O imaginário dos números, a organização em redes, as maneiras de recortar o real (...) todas essas estruturas fenomenológicas eram, ao contrário do que se acreditava, extremamente propícias à inovação".

Anitta aporta ao show business uma réplica desse paradigma. Corpo à frente, com a aura africana da Vênus Calipígia revestindo seu bundalelê cênico, conduzida pelo orixá Logunede, ela abriu espaço internacional. Um fenômeno de mobilidade: a partir do subúrbio humilde, digeriu inglês, espanhol, francês e as manhas do marketing para encarná-las em uma corporalidade móvel, transfronteiras. Não só voz, todo um corpo migrante, com mensagem de partida: "Prepara!"

Na arena do espetáculo, há fenômenos análogos, em que o corpo ocupa o fundamento do imaginário de uma comunidade percebida como núcleo vital, ao modo dos sistemas antigos de pensamento africano, em que as relações de energia eram somáticas. Hoje, corpos racializados (Anitta é um desses) reencontram na comunidade afro-litúrgica a potência subjetiva inscrita no tempo ancestral. Nenhum identitarismo, mas força vital, agora também impelida por algoritmos. Para além da lei autista do cálculo, o mundo digital pode ser apreendido, quem sabe, como teatro próprio, como mítico portal da vez.

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Lourenço Mutarelli

Sequelas é uma coletânea de histórias curtas criadas por Lourenço Mutarelli, um dos quadrinistas mais versáteis e influentes do Brasil. Além de apresentar seus primeiros trabalhos publicados em fanzines e revistas nas décadas de 1980 e 1990, esta edição reúne, pela primeira vez, as surreais aventuras do Pato-Camaleão e a série de tiras Ensaios Sobre a Bobeira.

Esta edição também traz Réquiem, história que narra o falso sequestro sofrido pelo autor no dia de seu aniversário, em 1988. O trote desencadeou uma crise depressiva crônica que transformaria completamente a vida de Mutarelli.

A edição tem acabamento de luxo, com capa dura, verniz localizado, lombada arredondada e 216 páginas, impressas em papel pólen de alta gramatura.

Sobre o Autor

Lourenço Mutarelli nasceu em 1964, em São Paulo. Publicou diversos álbuns de quadrinhos, entre eles Transubstanciação (1991), Desgraçados (1993), Eu Te Amo Lucimar (1994), A Confluência da Forquilha (1997) – reunidos em Capa Preta (2019) – e Diomedes: A Trilogia do Acidente (volume único publicado em 2012). Escreveu peças de teatro – reunidas em O Teatro de Sombras (2007) – e os livros de ficção O Cheiro do Ralo (2002, adaptado para o cinema em 2007), Jesus Kid (2004), O Natimorto (2004, adaptado para o cinema em 2008), A Arte de Produzir Efeito Sem Causa (2008), Miguel e os Demônios (2009), Nada me Faltará (2010), O Grifo de Abdera (2015), O Filho Mais Velho de Deus e/ou Livro IV (2018) e O Livro dos Mortos (2022).

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Morre Albert Ruddy, produtor de 'O Poderoso Chefão', aos 94 anos

O canadense é um dos nove produtores que já ganharam mais de um prêmio de melhor filme no Oscar 

Redação, FSP, 28/05/2024

Morreu no último sábado (25) o produtor Albert S. Ruddy, Albert S. Ruddy(1930-2024) aos 94 anos. Ruddy é um dos nove produtores que já ganharam mais de um Oscar de melhor filme, tendo vencido o prêmio com "O Poderoso Chefão", em 1973, e "Menina de Ouro", em 2005.

O produtor Albert Ruddy - imyourkid/Instagram

Ruddy estreou como produtor em 1965 com o filme "Vítima de um Pecado", de Brian G. Hutton. Ele foi responsável por outros filmes de baixo orçamento até chamar a atenção de Charles Bludhorn, então à frente da Paramount Pictures, que o convidou para produzir "O Poderoso Chefão", de Francis Ford Coppola.

Além das duas estatuetas no Oscar, o produtor também ganhou um Globo de Ouro de melhor comédia por "Golpe Baixo", de 2005, dois prêmios César e dois David di Donatello. Foi ainda reconhecido pelo conjunto de sua obra no Festival Internacional de Cinema de Xangai, e presidiu o júri do Festival de Cinema de Zurique em 2007.

Em 2022, Ruddy foi retratado na série "The Offer", que conta sobre a produção de "O Poderoso Chefão".

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Globalização Milton Santos - O mundo global visto do lado de cá

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Matheus Nachtergaele

Matheus Nachtergaele apresenta Desconscerto 

Adaptação do espetáculo "Processo de Conscerto do Desejo" para formato intimista, intitulada "Desconscerto", para o Teatro #EmCasaComSesc.

Poucas palavras se confundem tanto na língua portuguesa quanto "concerto" e "conserto". Aqui, elas se mesclam vertiginosamente. Na filosofia, muitas vezes o desejo é considerado como característica primeira do ser imperfeito, do ser finito. Com este espetáculo, Matheus Nachtergaele quer consertar o próprio desejo com poesia, num concerto.

O monólogo nasce de textos da poeta Maria Cecília Nachtergaele, mãe do ator, que faleceu quando ele era um bebê de três meses. Da mãe, restaram os poemas lindos e maduros, escritos de uma jovem mulher moderna e triste, e a veia que marca a testa do ator quando ri ou chora muito. Em "Desconscerto", ele dirá finalmente os poemas que guardou nos olhos e na alma como única herança dela. O espetáculo é simples assim: um homem diz no palco as palavras escritas por sua mãe. É só isso, se isso for pouco.

