quarta-feira, 31 de julho de 2024

José de Alencar por Machado de Assis

A Estátua de José de Alencar

Discurso proferido na cerimônia do lançamento da primeira pedra da estátua de José de Alencar

Senhores,

Tenho ainda presente a essa em que, por algumas horas últimas, pousou o corpo de José de Alencar.  Creio que jamais o espetáculo da morte me fez tão singular impressão. Quando entrei na adolescência, fulgiam os primeiros raios daquele grande engenho; vi-os depois em tanta cópia e com tal esplendor que eram já um sol, quando entrei na mocidade. Gonçalves Dias e os homens do seu tempo estavam feitos; Álvares de Azevedo, cujo livro era a boa-nova dos poetas, falecera antes de revelado ao mundo. Todos eles influíam profundamente no ânimo juvenil que apenas balbuciava alguma coisa; mas a ação crescente de Alencar dominava as outras. A sensação que recebi no primeiro encontro pessoal com ele foi extraordinária; creio ainda agora que não lhe disse nada, contentando-me de fitá-lo com os olhos assombrados do menino Heine ao ver passar Napoleão. A fascinação não diminuiu com o trato do homem e do artista.

Daí o espanto da morte. Não podia crer que o autor de tanta vida estivesse ali, dentro de um féretro, mudo e inábil por todos os tempos dos tempos. Mas o mistério e a realidade impunham-se; não havia mais que enterrá-lo e ir conversá- lo em seus livros.

Hoje, senhores, assistimos ao início de outro monumento, este agora de vida, destinado a dar à cidade, à pátria e ao mundo a imagem daquele que um dia acompanhamos ao cemitério. Volveram anos; volveram coisas; mas a consciência humana diz-nos que, no meio das obras e dos tempos fugidios, subsiste a flor da poesia, ao passo que a consciência nacional nos mostra na pessoa do grande escritor o robusto e vivaz representante da literatura brasileira.

Não é aqui o lugar adequado à narração da carreira do autor de Iracema. Todos vós sabeis que foi rápida, brilhante e cheia; podemos dizer que ele saiu da Academia para a celebridade. Quem o lê agora, em dias e horas de escolha, e nos livros que mais lhe aprazem, não tem ideia da fecundidade extraordinária que revelou tão depressa entrou na vida. Desde logo pôs mãos à crônica, ao romance, à crítica e ao teatro, dando a todas essas formas do pensamento um cunho particular e desconhecido. No romance que foi a sua forma por excelência, a primeira narrativa, curta e simples, mal se espaçou da segunda e da terceira. Em três saltos estava o Guarani diante de nós; e daí veio a sucessão crescente de força, de esplendor, de variedade. O espírito de Alencar percorreu as diversas partes de nossa terra, o norte e o sul, a cidade e o sertão, a mata e o pampa, fixando-as em suas páginas, compondo assim com as diferenças da vida, das zonas e dos tempos a unidade nacional da sua obra.

Nenhum escritor teve em mais alto grau a alma brasileira. E não é só porque houvesse tratado assuntos nossos. Há um modo de ver e de sentir, que dá a nota íntima da nacionalidade, independente da face externa das coisas. O mais francês dos trágicos franceses é Racine, que só fez falar a antigos. Schiller é sempre alemão, quando recompõe Filipe II e Joana d'Arc. O nosso Alencar juntava a esse dom a natureza dos assuntos tirados da vida ambiente e da história local. Outros o fizeram também; mas a expressão do seu gênio era mais vigorosa e mais íntima. A imaginação que sobrepujava nele o espírito de análise, dava a tudo o calor dos trópicos e as galas viçosas de nossa terra. O talento descritivo, a riqueza, o mimo e a originalidade do estilo completavam a sua fisionomia literária.

Não lembro aqui as letras políticas, os dias de governo e de tribuna. Toda essa parte de Alencar fica para a biografia. A glória contenta-se da outra parte. A política era incompatível com ele, alma solitária. A disciplina dos partidos e a natural sujeição dos homens às necessidades e interesses comuns não podiam ser aceitas a um espírito que em outra esfera dispunha da soberania e da liberdade. Primeiro em Atenas, era-lhe difícil ser segundo ou terceiro em Roma.

