quarta-feira, 31 de julho de 2024

José de Alencar por Machado de Assis

A Estátua de José de Alencar

Discurso proferido na cerimônia do lançamento da primeira pedra da estátua de José de Alencar

Senhores,

Tenho ainda presente a essa em que, por algumas horas últimas, pousou o corpo de José de Alencar.  Creio que jamais o espetáculo da morte me fez tão singular impressão. Quando entrei na adolescência, fulgiam os primeiros raios daquele grande engenho; vi-os depois em tanta cópia e com tal esplendor que eram já um sol, quando entrei na mocidade. Gonçalves Dias e os homens do seu tempo estavam feitos; Álvares de Azevedo, cujo livro era a boa-nova dos poetas, falecera antes de revelado ao mundo. Todos eles influíam profundamente no ânimo juvenil que apenas balbuciava alguma coisa; mas a ação crescente de Alencar dominava as outras. A sensação que recebi no primeiro encontro pessoal com ele foi extraordinária; creio ainda agora que não lhe disse nada, contentando-me de fitá-lo com os olhos assombrados do menino Heine ao ver passar Napoleão. A fascinação não diminuiu com o trato do homem e do artista.

Daí o espanto da morte. Não podia crer que o autor de tanta vida estivesse ali, dentro de um féretro, mudo e inábil por todos os tempos dos tempos. Mas o mistério e a realidade impunham-se; não havia mais que enterrá-lo e ir conversá- lo em seus livros.

Hoje, senhores, assistimos ao início de outro monumento, este agora de vida, destinado a dar à cidade, à pátria e ao mundo a imagem daquele que um dia acompanhamos ao cemitério. Volveram anos; volveram coisas; mas a consciência humana diz-nos que, no meio das obras e dos tempos fugidios, subsiste a flor da poesia, ao passo que a consciência nacional nos mostra na pessoa do grande escritor o robusto e vivaz representante da literatura brasileira.

Não é aqui o lugar adequado à narração da carreira do autor de Iracema. Todos vós sabeis que foi rápida, brilhante e cheia; podemos dizer que ele saiu da Academia para a celebridade. Quem o lê agora, em dias e horas de escolha, e nos livros que mais lhe aprazem, não tem ideia da fecundidade extraordinária que revelou tão depressa entrou na vida. Desde logo pôs mãos à crônica, ao romance, à crítica e ao teatro, dando a todas essas formas do pensamento um cunho particular e desconhecido. No romance que foi a sua forma por excelência, a primeira narrativa, curta e simples, mal se espaçou da segunda e da terceira. Em três saltos estava o Guarani diante de nós; e daí veio a sucessão crescente de força, de esplendor, de variedade. O espírito de Alencar percorreu as diversas partes de nossa terra, o norte e o sul, a cidade e o sertão, a mata e o pampa, fixando-as em suas páginas, compondo assim com as diferenças da vida, das zonas e dos tempos a unidade nacional da sua obra.

Nenhum escritor teve em mais alto grau a alma brasileira. E não é só porque houvesse tratado assuntos nossos. Há um modo de ver e de sentir, que dá a nota íntima da nacionalidade, independente da face externa das coisas. O mais francês dos trágicos franceses é Racine, que só fez falar a antigos. Schiller é sempre alemão, quando recompõe Filipe II e Joana d'Arc. O nosso Alencar juntava a esse dom a natureza dos assuntos tirados da vida ambiente e da história local. Outros o fizeram também; mas a expressão do seu gênio era mais vigorosa e mais íntima. A imaginação que sobrepujava nele o espírito de análise, dava a tudo o calor dos trópicos e as galas viçosas de nossa terra. O talento descritivo, a riqueza, o mimo e a originalidade do estilo completavam a sua fisionomia literária.