Matheus Nachtergaele é um ator e diretor brasileiro com intensa atuação no teatro, cinema e televisão. Iniciou sua carreira teatral com o cultuado diretor paulista Antunes Filho, em 1989. No ano seguinte, ingressou na Escola de Arte Dramática (USP-SP), e logo estreou nos palcos profissionalmente. Ao longo da carreira, atuou no Grupo Teatro de Vertigem, trabalhou com diretores como Bruno Barreto, Walter Salles Jr, Guel Arraes, Fernando Meirelles, Claudio Assis e Anna Muylaert, e foi vencedor de prêmios como Shell, Mambembe, APCA, Grande Prêmio do Cinema Brasileiro e Festival de Cinema de Gramado.

Ficha Técnica

Concepção e atuação: Matheus Nachtergaele

Textos: Maria Cecília Nachtergaele

Produção executiva: Valéria Luna

Diretora de Produção: Miriam Juvino

Realização: A Gente Se Fala/Pássaro da Noite

Matheus Nachtergaele | Persona | 18/10/2020 

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Máquina de costura wi- fi com serviço de assinatura busca atrair geração Z

Lançamento mundial da Singer borda e costura a partir de comandos e custa R$ 4.700, preço de celular de última geração; veja vídeo 

Daniele Madureira, FSP, 02/06/2024

Mais de um terço dos lares do Brasil (36%) têm uma máquina de costura. São 25 milhões de residências, sendo que em quase 80% delas o uso do equipamento é diário ou semanal. A maior presença das máquinas está no Sudeste do país: 46% dos lares da região têm uma. A maioria dos consumidores está na faixa dos 30 aos 39 anos (39%). Cerca de 40% usam o produto para geração de renda, mas a maioria (58%) utiliza a máquina para costurar roupas para a família, para os pets, para dar de presente e para personalizar as próprias peças.

Os dados pertencem a uma pesquisa feita pela multinacional americana SVP Worldwide no Brasil, dona das marcas Singer, Husqvarna Viking e Pfaff, de máquinas de costura. No Brasil, a SVP vende Pfaff e Singer –sob essa última marca que acontece o maior lançamento da multinacional nos últimos anos. Nesta segunda (3), a SVP apresenta a sua primeira máquina automática de bordado e costura com conexão wi-fi, como parte de um investimento global de US$ 100 milhões (R$ 515 milhões) previsto até 2029.

Portátil, como todas as máquinas da nova geração, o modelo SE9185 apresenta um tablet acoplado com tela de 7 polegadas, no qual é possível que o usuário dê os comandos para a máquina executá-los.

"Não é preciso saber costurar ou bordar para usar o novo modelo", disse à Folha a diretora de marketing e ecommerce da SVP Worldwide na América Latina, Concheta Feliciano, responsável pela operação no Brasil. "É por isso que nós acreditamos que a geração Z, que gosta de moda e, acima de tudo, faz questão de peças customizadas, vai se interessar pela novidade, até para empreender."

A estilista e influencer Clara Pasqualini, 29, que testou a nova máquina de costura wi-fi da Singer - Adriano Vizoni/Folhapress

No orçamento, a SE9185 vai concorrer com o preço de um celular de última geração: R$ 4.700. O modelo está disponível em lojas especializadas e no site da Singer, onde ocorrem 60% das vendas da marca. "Nós temos vídeos indicando como se precificar peças bordadas, que podem pagar o custo da máquina a partir de 60 dias de uso", diz Concheta.

Na sua memória, a máquina conta com uma espécie de banco de dados com 400 moldes, entre pontos e desenhos de bordado. Por meio de um aplicativo e um serviço de assinatura, o mySewnet, pago à parte, o usuário tem acesso a uma plataforma de milhares de projetos de costura e bordado. É uma espécie de "Netflix", ao custo de R$ 39,90 a R$ 89,90 ao mês, a depender da complexidade da matriz do bordado. "Com o mySewnet e o aplicativo, o usuário pode, por exemplo, tirar uma foto e transformá-la em bordado", diz Concheta.

Nem é preciso esforço para colocar a linha na agulha, que já entra automaticamente. O modelo também não necessita de pedal, como as antigas máquinas de costura: tem um botão de liga e desliga. Outro botão regula a velocidade do bordado.

Mercado brasileiro é estimado em R$ 500 milhões ao ano

A novidade da Singer vai concorrer com outras máquinas eletrônicas que também apresentam conexão wi-fi, como a da japonesa Brother. No mercado brasileiro de máquina de costuras domésticas, que a SVP estima em 350 mil unidades ao ano e R$ 500 milhões, também concorrem as marcas Elgin, Philco e Janome.

"Mas o diferencial da SE9185 é que é o primeiro modelo wi-fi que tem as funções de costura e bordado em uma mesma máquina. Antes, o consumidor tinha que comprar uma máquina para cada finalidade", diz ela. As fábricas da SVP, controlada hoje pelo fundo de investimentos Platinum, estão no Vietnã e na China. No Brasil, a fábrica da empresa em Indaiatuba (SP) é voltada à produção de agulhas.