Quando um ilustre homem de Estado respondendo a Alencar, já então apeado do Governo, comparou a carreira política à do soldado, que tem de passar pelos serviços ínfimos e ganhar os postos gradualmente, dando-se a si mesmo como exemplo dessa lei, usou de uma imagem feliz e verdadeira, mas ininteligível para o autor das Minas de Prata. Um ponto há que notar, entretanto, naquele curto estádio político. O autor do Gaúcho carecia das qualidades necessárias à tribuna, mas quis ser orador, e foi orador. Sabemos que se bateu galhardamente com muitas das primeiras vozes do parlamento.

Desenganado dos homens e das coisas, Alencar volveu de todo às suas queridas letras. As letras são boas amigas; não lhe fizeram esquecer inteiramente as amarguras, é certo; senti-lhe mais de uma vez a alma enojada e abatida. Mas a arte, que é a liberdade, era a força medicatriz do seu espírito. Enquanto a imaginação inventava, compunha e polia novas obras, a contemplação mental ia vencendo as tristezas do coração, e o misantropo amava os homens.

Agora que os anos vão passando sobre o óbito do escritor, é justo perpetuá-lo, pela mão do nosso ilustre estatuário nacional. Concluindo o livro de Iracema, escreveu Alencar esta palavra melancólica: "A jandaia cantava ainda no olho do coqueiro, mas não repetia já o mavioso nome de Iracema. Tudo passa sobre a terra". Senhores, a filosofia do livro não podia ser outra, mas a posteridade é aquela jandaia que não deixa o coqueiro, e que ao contrário da que emudeceu na novela, repete e repetirá o nome da linda tabajara e do seu imortal autor. Nem tudo passa sobre a terra.

Fonte: Obra Completa, Machado de Assis, Rio de Janeiro: Nova Aguilar, V.II, pp. 624-625, 1994. Publicado originalmente em Páginas Recolhidas, Rio de Janeiro: Editora Garnier, 1906.

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A história da estátua de José de Alencar no Rio

Inauguração do monumento em 1897 foi marcada pela fala emocionada de Machado de Assis.

Roteiros Literários, Maio 13, 2020

por Leonardo de Lucas

Em 12 de dezembro de 1891, numa praça do bairro do Flamengo, na então capital do país, foi lançada a pedra fundamental de uma obra que seria a primeira a homenagear um escritor brasileiro. Até então, tal honraria era dedicada somente aos grandes líderes políticos e aos comandantes militares. José de Alencar (1829–1877), romancista cearense, muito conhecido pelos livros Iracema e O Guarani, debutaria nesse mundo das estátuas e seria imortalizado num imponente monumento no centro do largo.

O discurso emocionado, parte dos festejos, foi feito pelo colega de letras Machado de Assis. No texto, o autor de Dom Casmurro recorda a sensação extraordinária que teve quando se encontrou pessoalmente com o mais célebre escritor da época. Não conseguiu lhe dizer nada, ficando apenas a fitá-lo com os olhos assombrados do menino Heine ao ver passar Napoleão.

Machado destacou também a importância do romancista em sua adolescência e no início de seus anseios literários. Apesar de Gonçalves Dias e Álvares de Azevedo terem influído em seu ânimo juvenil, a ação crescente de Alencar dominava as outras. E o fascínio em torno de sua figura como artista não diminuiu com o tempo, por isso o Bruxo do Cosme Velho deu ênfase no impacto de seu falecimento: “Creio que jamais o espetáculo da morte me fez tão singular impressão”.

    “Hoje, senhores, assistimos ao início de outro monumento, este agora de vida, destinado a dar à cidade, à pátria e ao mundo a imagem daquele que um dia acompanhamos ao cemitério. Volveram anos; volveram coisas; mas a consciência humana diz-nos que, no meio das obras e dos tempos fugidios, subsiste a flor da poesia, ao passo que a consciência nacional nos mostra na pessoa do grande escritor o robusto e vivaz representante da literatura brasileira.”