Não lembro aqui as letras políticas, os dias de governo e de tribuna. Toda essa parte de Alencar fica para a biografia. A glória contenta-se da outra parte. A política era incompatível com ele, alma solitária. A disciplina dos partidos e a natural sujeição dos homens às necessidades e interesses comuns não podiam ser aceitas a um espírito que em outra esfera dispunha da soberania e da liberdade. Primeiro em Atenas, era-lhe difícil ser segundo ou terceiro em Roma.

Quando um ilustre homem de Estado respondendo a Alencar, já então apeado do Governo, comparou a carreira política à do soldado, que tem de passar pelos serviços ínfimos e ganhar os postos gradualmente, dando-se a si mesmo como exemplo dessa lei, usou de uma imagem feliz e verdadeira, mas ininteligível para o autor das Minas de Prata. Um ponto há que notar, entretanto, naquele curto estádio político. O autor do Gaúcho carecia das qualidades necessárias à tribuna, mas quis ser orador, e foi orador. Sabemos que se bateu galhardamente com muitas das primeiras vozes do parlamento.

Desenganado dos homens e das coisas, Alencar volveu de todo às suas queridas letras. As letras são boas amigas; não lhe fizeram esquecer inteiramente as amarguras, é certo; senti-lhe mais de uma vez a alma enojada e abatida. Mas a arte, que é a liberdade, era a força medicatriz do seu espírito. Enquanto a imaginação inventava, compunha e polia novas obras, a contemplação mental ia vencendo as tristezas do coração, e o misantropo amava os homens.

Agora que os anos vão passando sobre o óbito do escritor, é justo perpetuá-lo, pela mão do nosso ilustre estatuário nacional. Concluindo o livro de Iracema, escreveu Alencar esta palavra melancólica: "A jandaia cantava ainda no olho do coqueiro, mas não repetia já o mavioso nome de Iracema. Tudo passa sobre a terra". Senhores, a filosofia do livro não podia ser outra, mas a posteridade é aquela jandaia que não deixa o coqueiro, e que ao contrário da que emudeceu na novela, repete e repetirá o nome da linda tabajara e do seu imortal autor. Nem tudo passa sobre a terra.

Fonte: Obra Completa, Machado de Assis, Rio de Janeiro: Nova Aguilar, V.II, pp. 624-625, 1994. Publicado originalmente em Páginas Recolhidas, Rio de Janeiro: Editora Garnier, 1906.

________________________________________

A história da estátua de José de Alencar no Rio

Inauguração do monumento em 1897 foi marcada pela fala emocionada de Machado de Assis.

Roteiros Literários, Maio 13, 2020

por Leonardo de Lucas

Em 12 de dezembro de 1891, numa praça do bairro do Flamengo, na então capital do país, foi lançada a pedra fundamental de uma obra que seria a primeira a homenagear um escritor brasileiro. Até então, tal honraria era dedicada somente aos grandes líderes políticos e aos comandantes militares. José de Alencar (1829–1877), romancista cearense, muito conhecido pelos livros Iracema e O Guarani, debutaria nesse mundo das estátuas e seria imortalizado num imponente monumento no centro do largo.

O discurso emocionado, parte dos festejos, foi feito pelo colega de letras Machado de Assis. No texto, o autor de Dom Casmurro recorda a sensação extraordinária que teve quando se encontrou pessoalmente com o mais célebre escritor da época. Não conseguiu lhe dizer nada, ficando apenas a fitá-lo com os olhos assombrados do menino Heine ao ver passar Napoleão.

Machado destacou também a importância do romancista em sua adolescência e no início de seus anseios literários. Apesar de Gonçalves Dias e Álvares de Azevedo terem influído em seu ânimo juvenil, a ação crescente de Alencar dominava as outras. E o fascínio em torno de sua figura como artista não diminuiu com o tempo, por isso o Bruxo do Cosme Velho deu ênfase no impacto de seu falecimento: “Creio que jamais o espetáculo da morte me fez tão singular impressão”.

