Mera proibição de celular nas escolas tende ao fracasso. Melhor caminho é o uso racional, acordado entre professores e alunos
Folha de São Paulo, 27/06/2024
Daniel Cara, Professor da Faculdade de Educação da USP, é membro da Campanha Nacional pelo Direito à Educação & Monique Rufino Silva Pessoa, Professora de ensino médio e técnico da Etec Guaracy Silveira, doutoranda em educação (USP) e membro do Grupo de Estudos e Pesquisas em Direito à Educação, Economia e Políticas Educacionais (DEEP-USP) & Pedro Augusto Bertolini Bezerra, Professor de ensino fundamental da rede municipal de São Paulo, doutorando em educação (USP) e membro do Grupo de Estudos e Pesquisas em Direito à Educação, Economia e Políticas Educacionais (Deep-USP)
A tecnologia sempre foi parte inerente à vida humana. Benjamin Franklin nos caracterizava como "toolmaking animals", ou seja, animais que fabricam ferramentas. Os celulares representam um novo capítulo da história entre nós, seres humanos, e nossas criações. Da primeira chamada móvel, realizada em 3 de abril de 1973, aos dias de hoje, os aparelhos evoluíram para smartphones e a previsão é que se consolidem como extensão do nosso próprio corpo.
Proibir ou frear a tecnologia é contraproducente: significa contrariar a própria jornada humana. Contudo, qualquer instrumento tecnológico deve ser utilizado de forma a estabelecer uma experiência profícua. Esse é o dilema no qual está inserido, entre outros, o uso de celulares nas salas de aula.
No livro "Celular: ensaios estatísticos no ensino fundamental", publicado em 2023, os professores Jonatas Póvoa e Leonardo Mota estudam o caso de uma escola pública da rede municipal de São Paulo. Nesse universo, mais da metade dos alunos ganham seus aparelhos antes dos 10 anos, sem supervisão sobre o uso. Muitos estudantes relatam sintomas como cansaço, vista cansada e dores no pescoço devido ao uso excessivo.
Segundo o relatório "Pisa 2022 Results (Volume 2)", publicado pela OCDE em 2023, 45% dos estudantes relataram se distrair com o uso de dispositivos digitais durante as aulas no Brasil, enquanto a média da OCDE é de 30%. Além disso, 40% dos alunos brasileiros se distraem com colegas que estão utilizando seus aparelhos, comparado à média de 25% na OCDE. Ou seja, a presença do celular prejudica o aprendizado.
No mesmo sentido, o relatório "A tecnologia na educação: uma ferramenta a serviço de quem?", publicado pela Unesco em 2023, aponta que há poucas evidências que comprovem a contribuição das tecnologias para a aprendizagem.
Na pesquisa "Proibição do uso de celulares nas escolas: argumentos e orientações de nove países", do Centro de Inovação para Excelência das Políticas Públicas, de 2024, é afirmado que a exposição em excesso dos estudantes às telas prejudica a concentração, causa dependência e afeta o desempenho escolar. Por isso, em alguns países, os celulares ficam longe do alcance dos estudantes durante o período de aula.
Já a nota técnica "Programa Escolas Conectadas: pela segurança, responsabilidade e princípios de direitos humanos", publicada em 2024 pela Campanha Nacional pelo Direito à Educação, o uso de tecnologias nas instituições educacionais precisa garantir uma conectividade significativa, incentivando o uso de uma ampla gama de recursos, levando em consideração a questão pedagógica, a independência tecnológica e a proteção de dados dos estudantes.
Portanto, em termos pedagógicos, e considerando nossa experiência no magistério público (ensino fundamental, ensino médio e educação superior), os celulares prejudicam o aprendizado, mas a mera proibição tende ao fracasso.
Como boa prática, acordos devem ser realizados entre alunos, familiares e professores, segundo diretrizes estabelecidas pelo conselho escolar e pela direção, mediante uma reflexão crítica sobre o uso responsável das tecnologias. Inclusive, quando couber, os celulares podem ser utilizados como instrumentos pedagógicos — desde que não promovam desigualdades nas salas de aula.