Machado falou um pouco sobre a carreira do escritor, sobre a fecundidade de sua escrita, sobre o seu talento na crônica, no teatro, na crítica e no romance, sua especialidade. Chamou a atenção sobre como nesse último gênero Alencar conseguiu expressar muitos traços do nosso país: “O espírito de Alencar percorreu as diversas partes de nossa terra, o norte e o sul, a cidade e o sertão, a mata e o pampa, fixando-as em suas páginas, compondo assim com as diferenças da vida, das zonas e dos tempos a unidade nacional da sua obra”. E acrescentou:

    “Nenhum escritor teve em mais alto grau a alma brasileira. E não é só porque houvesse tratado assuntos nossos. Há um modo de ver e de sentir, que dá a nota íntima da nacionalidade, independente da face externa das coisas. O mais francês dos trágicos franceses é Racine, que só fez falar a antigos. Schiller é sempre alemão, quando recompõe Filipe II e Joana d’Arc. O nosso Alencar juntava a esse dom a natureza dos assuntos, tirados da vida ambiente e da história local. Outros o fizeram também, mas a expressão do seu gênio era mais vigorosa e mais íntima. A imaginação que sobrepujava nele o espírito de análise dava a tudo o calor dos trópicos e as galas viçosas de nossa terra. O talento descritivo, a riqueza, o mimo e a originalidade do estilo completavam a sua fisionomia literária”.

Houve ainda alguma menção à trajetória política de Alencar, que o autor de Quincas Borba via como incompatível com ele. Se submeter a partidos aos homens e às necessidades e interesses comuns, isso não podia ser aceito por alguém que em outra esfera dispunha da soberania e da liberdade.

Machado ainda o descreveu como uma espécie de outsider, de sujeito que não conseguia entender como certas regras funcionavam exatamente por ser um artista, um ser autônomo.

“Não lembro aqui as letras políticas, os dias de governo e de tribuna. Toda essa parte de Alencar fica para a biografia.” Assim o Bruxo conduz o fim de sua fala, ressaltando sempre o lado escritor e artista do homenageado, como se essa fosse a face que ele queria ver preservada e perpetuada sobre as outras. Suas últimas linhas relembram uma passagem melancólica de Iracema que retrata transitoriedade da vida: “Tudo passa sobre a terra”. Ao que Machado, resgatando a imortalidade do autor em forma de monumento, respondeu: “Nem tudo passa sobre a terra”.

SOBRE O MONUMENTO

Inaugurado em 1897, no Rio de Janeiro, a obra tem no seu topo uma estátua de José de Alencar em bronze com os trajes da época. Sentado numa pose elegante, um lápis e uma folha repousam entre suas mãos, dando à representação um contorno intelectual.

Sua base circular de mármore é sustentada por uma estrutura octogonal que contém quatro baixos-relevos retangulares intercalados por medalhões, todos esculpidos em bronze.

Feita pelo escultor Rodolfo Bernardelli, artista que foi o responsável pelo túmulo da família, os quatro baixos-relevos simbolizam passagens dos livros famosos de Alencar, como O Guarani (1857), Iracema (1865), O Gaúcho (1870) e O Sertanejo (1875), ao passo que os medalhões expressam alguns dos personagens dos romances, como Peri, Iracema e Ceci.

Na ocasião, o evento teve a pompa que a situação exigia, com a presença até do presidente da república, Prudente de Morais. Estiveram presentes também e discursaram os escritores Coelho Neto e Olavo Bilac.


segunda-feira, 29 de julho de 2024

A miséria da educação parte 2

Em novembro de 2023 este blog publicou A miséria da educação. Leia aqui.

Com mais dados voltamos a reafirmar nossa premissa da miséria.

Censo da Educação Superior mostra forte expansão de EAD

Número de ingressantes na modalidade é o dobro dos que buscam cursos presenciais 

João Rabelo, fsp, 24/07/2024

A modalidade de ensino a distância no Brasil já supera o interesse pelo ensino presencial, que vem diminuindo desde 2014, de acordo com o Censo da Educação Superior de 2022.

Polo EAD Mackenzie, no Itaim Bibi - Lucas Seixas - 22.jul.2024/Folhapress 

A pesquisa anual do Inep, em articulação com as instituições de educação superior (IES) que oferecem cursos de graduação, mostra ainda que as vagas EAD dispararam após 2017. Nessa data, foi publicado o decreto federal 9.057 e a portaria normativa 11 do MEC, que, entre outras medidas, eliminaram a avaliação in loco dos polos EAD e permitiram cursos totalmente a distância, sem atividades presenciais.