    “Hoje, senhores, assistimos ao início de outro monumento, este agora de vida, destinado a dar à cidade, à pátria e ao mundo a imagem daquele que um dia acompanhamos ao cemitério. Volveram anos; volveram coisas; mas a consciência humana diz-nos que, no meio das obras e dos tempos fugidios, subsiste a flor da poesia, ao passo que a consciência nacional nos mostra na pessoa do grande escritor o robusto e vivaz representante da literatura brasileira.”

Machado falou um pouco sobre a carreira do escritor, sobre a fecundidade de sua escrita, sobre o seu talento na crônica, no teatro, na crítica e no romance, sua especialidade. Chamou a atenção sobre como nesse último gênero Alencar conseguiu expressar muitos traços do nosso país: “O espírito de Alencar percorreu as diversas partes de nossa terra, o norte e o sul, a cidade e o sertão, a mata e o pampa, fixando-as em suas páginas, compondo assim com as diferenças da vida, das zonas e dos tempos a unidade nacional da sua obra”. E acrescentou:

    “Nenhum escritor teve em mais alto grau a alma brasileira. E não é só porque houvesse tratado assuntos nossos. Há um modo de ver e de sentir, que dá a nota íntima da nacionalidade, independente da face externa das coisas. O mais francês dos trágicos franceses é Racine, que só fez falar a antigos. Schiller é sempre alemão, quando recompõe Filipe II e Joana d’Arc. O nosso Alencar juntava a esse dom a natureza dos assuntos, tirados da vida ambiente e da história local. Outros o fizeram também, mas a expressão do seu gênio era mais vigorosa e mais íntima. A imaginação que sobrepujava nele o espírito de análise dava a tudo o calor dos trópicos e as galas viçosas de nossa terra. O talento descritivo, a riqueza, o mimo e a originalidade do estilo completavam a sua fisionomia literária”.

Houve ainda alguma menção à trajetória política de Alencar, que o autor de Quincas Borba via como incompatível com ele. Se submeter a partidos aos homens e às necessidades e interesses comuns, isso não podia ser aceito por alguém que em outra esfera dispunha da soberania e da liberdade.

Machado ainda o descreveu como uma espécie de outsider, de sujeito que não conseguia entender como certas regras funcionavam exatamente por ser um artista, um ser autônomo.

“Não lembro aqui as letras políticas, os dias de governo e de tribuna. Toda essa parte de Alencar fica para a biografia.” Assim o Bruxo conduz o fim de sua fala, ressaltando sempre o lado escritor e artista do homenageado, como se essa fosse a face que ele queria ver preservada e perpetuada sobre as outras. Suas últimas linhas relembram uma passagem melancólica de Iracema que retrata transitoriedade da vida: “Tudo passa sobre a terra”. Ao que Machado, resgatando a imortalidade do autor em forma de monumento, respondeu: “Nem tudo passa sobre a terra”.

SOBRE O MONUMENTO

Inaugurado em 1897, no Rio de Janeiro, a obra tem no seu topo uma estátua de José de Alencar em bronze com os trajes da época. Sentado numa pose elegante, um lápis e uma folha repousam entre suas mãos, dando à representação um contorno intelectual.

Sua base circular de mármore é sustentada por uma estrutura octogonal que contém quatro baixos-relevos retangulares intercalados por medalhões, todos esculpidos em bronze.

Feita pelo escultor Rodolfo Bernardelli, artista que foi o responsável pelo túmulo da família, os quatro baixos-relevos simbolizam passagens dos livros famosos de Alencar, como O Guarani (1857), Iracema (1865), O Gaúcho (1870) e O Sertanejo (1875), ao passo que os medalhões expressam alguns dos personagens dos romances, como Peri, Iracema e Ceci.

Na ocasião, o evento teve a pompa que a situação exigia, com a presença até do presidente da república, Prudente de Morais. Estiveram presentes também e discursaram os escritores Coelho Neto e Olavo Bilac.


Nenhum comentário:

Postar um comentário