Se é fato que a posse dos aparelhos é inevitável, também é verdade que o uso indiscriminado e desregulado prejudica a saúde, a segurança e o aprendizado dos estudantes. O caminho é o uso racional, acordado.
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Banir celular nas escolas já trouxe bons resultados. Movimento já ocorre até por iniciativa de comunidades escolares
Folha de São Paulo, 27/06/2024
Daniel Becker, Pediatra e sanitarista, é médico do Instituto de Saúde Coletiva da UFRJ e da Soperj & Renan Ferreirinha, Secretário municipal de Educação do Rio de Janeiro
Parece que a sociedade está chegando a um consenso. Pais, educadores, pediatras, gestores públicos, todos percebemos que o excesso de telas, especialmente do celular com seus aplicativos, está provocando danos às nossas crianças e adolescentes.
Nossa juventude vive uma crise: perdas no desenvolvimento, dificuldades de aprendizado e atenção, privação de sono, transtornos comportamentais e isolamento. Reportagem recente da Folha, que analisou dados do SUS de 2013 a 2023, mostrou aumentos que chegam a estrondosos 1.500% em atendimentos por ansiedade e depressão entre 10 e 19 anos, especialmente em meninas.
Evidências científicas apontam que, se o uso excessivo das telas não é o único culpado, é um dos principais implicados.
Sabemos que redes sociais e outros aplicativos criam mecanismos para provocar dependência, e as crianças são mais suscetíveis. Com isso, elas passam cada vez mais tempo na tela, chegando a 9 ou 10 horas por dia — e começam cada vez mais cedo.
A sucessão de conteúdos curtos, publicitários e superficiais as torna consumistas, apáticas, acríticas, desatentas, incapazes de ler. As bolhas de radicalização geradas pelo algoritmo promovem negacionismo científico e climático, intolerância, violência e bullying, e as deixam suscetíveis a fanatismo político e golpes cada vez mais sofisticados.
A comparação com belezas filtradas e vidas falsamente perfeitas deprime e reduz a autoestima.
Várias medidas estão em marcha para reduzir o uso de telas pelos jovens. Famílias estão se mobilizando para retardar a entrega do celular. Um guia sobre o uso adequado de telas está sendo criado por especialistas e equipes de sete ministérios. A regulamentação das redes está voltando à pauta.
Além disso, muitas escolas estão optando pelo banimento do celular, num movimento que ocorre simultaneamente em inúmeros países, por iniciativa de governos ou de comunidades escolares.
A escola é o espaço público primordial da criança, onde ela adquire habilidades fundamentais, como colaboração, foco, resolução de problemas e conflitos, além de ter contato com artes, esportes e cidadania. Um lugar para aprender a pensar criticamente, a se relacionar com o outro, com o coletivo, com o mundo.
O óbvio: a mera presença do celular na sala de aula, mesmo na mochila, já perturba a atenção. Estudos mostram um sério prejuízo no aprendizado. Isso não se discute mais.
Mas há o precioso recreio. Com as cidades inseguras e crianças confinadas e sem contato com amigos e com a natureza, o pátio escolar se tornou o último reduto da mais essencial atividade da infância: o brincar. E o celular transforma brincadeiras e trocas de afeto em um deserto de imobilidade, isolamento e bullying.
A escola, como espaço regulamentado, oferece uma valiosa pausa para viver no mundo real, o que é cada vez mais difícil lá fora. Isso não significa afastar a criança da tecnologia: existem outros meios menos distrativos, mais eficazes e seguros para esse fim. O uso do celular pode ser permitido para alunos que os necessitem por questões de saúde e em alguns momentos, para que a escola cumpra uma função que precisa assumir: a educação midiática. Mas a presença do aparelho no dia a dia não faz sentido.
A rede municipal de ensino do Rio de Janeiro foi a primeira a banir celulares, exceto para uso pedagógico autorizado pelo professor. Mais de 650 mil alunos da rede municipal e outros milhares de estudantes em grandes escolas privadas já vivem essa realidade. Os primeiros resultados são excelentes: satisfação de professores, de famílias e até dos alunos, que recuperam o prazer de brincar, interagir e aprender.
Está na hora de espalhar essa onda por todo o Brasil.
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