Rede pública: presencial (457.462) e EAD (67.938)

















terça-feira, 23 de julho de 2024

1100 filmes

Atualizando o  inventário dos filmes, vistos por este que vos fala.

Os filmes estão resenhados. Basta um clik em "Filmes parte ...". Vários destes filmes estão disponíveis no iutubi. Continuação do inventário   1000 filmes


Filmes parte 42 - 26 de junho de 2024

Um Cavalheiro Em Moscou, A Gentleman in Moscow, Minissérie TV, 2024, Sam Miller & Sarah O'Gorman

Zona de Interesse, The Zone of Interest, 2023, Jonathan Glazer

Godzilla Minus OneGojira -1.0, 2023, Takashi Yamazaki

A Longa Caminhada, Walkabout, 1971, Nicolas Roeg

Inverno de Sangue em Veneza, Don't Look Now, 1973, Nicolas Roeg

Rebecca, a Mulher Inesquecível, Rebecca, 1940, Alfred Hitchcock

Cinco Dedos, 5 Fingers, 1952, Joseph L. Mankiewicz

Cronicamente Inviável, 2000, Sergio Bianchi

A Navalhana Carne, 1969, Braz Chediak

Uma Aventura na Noite, Somewhere in the Night, 1946, Joseph L. Mankiewicz

O Pequeno Rincão de Deus, God's Little Acre, 1958, Anthony Mann

A Queda do Império Romano, The Fall of the Roman Empire, 1964, Anthony Mann

El Cid, 1961, Anthony Mann

Região do Ódio, The Far Country, 1954, Anthony Mann

O Homem do Oeste, Man of the West, 1958, Anthony Mann

Jornada para oInferno, Butcher's Crossing, 2022, Gabe Polsky

Barry Lyndon, 1975, Stanley Kubrick

Western, 2017, Valeska Grisebach

Gigantes em Fúria, Sea Devils, 1953, Raoul Walsh

O Ladrão de Cavalos, Dao ma zei, 1986, Zhuangzhuang Tian & Peicheng Pan

Expresso para oInferno, Runaway Train, 1985, Andrey Konchalovskiy

Lola Montes, Lola Montès, 1955, Max Ophüls

Joana d'Arc da Mongólia, Johanna D'Arc of Mongolia, 1989, Ulrike Ottinger

Amor Fora da Lei, Ain't Them Bodies Saints, 2013, David Lowery

 

Filmes parte 41 - 27 de maio de 2024  

Rapsódia em Agosto, Hachigatsu no rapusodî, 1991, Akira Kurosawa

Justiça Cega, Blind Justice, 1994, Richard Spence

Bebê Rena, Baby Reindeer, Minissérie de televisão, 2024, Weronika Tofilska & Josephine Bornebusch

O Alfaiate, The Outfit, 2022, Graham Moore

Kagemusha, a Sombra de um Samurai, Kagemusha, 1980, Akira Kurosawa

O Véu, The Veil, Minissérie TV, 2024, Daina Reid & Damon Thomas

Reservation Dogs, Série de TV, 2021–2023, Sterlin Harjo

Bones of Crows, 2022, Marie Clements

Atanarjuat: O Corredor, Atanarjuat, 2001, Zacharias Kunuk

O Amor e a Fúria, Once Were Warriors, 1994, Lee Tamahori

Night Raiders, 2021, Danis Goulet

Feud, Série de TV, 2017–2024, Gus Van Sant & Ryan Murphy (temporada 2)

Pacto Sinistro, Strangers on a Train, 1951, Alfred Hitchcock

Loving Highsmith, Amando Patricia Highsmith, 2022, Eva Vitija

O Simpatizante, The Sympathizer, Minissérie TV, 2024, Park Chan-wook

Planeta dos Macacos: A Origem, Rise of the Planet of the Apes, 2011, Rupert Wyatt

Planeta dos Macacos: O Confronto, Dawn of the Planet of the Apes, 2014, Matt Reeves