De acordo com Concheta, o fato de o Brasil ter 25 milhões de máquinas de costura é expressivo. A pesquisa realizada pela SVP identificou que 78% delas são usadas diária ou semanalmente. "Houve um grande interesse por costura na pandemia, as pessoas começaram a fazer por hobby ou até por necessidade, dando início à fabricação de máscaras de proteção", diz a executiva. "Foi nesse momento que a costura e o bordado ganharam as redes sociais e a geração Z", afirma.

Como parte da campanha de lançamento, a SVP contratou influenciadores ligados ao mundo da moda, como o baiano Jonatas Verly, especialista em modelagem e costura, que vão divulgar o produto nas mídias sociais. "Nossa expectativa é vender 1.500 unidades no país até o fim do ano", diz Concheta.

"Não é preciso saber costurar ou bordar para usar o novo modelo", disse à Folha a diretora de marketing e ecommerce da SVP Worldwide na América Latina, Concheta Feliciano, responsável pela operação no Brasil. "É por isso que nós acreditamos que a geração Z, que gosta de moda e, acima de tudo, faz questão de peças customizadas, vai se interessar pela novidade, até para empreender."

A máquina de costura wfi vídeo

A SVP também convidou uma influenciadora que é estilista, a gaúcha Clara Pasqualini, dona da marca Fauve, para conhecer o novo modelo. O teste foi acompanhado pela Folha.

"O melhor dessa nova máquina é realmente reunir costura e bordado em um só equipamento", afirmou Clara, de 29 anos. "É muito prático", diz a estilista, que ganhou a primeira máquina de costura da avó, quando tinha 15 anos. Aos 19, começou a costurar camisas. Ter uma máquina própria de bordar é importante porque a terceirização desse serviço é cara, diz ela, e os testes são feitos a distância, o que de certa forma limita a criatividade.

Clara concorda com a ideia de que mais jovens da sua geração (os Z nasceram entre 1995 e 2010) querem customizar peças, muitas vezes recicladas. "As pessoas desejam ser representadas pelo que vestem, e o bordado é uma maneira de expressão", diz ela, que mora em São Paulo, onde cursa pós-graduação em gestão em negócios da moda.

Alfaiates destruíram 1ª máquina, com medo da concorrência

O interesse da SVP em se manter conectada com as novas tecnologias vai na contramão da época em que a máquina de costura surgiu. Consta que no início do século 19, em 1829, o alfaiate francês Barthelemy Thimmonier criou a primeira máquina de costura prática, aperfeiçoando invenções anteriores, com uma agulha de gancho que dava 200 pontos por minuto —muito acima dos 30 pontos em média que se conseguia manualmente.

Thimmonier abriu então a primeira indústria de roupas produzidas por máquinas, fabricando uniformes para o Exército. Mas, temendo perderem seu trabalho, artesãos e alfaiates promoveram uma revolução e colocaram fogo na fábrica e nas máquinas de costura.

Até que, nos Estados Unidos, em 1850, Isaac Singer aperfeiçoou iniciativas anteriores e criou a primeira máquina com pedal, para deixar as mãos livres e ajustar a velocidade da costura. Em 1851, patenteou o invento. Mais tarde, os alfaiates perceberam que a máquina poderia facilitar o seu trabalho, em vez de roubá-lo.

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A 'tecnologia' do filtro de barro que está ajudando a combater o calor extremo

Kamala Thiagarajan, Da BBC Future, 2 junho 2024

Durante séculos, os potes "matka" de barro ajudaram a manter a água fresca. Getty Images

Nandita Iyer odeia água gelada. E, no entanto, quando as temperaturas dispararam na Índia em maio deste ano, até mesmo na sua cidade natal, Bengaluru, atingindo um recorde, a autora do livro de receitas e blogueira de culinária sabia que precisava fazer algo para se manter hidratada. Foi então que ela recorreu a um dos seus acessórios favoritos na infância: o matka – um pote de barro composto por dois tipos diferentes de argila e projetado para funcionar como bebedouro em casa. “Tenho dentes sensíveis, então beber água refrigerada é um choque para o meu sistema; o matka mantém a água fria o suficiente para que bebê-la seja reconfortante”, diz ela, lembrando como um pano de musselina molhado em cima do pote ajudou a diminuir ainda mais a temperatura da água.

"Lembrei como essa água naturalmente gelada era agradável nos verões quentes de Mumbai quando eu era criança, então, quando o clima de Bengaluru começou a se comportar como o de Mumbai, decidi comprar um pote semelhante."

A matka tem raízes antigas. Quando a água enche o pote de barro, ela penetra em todos os poros e fendas. À medida que a água presa dentro desses poros evapora, o processo retira lentamente o calor latente da água interna. O pote esfria depois de perder o calor por evaporação e assim a água restante dentro dela também esfria. 

Durante séculos, portanto, as zonas rurais da Índia recorreram a potes de barro para as suas necessidades de arrefecimento – com os primeiros registos conhecidos a remontarem à civilização Harappa, há mais de 3.000 anos. No Brasil, os filtros de barro são uma tradição nas cozinhas, sendo usados até hoje para estocar água limpa e fresca.

Durante milênios, potes de barro conhecidos como “matkas” foram usados ​​para resfriar água na Índia. Nandita Iyer

Como alguém que cozinha muito e autora do livro Everyday Superfoods (“Superalimentos no dia a dia”, em tradução livre) Iyer diz que quase não há espaço em sua geladeira para resfriar várias garrafas de água, então sua matka acaba economizando um espaço precioso também.