Planeta dos Macacos: A Guerra, War for the Planet of the Apes, 2017, Matt Reeves

Waterloo, 1970, Sergey Bondarchuk

Sargento Getúlio, 1983, Hermanno Penna

Harmada, 2003, Maurice Capovilla

Entre Irmãs, Minissérie TV, 2017, Breno Silveira

A Conversação, The Conversation, 1974, Francis Ford Coppola

O Idiota, Idiot, 1958, Ivan Pyrev

O Idiota, Hakuchi, 1951, Akira Kurosawa

Furiosa: Uma Saga Mad Max, A Mad Max Saga, 2024, George Miller

Antes que Tudo Desapareça, Sanpo suru shinryakusha, 2017, Kiyoshi Kurosawa

A Boa Mãe, Bonne mère, 2021, Hafsia Herzi

A Felicidade das Coisas, 2021, Thais Fujinaga


Filmes parte 40 - 26 de abril de 2024   

O Início do Fim, Fat Man and Little Boy, 1989, Roland Joffé

Vatel, um Banquete para o Rei, Vatel, 2000, Roland Joffé

Just Noise, 2021, Davide Ferrario

O Ninho: Futebol & Tragédia, Minissérie de televisão, 2024, Pedro Asbeg

O Problema dos 3 Corpos, 3 Body Problem, Série de TV, 2024, Minkie Spiro, Jeremy Podeswa, Derek Tsang, Andrew Stanton

Drácula - A Última Viagem do Deméter, The Last Voyage of the Demeter, 2023, André Øvredal

Três Corpos, San ti, 2023, Lei Yang

Yojimbo, o Guarda-Costas, Yôjinbô, 1961, Akira Kurosawa

Dersu Uzala, 1975, Akira Kurosawa

Capitu, 1968, Paulo César Saraceni

Não Atire, Niet Schieten, 2018, Stijn Coninx

A Cabeça de Joaquín Murrieta, La Cabeza de Joaquín Murrieta, Série de TV, 2023, Humberto Hinojosa Ozcariz & David Pablos

Dias Perfeitos, Perfect Days, 2023, Wim Wenders

Gran Torino, 2008, Clint Eastwood

Fallout, Série de TV, 2024

RIPLEY, Ripley, Minissérie de televisão, 2024, Steven Zaillian

O Sol por Testemunha, Plein soleil, 1960, René Clément

Ran, 1985, Akira Kurosawa

Audácia dos Fortes, Singing Guns, 1950, R.G. Springsteen

Obrigado a Matar, A Lawless Street, 1955, Joseph H. Lewis

O Regime, The Regime, Minissérie de televisão, 2024, Stephen Frears & Jessica Hobbs

Xógun: A Gloriosa Saga do Japão, Shôgun, Minissérie de televisão, 2024, Frederick E.O. Toy &Jonathan van Tulleken

 

Filmes parte 39 - 12 de março de 2024   

Nazarin, Nazarín, 1959, Luis Buñuel

Goya, Goya en Burdeos, 1999, Carlos Saura

Kwaidan - As Quatro Faces do Medo, Kaidan, 1964, Masaki Kobayashi

Harakiri, Seppuku, 1962, Masaki Kobayashi

Prazeres da Carne, Etsuraku, 1965, Nagisa Ôshima

Infiltrada - Golpe de Vingança, Catch the Fair One, 2021, Josef Kubota Wladyka

A Cruz de Ferro, Cross of Iron, 1977, Sam Peckinpah

O não Sei que das Mulheres, It, 1927, Clarence G. Badger & Josef von Sternberg

Um Domingo Maravilhoso, Subarashiki nichiyôbi, 1947, de Akira Kurosawa

Einstein e a Bomba, Enstein and the Bomb, Série de TV, 2024, Anthony Philipson

Grandes Esperanças, Great Expectations, 1946, David Lean

Companheiros, Vamos a matar, compañeros, 1970, Sergio Corbucci

Os Desajustados, The Misfits, 1961, John Huston

Star Wars: Os Últimos Jedi, Star Wars: Episode VIII - The Last Jedi, 2017, Rian Johnson