Mas nos últimos anos, à medida que a Índia enfrenta um calor extremo, a necessidade de frio se torna mais urgente. As ondas de calor na Índia neste verão foram implacáveis, com uma estação meteorológica em Delhi registrando temperaturas de até 52,3°C, o que pode ser um recorde, se confirmada. De 2019 a 2023, a necessidade de ar condicionado em dias muito quentes fez com que a demanda média de energia do país aumentasse 28%.

Com soluções de refrigeração agora vitais para a sobrevivência, a antiga aplicação do barro está encontrando um novo uso muito além das cozinhas domésticas.

Vida nova para uma tecnologia antiga

Terracota significa "terra cozida" em italiano e teve destaque no mundo antigo, desde a cerâmica chinesa e grega até a arte egípcia. Em português, é o nome dado à argila cozida no forno. Em 2014, Monish Siripurapu, fundador e principal arquiteto da CoolAnt, parte do Ant Studios perto de Nova Delhi, se viu recorrendo a esse material antigo com novos olhos.

Um de seus clientes, um fabricante de eletrônicos, teve um problema. Um gerador a diesel nas suas instalações expelia tanto ar quente no espaço entre dois edifícios que o calor era insuportável para os funcionários, causando dores de cabeça e náuseas. Siripurapu queria ver se a terracota, combinada com novas técnicas, poderia ajudar: “Mantendo a natureza como foco central em todo o meu trabalho, quis explorar tecnologias emergentes”.

A ideia do matka passou pela cabeça de Siripurapu. "A água no pote de barro é naturalmente fria porque, quando evapora, suga o calor do pote. Mas e se eu invertesse esse processo? Me ocorreu que poderíamos resfriar o ar ao redor do barro da mesma maneira", ele diz. No projeto do Siripurapu, a água reciclada é bombeada sobre a terracota. À medida que a água evapora de dentro dos poros do barro, ela esfria o ar ao seu redor.

Chamado de Beehive, entre 800 e 900 cones de barro foram feitos à mão e organizados pela CoolAnt em um design de favos de mel, montado em torno de uma estrutura de aço inoxidável. “Empilhar os cones como uma colmeia melhora a área de superfície necessária para um resfriamento eficaz”, diz Siripurapu.

Desde a sua primeira instalação em colmeias, a empresa criou 35 torres de resfriamento em escolas, espaços públicos, aeroportos e edifícios comerciais em todo o país, de Pune a Jaipur. Além do desenho da colmeia, eles também experimentaram designs que empilham o barro em diferentes formatos, e até mesmo um que não utiliza água.

O design Beehive, da CoolAnt, é baseado nos princípios do resfriamento por evaporação e ventilação natural. Ant Studio

Os pesquisadores também fizeram experiências com protótipos de resfriamento de barro. Estudantes de engenharia mecânica de Maharashtra, na Índia, construíram um ar condicionado de barro, que usava um ventilador para sugar o ar e expulsá-lo sobre a argila molhada. Isso resultou em uma queda de 1,5°C na temperatura ambiente, relataram.

As empresas de arquitetura na Índia afirmam que as suas instalações em barro produziram quedas de temperatura muito mais significativas – acima dos 6ºC, e podem arrefecer espaços exteriores e edifícios inteiros de forma mais natural.

Por meio de vídeos enviados por clientes e visitas ao local, a CoolAnt afirma ter registrado uma queda de até 15°C, usando designs como o Beehive. “Foi muito melhor do que esperávamos”, diz Siripurapu. No entanto, essa queda na temperatura depende das temperaturas do bulbo úmido de uma área (uma medida do calor e da umidade na atmosfera).

Se já estiver muito úmido, não pode haver uma queda tão acentuada, porque o potencial de evaporação é menor, observa Siripurapu. (Pense no céu sobre uma cidade como uma esponja molhada – se já houver água demais, não é possível absorver mais água.) E, no entanto, mesmo uma queda de alguns graus na temperatura pode fazer uma diferença crucial.

Edifícios que respiram

O Ant Studio também está longe de ser a única empresa de arquitetura que utiliza o barro como solução de resfriamento. "Nos últimos 100 anos, as tecnologias modernas revolucionaram o nosso arrefecimento do ar. No entanto, tiveram um impacto negativo no nosso ambiente", afirma Avinash Ankalge, arquiteto e um dos co-fundadores do A Threshold, um escritório de arquitetura com sede em Bengaluru que tem experimentando argila reciclada para construir sistemas de refrigeração passivos para edifícios.

“Estamos recorrendo ao barro em muitos dos nossos projetos recentes”, diz Ankalge. "Nós usamos isso de muitas maneiras." Por exemplo, telhas recuperadas de uma fábrica próxima foram usadas para criar telas de terracota. Os designs são inspirados na natureza e envolvem os edifícios como uma pele protetora, diz ele.

Em um edifício comercial no sul de Bengaluru, um dos projetos do A Threshold para espécie de treliça de barro foi instalado no lado sul do edifício, para proteger do sol.

Argila reciclada de telhas antigas foi reaproveitada para fazer telas para edifícios. A Threshold/ Avinash Ankalge, Harshith Nayak

“Entre o meio dia e as três da tarde, quando o sol está mais intenso, a sombra do ladrilho superior é projetada sobre o fundo, garantindo que o brilho não penetre no edifício”, diz Ankalge. "Chamamos isso de princípio de sombreamento mútuo. Isso foi usado em muitas cidades indianas mais antigas no Rajastão - especialmente em Jaipur e Jaisalmer. Foi usado em casas, palácios, em todos os lugares - há quase 500 anos."