Boy, 2010, Taika Waititi

Jojo Rabbit, 2019, Taika Waititi

O Preço do Poder, Il prezzo del potere, 1969, Tonino Valerii

Cemitério Sem Cruzes, Une corde un Colt..., 1969, Robert Hossein

Canibal, Caníbal, 2013, Manuel Martín Cuenca

A Camareira, La camarista, 2018, Lila Avilés

A Tabacaria, Der Trafikant, 2018, Nikolaus Leytner

Ficção Americana, American Fiction, 2023, Cord Jefferson

Uma História em Montana, Montana Story, 2021, Scott McGehee & David Siegel

Vidas Passadas, Past Lives, 2023, Celine Song

Violência e Paixão, Gruppo di famiglia in un interno, 1974, Luchino Visconti

As Sufragistas, Suffragette, 2015, Sarah Gavron

Os Rejeitados, The Holdovers, 2023, Alexander Payne

Pobres Criaturas, Poor Things, 2023, Yorgos Lanthimos

 

domingo, 21 de julho de 2024

A aposta - Anton Tchekhov

 A Aposta - Anton Tchekhov - Teatro Drama 

Direção e atuação: Patrick Menegazzo.

Apresentação da peça "A Aposta", no Salão de Atos da Uri Campus de Erechim, realizada no dia 29.04.17, com a participação do pianista Gleison Wojciekowski, tocando Chopin - Nocturne in E-flat major, Op. 9, No. 2.

Anton Tchekhov (A aposta)

I

Era uma noite escura de outono. O velho banqueiro media a passadas o seu gabinete e recordava como, quinze anos atrás, no outono, dera uma festa. Nessa reunião estivera muita gente inteligente e houvera muitas conversas interessantes. Entre outros assuntos, falara-se da pena de morte. Os convidados, entre os quais havia não poucos sábios e jornalistas, na sua maioria tinham uma atitude negativa para com a pena de morte. Achavam esse método de punição obsoleto, impróprio para os Estados cristãos e imoral. A opinião de alguns deles era que a pena de morte deveria ser definitivamente abolida e substituída pela prisão perpétua.

— Não estou de acordo — disse o banqueiro, dono da casa. — Nunca experimentei nem a pena de morte nem a prisão perpétua, mas, se é possível julgar a priori, a minha opinião é que a pena de morte é mais moral e mais humana do que a prisão. A execução mata duma vez, ao passo que a prisão perpétua mata aos poucos. Que carrasco é, pois, mais humano — aquele que mata de repente ou o que arranca a vida no decorrer de muitos anos?

— Tanto uma coisa como outra são igualmente imorais — observou um dos convidados —, porque ambas têm a mesma finalidade — tirar a vida. O Estado não é Deus. Não tem o direito de tirar aquilo que não pode devolver, se quiser.

Entre os convidados estava um jurista, jovem de uns vinte e cinco anos. Quando lhe perguntaram a sua opinião, ele disse:

— Tanto a pena de morte como a prisão perpétua são igualmente imorais, mas, se me oferecessem a escolha entre a morte e a prisão perpétua, eu certamente escolheria a segunda. Viver de qualquer maneira é melhor do que não viver de todo.

Começou uma discussão animada. O banqueiro, que era então mais jovem e mais nervoso, súbito ficou fora de si, deu um murro na mesa e gritou para o jovem advogado:

— Não é verdade! Aposto dois milhões que o senhor não aguentaria numa cadeia nem cinco anos.

— Se o senhor fala sério — respondeu-lhe o advogado —, eu aposto que posso aguentar a prisão não por cinco, mas por quinze anos!

— Quinze? Aceito! — gritou o banqueiro. — Senhores, eu ponho na mesa dois milhões!

— De acordo! O senhor põe dois milhões, e eu, a minha liberdade! — disse o jurista.

E essa aposta selvagem e insensata realizou-se! O banqueiro, que naquele tempo não tinha conta dos seus milhões, mimado e leviano, estava encantado com a aposta. Durante a ceia, ele pilheriava com o jurista e dizia:

— Caia em si, jovem, enquanto ainda não é tarde. Para mim, dois milhões são uma ninharia, mas o senhor se arrisca a perder três ou quatro dos melhores anos de sua vida. Eu digo três ou quatro, porque o senhor não agüentará mais do que isso. Não esqueça tampouco, infeliz, que a prisão voluntária é muito mais penosa do que a compulsória. O pensamento de que, a cada momento, o senhor pode sair para a liberdade vai lhe envenenar toda a existência na prisão. Eu tenho pena do senhor!