Em projetos modernos que utilizam este princípio, o edifício principal começa de 91 a 121 cm depois da tela de barro. Os ladrilhos estão dispostos como o bico aberto de um pássaro, o de cima projetando sombras profundas. Um sistema de sprinklers – como aqueles que são ativados em prédios em casos de incêndio, para jorrar água - suspenso, programado para funcionar nos horários mais quentes do dia, garante o resfriamento evaporativo.

"A terracota, sendo um material natural, é sempre dominada pela vegetação, o que tem um efeito refrescante adicional. Ela sustenta a vida e uma biodiversidade saudável. Ainda há muita luz fluindo dentro de casa, mas não calor", diz Ankalge. "Estamos criando um microclima dentro de uma casa – e moderando o calor extremo lá fora. É também uma tela acústica, porque corta o ruído externo e proporciona privacidade aos ocupantes.".

Em uma fazenda a 40 km de Bengaluru, o escritório A Threshold fez experiências com tijolos de barro como alternativa aos tijolos normais para resfriamento. São mais baratos e melhores para o meio ambiente, diz Ankalge. Os tijolos de terracota assam entre 600 e 700°C, metade das temperaturas necessárias para assar tijolos normais, e observaram uma queda de temperatura de 5-8°C dentro dos edifícios resultantes.

Insights artesanais

Na sua missão de refrescar os espaços, os escritórios de arquitetura também contam com a ajuda dos artesãos de argila indígenas da Índia.

Um deles é Dolan Kundu Mondal, que mora em Calcutá e cuja obra de arte em argila ganhou um prêmio nacional. Quando criança, Mondal passava os dias coletando argila na margem do rio para moldar pequenas bonecas, animais, pássaros e cabanas. A casa dela também foi construída com barro, mas sem nenhuma impermeabilização, então a cada temporal, a casa ficava completamente destruída. “Minha avó, minha irmã mais velha e eu cortávamos pedaços de palha para misturar no barro e reconstruíamos a casa para morarmos.”

Mondal diz que sempre sonhou em esculpir algo novo com argila e recentemente recebeu uma oferta para trabalhar em uma tela de terracota para uma casa. “Desde muito cedo sempre vivi no abraço do barro e do barro no meu abraço”, diz Mondal.

Os conhecimentos da premiada artista de argila, Dolon Kundu, estão servindo também para a produção das estruturas de resfriamento. MeMeraki

Soumen Maity, vice-presidente de alternativas de desenvolvimento, um think tank com sede em Gurugram, no norte da Índia, diz que é animador que as construções em barro proporcionem meios de subsistência aos artesãos rurais – mas existem algumas desvantagens.

As estruturas adicionais de argila nos edifícios – como telas e painéis – podem ocupar muito espaço em cidades já apertadas. Além disso, a eficiência do resfriamento pode diminuir com o tempo: os microporos do barro podem ficar obstruídos por depósitos minerais, tornando essenciais a limpeza e a manutenção meticulosa.

Se a argila for usada mais amplamente como material de construção e fabricada em escala nas fábricas, então também poderá haver outro custo oculto: mais energia necessária para o transporte, aponta Niyati Gupta, associado sênior em Nova Delhi do programa climático do think tank Instituto de Recursos Mundiais. “As telhas de barro industriais tendem a ser mais pesadas do que os tijolos de argila convencionais que os artesãos fabricam à mão, e consumirão solo fértil [que de outra forma poderia ser usado para a agricultura]”, diz Gupta. Ladrilhos de barro fabricados localmente e cozidos no local oferecem uma solução mais ecológica, mas à medida que as necessidades de resfriamento aumentam, a produção em escala industrial pode ser inevitável.

Para quem não tem planos de construção, armazenar água em uma simples matka continua a ser algo básico no verão da Índia – uma homenagem ao antigo costume.

Nandita Iyer menciona em seu livro Everyday Superfoods como potes de barro são usados ​​na culinária e que garrafas de barro de um litro com tampa agora também são usadas para armazenar água.

Para manter as garrafas de água de barro em boas condições, Iyer aconselha: “Esfregue bem [os utensílios de barro] a cada dois ou três dias com uma escova de coco e coloque-os ao ar livre, ao sol, para evitar que acumulem musgo”.

Esta reportagem foi publicada originalmente em inglês no site BBC Future.

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Dalton Trevisan

Diário com Dalton Trevisan 

O vampiro comeu bolo de fubá e falou de galinhas, Moro, crack e Otto Lara Resende

Mario Sergio Conti, FSP, 07/06/2024

15 de março de 2016

Marleth Silva marcou o encontro no Café do Paço, no centro de Curitiba, às quatro da tarde. Nossa intenção era pôr a conversa em dia e falar mal da vida alheia. Cheguei minutos atrasado e ela já olhava o relógio. Depois de ter combinado a conversa comigo, Dalton Trevisan a convidara para um café no mesmo horário. Para manter os dois compromissos, Marleth levou-me a tiracolo ao encontro com o escritor.

Era uma terça-feira de sol ameno e brisa fria. Para não deixá-lo esperando, andamos depressa por ruas cheias de gente atarefada. Entramos num botequim sem nada de turístico: chão e paredes de ladrilho, o dono atrás do balcão, três mesinhas mambembes. Numa delas, Dalton.

Magro e com o cabelo ralo, estava de camisa azul-claro de manga comprida, calça marrom de sarja, jaqueta e o boné sobre a mesa. Não aparenta 90, mas 70 anos. Abriu um baita sorriso, levantou-se, estendeu o braço e deu um aperto de mão firme.

O riso frequente e franco, a loquacidade e os olhos de um azul transparente contrastam com suas raras fotografias na imprensa – sempre sério, em preto e branco. É uma imagem equivocada. O vampiro de Curitiba é uma criatura solar. O jeito ameno de falar lembra o de Oscar Niemeyer. Baixa a voz e separa lentamente as sílabas no final dos raciocínios, para dar-lhes um arremate irônico, às vezes autodepreciativo.

Havia pedido café e uma fatia de bolo de fubá, que veio grande. Ele a dividira em quatro pedaços; comeu dois e reservou os outros para Marleth. Como ela não tocou neles até o fim do encontro de duas horas, disse de brincadeira: "A Marleth não gosta de falar de boca cheia". Contou que agora só escreve textos curtos, que chamou de "haikais", e empenha neles um tempo enorme. Lê o Tribuna, jornal sensacionalista que destaca o noticiário policial –"e aí fabulo".

Lera há dias que o cadáver de um executivo de Belo Horizonte fora encontrado num motel da periferia de Curitiba. Imaginou um conto no qual o personagem, casado e com filho, gostava de transar com garotos de programa. O mineiro vira o anúncio do michê na internet e viera a Curitiba para a esbórnia clandestina. O rapaz o matou e roubou-lhe o dinheiro.

Ilustração de Bruna Barros para coluna de Mario Sergio Conti de 7 de junho de 2024 - Bruna Barros/Folhapress

Ao que parece, o conto –ainda não terminado– traça sumariamente as pulsões de prazer e morte de gente solitária. Registra que o comércio dos corpos foi incrementado pela internet, bem como surtos de uma crueldade sádica. O mestre minimalista segue atento.

Viúvo, ainda mora na rua Ubaldino do Amaral, num casarão velho, dispendioso e cheio de goteiras: "Minha função é espalhar vasilhas e panelas quando chove, e a diarista recolhe depois".

Seus irmãos se mudaram para apartamentos, mas ele resiste. Marleth falou que, se quisesse, poderia ajudá-lo a procurar um apartamento. "Dá muito trabalho, o mais fácil seria morrer", disse, alegre.

"O prédio do Tezza é que é bom, tem só quatro andares", continuou, referindo-se ao edifício onde moram o escritor Cristóvão Tezza e o tradutor Caetano Galindo. Não seria bom se mudasse para o prédio, pois teria dois vizinhos literatos?

"Seria péssimo, porque eles só iriam falar de literatura e detesto conversar sobre o assunto", respondeu. No entanto, desde que começamos a papear, pelo telefone, nos anos 1980, a literatura é seu tema dominante. Ele não gosta é da vida literária.

Por exemplo: me contaram que sempre cumprimentava Galindo ao se cruzarem. O tradutor escreveu uma resenha elogiosa de um livro seu e Dalton passou a atravessar a rua quando o via vindo.

Não se vê como um ser inefável, artista. Escrever é um ofício, disse-me há décadas. Acha que seus livros importam mais do que ele, o mero homem que os redige.

Tem uma cachorrinha, uma bassê: "É uma alegria, uma excelente companhia. Quando volto para casa, late, late, late. Tenho de encaminhá-la, com broncas, para um quartinho. Ela vai na minha frente, resignada, de orelhas baixas; percebe que se excedeu. Ao contrário de outros exemplares de fêmeas, não guarda ressentimento".

A bassê é ótima, mas não é seu bicho preferido. "A melhor coisa do mundo é ter um galinheiro", disse. "Você pode comer aqueles ovos maravilhosos todos os dias; e, quando solta as galinhas, elas andam em fila indiana atrás de você."

O triste é que uma figura folclórica existe e está à espreita: o ladrão de galinhas. "Ele leva todas, deixa só uma, para que você continue a criá-las e ele volte para roubá-las de novo", contou. "Fechei meu galinheiro porque o custo afetivo era muito grande."

Falou demoradamente de Otto Lara Resende, que achava exemplar ao vivo, na troca de cartas e na literatura. O Otto de corpo presente, disse, era leve, arreliento, afetuoso, mulherengo. O por escrito, angustiado, católico, cheio de remorsos, encrencado. É um injustiçado: "O conto ‘Gato Gato Gato’ é uma obra-prima; e que título!".

Outro escritor de quem falou com admiração é J.D. Salinger. Aprecia suas frases enxutas; o uso da oralidade e da gíria; o frescor com que recria a adolescência.

Chegou um rapaz, corpulento e com a barba por fazer, e se sentou à mesa. Era o dono de uma loteca na vizinhança. É uma espécie de agente do escritor, que sempre proíbe a adaptação de seus contos para o teatro. Há pouco, Dalton baixara a guarda para uma atriz que o procurou pessoalmente. "Não deveria abrir exceção, mas como era uma jovem atriz, pronto, topei", disse, rindo de si mesmo.

Os produtores da tal peça espalhavam que Dalton estaria presente em determinadas noites, e o público aumentava. Soube que um espectador disse a uma senhora, na entrada, que ela não deveria ver o espetáculo: "é pornográfico". Dalton nunca assiste às adaptações. Mas escuta com atenção o que Marleth diz a respeito delas.