E, agora, o banqueiro, andando dum lado para outro, recordava tudo isso e se perguntava:

— Para que foi essa aposta? Qual era o proveito disso? O jurista perdeu quinze anos de sua vida, e eu jogo fora dois milhões? Será que isso poderá provar aos outros que a pena de morte é pior ou melhor que a prisão perpétua? Não e não — é tolice e insensatez. De minha parte, isso foi um capricho de homem enfastiado, e, da parte do jurista, nada mais que avidez de dinheiro…

E ele continuou recordando o que aconteceu depois da famosa noitada. Ficou resolvido que o advogado passaria a sua reclusão, sob a mais severa vigilância, numa das alas construídas no jardim do banqueiro. Combinou-se que, no decorrer de quinze anos, ele ficaria privado do direito de atravessar a soleira da sua ala, de ver gente, ouvir vozes humanas e receber cartas e jornais. Permitiu-se que ele possuísse um instrumento musical, lesse livros, escrevesse cartas, tomasse vinho e fumasse. Pelo trato, suas comunicações com o mundo exterior poderiam ser apenas mudas, através de uma janelinha especialmente construída para esse fim. Tudo aquilo de que precisasse, livros, notas musicais, vinho e o resto, ele receberia, por intermédio de bilhetes, em qualquer quantidade, mas somente pela janelinha. O contrato previa todos os detalhes e minúcias, que faziam a reclusão rigorosamente solitária, e obrigava o advogado à permanência de quinze anos exatos, das doze horas de 14 de novembro de 1870 até às doze horas de 14 de novembro de 1885. A menor tentativa, da parte do jurista, de quebrar qualquer das condições, ainda que dois minutos antes do término do prazo, libertava o banqueiro da obrigação de pagar-lhe os dois milhões.

Durante o primeiro ano o jurista, conforme se podia julgar pelos seus lacônicos bilhetes, sofreu muito da solidão e do tédio. Da sua ala, constantemente, dia e noite, ouviam-se os sons do piano. Ele recusou o vinho e o tabaco. O vinho, escrevia ele, excita os desejos, e os desejos são os primeiros inimigos do prisioneiro; além disso, não existe nada mais aborrecido do que tomar bom vinho sem ver ninguém. Quanto ao tabaco, poluía o ar do seu quarto. No primeiro ano, mandaram-lhe livros, de preferência de conteúdo leve: romances com complicadas intrigas amorosas, contos policiais e fantásticos, comédias, etc.

No segundo ano, a música silenciou na ala, e o jurista, nos seus bilhetes, exigia somente os clássicos. No quinto ano, novamente ouviu-se música, e o prisioneiro pediu vinho. Aqueles que o observavam através da janelinha diziam que todo esse ano ele só comia, bebia e ficava deitado na cama, bocejava muito e falava consigo mesmo, em tom irado. Não lia livros. Às vezes, durante a noite, ele se punha a escrever, escrevia longamente e, pela madrugada, rasgava em pedaços tudo o que escrevera. Mais de uma vez ouviram-no chorar.

No sexto ano de reclusão, o prisioneiro dedicou-se com afinco ao estudo de línguas, filosofia e história. Ele se entregou a esses estudos com tamanha avidez, que o banqueiro mal tinha tempo de fazer vir os livros necessários. No decorrer de quatro anos, por exigência do prisioneiro, foram importados cerca de seiscentos volumes. No período dessa paixão, o banqueiro recebeu, entre outras, esta carta:

“Meu caro carcereiro! Escrevo-lhe estas linhas em seis idiomas. Mostre-as a pessoas competentes, para que as leiam. Se não encontrarem nem um erro, peço-lhe encarecidamente que mande dar um tiro de espingarda no jardim. Esse tiro me informará que os meus esforços não foram vãos. Os gênios de todos os séculos e países falam línguas diversas, mas em todos eles arde a mesma chama. Oh, se soubesse que inefável felicidade experimenta hoje a minha alma porque agora eu os posso compreender!” O desejo do prisioneiro foi atendido. O banqueiro mandou dar dois tiros de espingarda no jardim.