Gostou "à beça" de "Guerra Conjugal", a adaptação de alguns de seus contos para um filme, dos anos 1970, dirigido por Joaquim Pedro de Andrade. Esquecido, ele é de fato ótimo.

Apesar de não ir ao cinema, Dalton está por dentro dos últimos lançamentos. Só vê DVDs. Ou melhor, revê sempre os mesmos filmes. Venera o ator Ray Milland: "Ele tem a mesma expressão, a mesma máscara, repete os mesmos gestos e expressões nos filmes de caubói".

Chamou a atenção para a rua em que estávamos, acho que na zona, movimentada em plena tarde. "As putas são fellinianas", disse. Na calçada em frente estava uma delas, gordíssima, num collant agarradíssimo. "Ela não vai ficar dez minutos ali. Logo virá um freguês, irão ao motel da esquina e ela voltará em meia hora." Quando fomos conferir, pouco depois ela não estava mais lá.

Perguntei-lhe se havia um ponto de drogas por ali. "O crack é vendido faz bastante tempo", informou. O rapaz da loteca lhe passou em silêncio um envelopão pardo, que o contista pôs no bolso interno da jaqueta sem abrir. "Opa, é o crack do Dalton", proclamei, para seu gáudio.

Contei que almoçara horas antes com Sergio Moro, o chefe da Lava Jato. Dalton pediu detalhes duas vezes, que misturei com comentários, como o de que o juiz era um pavão. Disse que eu implicara com Moro por um motivo subconsciente: "Ele usa as camisas negras dos fascistas do Mussolini". Completou: "Torço para que toda essa agitação leve a algo".

A tarde caía quando nos despedimos na calçada. Fazia frio e pôs o boné. Recitei uma frase sua que sei de cor: "Que foi feito de mim, ó Senhor, morto que sobreviveu aos seus fantasmas, gemendo desolado por entre as ruínas de uma Curitiba perdida, para onde sumi, que sem-fins me levaram?".

Dalton Trevisan abriu pela última vez o sorrisão, tão bom de ver.

7 de junho de 2024

Marleth Silva, que foi editora-executiva da Gazeta do Povo, saiu do jornal antes que se tornasse uma latrina de extrema direita. Publica contos e comentários culturais no Plural, também de Curitiba. Nunca escreveu sobre Dalton.

Sergio Moro quis que o almoço em 2016 fosse em off. À noite, deu uma aula na Federal do Paraná sobre a presunção de inocência, à qual assisti com a sua anuência. No mesmo dia, armou a divulgação, ilegal e espalhafatosa, de um telefonema entre Lula e Dilma, impedindo que o ex-presidente fosse nomeado ministro.

Dalton Trevisan fará 99 anos na próxima sexta-feira, dia 14. Manda pelo correio seus novos escritos. Artesanais e de tiragens esquálidas, são pequenas brochuras onde agonizam marafonas, vadios, meganhas, noias e velhos sem dentadura; onde gaviões e rolinhas sobrevoam um labirinto de almas perdidas, Curitiba.

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Documentário 'Memórias de um Esclerosado' vence o Cine PE 2024

Por Luiz Zanin Oricchio, O Estado, 12/06/2024

RECIFE - Com o destaque dado aos longas documentais Memórias de Um Esclerosado e Invisível, o Cine PE 2024 torna-se o festival da inclusão. Memórias fala de um cartunista portador da síndrome da esclerose múltipla. Invisível retrata o cotidiano de um casal surdo-cego, que mantém vida comum há 15 anos. Dois casos de PCD, sigla que circulou muito pelo ambiente do festival: Pessoas Com Deficiência.

Quem pensa que, por essa opção, o festival se tornou palco de lamúrias, denúncias e histórias de superação, engana-se. Entre os diretores dos filmes premiados e seus personagens prevaleceu o humor e a alegria de viver. São lições de viver? Sim, sem dúvida. Mas eles parecem muito pouco preocupados em lecionar formas de se comportar ou dar lições de moral aos outros. Talvez por isso, e pela simpatia que irradiaram, tenham conquistado o carinho do público, jornalistas e frequentadores do festival. As poucas reclamações que fizeram se referiam à falta de acessibilidade no Cinema Teatro do Parque, uma edificação antiga, de 1915.

Em termos estritamente cinematográficos. Memórias de um Esclerosado era mesmo o filme a ser contemplado com o prêmio principal. Mereceu vencer e conquistar outras tantas Calungas - o troféu do festival. Muito bem construído, alternando a presença do personagem com animações feitas a partir dos seus próprios desenhos, é um longa dinâmico, que, sem esconder as dificuldades de Rafa Corrêa, tempera problemas com imbatível senso humor, ironia e nenhuma autopiedade.

Invisível também é bom, sem o mesmo brilho de Memórias de um Esclerosado. Achei um tanto redundante, em especial na parte final, embora tenha ganho o prêmio de montagem, entre outros.

O fraco No Caminho Encontrei o Vento recebeu o prêmio de ator para Alexandre Guimarães. Não está mal dado, mesmo porque não havia alternativa - e esse foi um dos problemas dessa edição do Cine PE: havia apenas dois longas de ficção em disputa de vários prêmios. Desse modo, alguns se tornaram obrigatórios, como os das atrizes de Cordel do Amor sem Fim, Márcia de Oliveira, a principal, Helena Ranaldi e Patrícia Gasppar, coadjuvantes.

Rafael Corrêa, personagem de Memórias de um Esclerosado, foi contemplado como ator coadjuvante. Não escondeu a surpresa: "Não sou ator". Não é mesmo, a não ser que se empregue a palavra num sentido muito extenso, o de que somos todos atores de nossas vidas.

De qualquer forma, todos os longas receberam prêmios, o que não chega a ser distributivismo, pois na seleção não havia nem filmes excepcionais e nem execráveis. Uns eram melhores que os outros, e o júri assinalou essa diferença na premiação. Acho que não há do que reclamar.

Entre os curtas, os prêmios choveram para a animação Hoje Só Volto Amanhã, visão multifacetada do carnaval de Olinda. Multifacetada, mesmo porque exigiu 10 diretores (e diretoras), 10 diretores de arte, etc., para, dessa maneira trabalhosa, expressar diferentes pontos de vista sobre essa linda festa popular

Mas curta vencedor da Calunga principal foi Das Águas, registro documental do cotidiano de homens e mulheres que pescam nas águas do Capibaribe, rio que, segundo os pernambucanos, se junta ao Beberibe para formar o Oceano Atlântico.

Premiação

MOSTRA COMPETITIVA DE LONGAS-METRAGENS

Melhor Filme - Memórias de um esclerosado, de Thais Fernandes e Rafael Corrêa (RS);

Júri Popular - Memórias de um esclerosado, de Thais Fernandes e Rafael Corrêa (RS), com 67% dos votos;

Melhor Direção - Carolina Vilela e Rodrigo Hinrichsen, por Invisível (RJ)

Melhor Roteiro - Thais Fernandes, Rafael Corrêa e Ma Villa Real, por Memórias de um esclerosado (RS)

Melhor Fotografia - Luciana Baseggio e Mari Moraga, por Geografia afetiva (SP)

Melhor Montagem - Rodrigo Séllos e Fernando Nicolletti, por Invisível (RJ)

Melhor Edição de Som - Rosana Stefanoni, por Geografia afetiva (SP)

Melhor Direção de Arte - André Cortez, por Cordel do Am (SP)

Melhor Trilha Sonora - André Paz, por Memórias de um esclerosado (RS)

Melhor Ator - Alexandre Guimarães, por No caminho encontrei o vento (PE)

Melhor Atriz - Marcia de Oliveira, por Cordel do amor sem fim (SP)

Melhor Ator Coadjuvante - Rafael Corrêa, por Memórias de um esclerosado (RS)

Melhor Atriz Coadjuvante - Helena Ranaldi e Patrícia Gasppar, por  Cordel do amor sem fim (SP)

MOSTRA COMPETITIVA DE CURTAS-METRAGENS PERNAMBUCANOS

Melhor Filme - Das águas, de Adalberto Oliveira e Tiago Martins Rêgo

Júri Popular - Náufrago, de Vitória Vasconcellos, com 37% dos votos

Melhor Direção - Adalberto Oliveira e Tiago Martins Rêgo, por Das águas

Melhor Roteiro - Pedro Melo, por Emocionado

Melhor Fotografia - Adalberto Oliveira, por Das águas

Melhor Montagem - Douglas Henrique, por Emocionado

Melhor Edição de Som - Romero Coelho, por Moagem

Melhor Direção de Arte - Letícia Rodrigues, por Mãe

Melhor Trilha Sonora - Marolas Crew e todo o conjunto da obra, por Das águas

Melhor Ator - Guilherme Alves, por Mãe

Melhor Atriz - Mariana Castelo, por Emocionado

MOSTRA COMPETITIVA DE CURTAS-METRAGENS NACIONAIS

Melhor Filme - Hoje eu só volto amanhã (PE), de Diego Lacerda, Luan Hilton, Chia Beloto, Marila Cantuária, Juliette Perrey, Marcelo Vaz, Yuri Shmakov, Raul Souza, Gio Guimarães, Gabriel de Moura e Rubens Caetano

Júri Popular - Hoje eu só volto amanhã (PE), de Diego Lacerda, Luan Hilton, Chia Beloto, Marila Cantuária, Juliette Perrey, Marcelo Vaz, Yuri Shmakov, Raul Souza, Gio Guimarães, Gabriel de Moura e Rubens Caetano, com 45,6% dos votos

Melhor Direção - As crianças e adolescentes da Comunidade de Macambira, por Flores da Macambira (ES)

Melhor Roteiro - Diego Lacerda, por Hoje eu só volto amanhã (PE)

Melhor Fotografia - Ma Villa Real, por Zagêro (RS)

Melhor Montagem - Vinicius Lima e Rafael Souto, por Resistência (RO)

Melhor Edição de Som - Nicolau Domingues e Rafael Travassos, por Hoje eu só volto amanhã  (PE)

Melhor Direção de Arte - Diego Lacerda, Luan Hilton, Chia Beloto, Marila Cantuária, Juliette Perrey, Marcelo Vaz, Yuri Shmakov, Raul Souza, Gio Guimarães, Gabriel de Moura, Bruno Luna e Rubens Caetano, por Hoje eu só volto amanhã (PE)

Melhor Trilha Sonora - Vovô Romário, por Flores da Macambira (ES)

Melhor Ator - Victor di Marco, por Zagêro (RS)

Melhor Atriz - Juliana Araújo, por Jogo de classe (SP)








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