Mais tarde, depois do décimo ano, o jurista ficou sentado, imóvel, à mesa, e lia somente o Evangelho. Parecia estranho ao banqueiro que um homem que assimilara em quatro anos seiscentos tomos eruditos gastasse um ano inteiro na leitura de um único livro, de fácil compreensão e pouca espessura. Depois do Evangelho, vieram a história das religiões e a teologia.

Nos últimos dois anos de reclusão, o encarcerado leu em quantidade enorme, sem nenhum critério. Ora ele se ocupava de ciências naturais, ora exigia Byron ou Shakespeare. Havia bilhetes seus em que pedia que lhe mandassem simultaneamente uma obra de química, um compêndio de medicina, um romance e um tratado de filosofia ou de teologia. Suas leituras semelhavam algo como se ele, boiando no mar entre os destroços de um navio naufragado e querendo salvar sua vida, se agarrasse convulsivamente ora a um destroço, ora a outro!

II

O velho banqueiro relembrava tudo isso e pensava:

“Amanhã às doze horas ele recuperará a liberdade. Pelo contrato, eu terei de lhe pagar dois milhões. Se eu pagar, tudo estará perdido — eu estarei definitivamente arruinado”.

Quinze anos atrás ele não tinha conta dos seus milhões, mas agora tinha medo de se perguntar o que tinha mais: dinheiro ou dívidas? Jogadas imprudentes na Bolsa, especulações arriscadas e a impulsividade, da qual ele não conseguira se libertar nem mesmo na velhice, pouco a pouco minaram os seus negócios, e o ricaço orgulhoso, destemido e auto-suficiente transformou-se num banqueiro de categoria mediana, que tremia a cada alta ou baixa das ações.

— Maldita aposta — balbuciava o velho, apertando cabeça, em desespero. Por que esse homem não morreu? Ainda está com quarenta anos apenas. Ele me tirará os últimos recursos, casar-se-á, gozará a vida, jogará na Bolsa, e eu, como um mendigo, ficarei a olhá-lo com inveja e a ouvir dele, todos os dias, a mesma frase: “Eu lhe devo toda a felicidade da minha vida, permita-me que o ajude!” Não, isso é demais! A minha única salvação da bancarrota e da vergonha é a morte desse homem!

Soaram as três horas. O banqueiro ficou atento: na casa todos dormiam e só se ouvia, atrás das janelas, o farfalhar das árvores friorentas. Procurando não fazer nenhum ruído, ele tirou do cofre-forte a chave da porta que não fora aberta durante quinze anos, vestiu o capote e saiu da casa.

O jardim estava escuro e frio. Chovia. Um vento áspero e gelado uivava no jardim e não dava sossego às árvores. O banqueiro forçava a vista, mas não conseguia distinguir nem a terra, nem as alvas estátuas, nem a ala, nem as árvores. Aproximando-se do lugar onde ficava a ala, ele chamou o guarda por duas vezes. Não houve resposta. Decerto, o guarda se abrigara do mau tempo e agora dormia em algum canto da cozinha ou do caramanchão.

“Se eu tiver coragem suficiente para executar o meu plano”, pensou o velho, “as primeiras suspeitas recairão sobre o guarda.”

Ele encontrou, tateando no escuro, os degraus e a porta, e entrou no vestíbulo da ala; depois, tateando sempre, entrou no pequeno corredor e acendeu um fósforo. Ali não se via vivalma. Havia uma cama sem colchão e, num canto, a mancha escura de uma estufa de ferro. Os lacres da porta que dava para o quarto do prisioneiro estavam intactos.

Quando o fósforo se apagou, o velho, tremendo de emoção, espiou pela janelinha.

No quarto do prisioneiro ardia a chama baça de uma vela. Ele mesmo estava sentado diante da mesa. Só se viam as suas costas, os cabelos e as mãos, Sobre a mesa, nas duas poltronas e no tapete junto à mesa, espalhavam-se livros abertos.

Cinco minutos transcorreram sem que o prisioneiro se mexesse uma só vez… Quinze anos de reclusão tinham-no ensinado a permanecer perfeitamente imóvel. O banqueiro bateu na janelinha, e o prisioneiro não respondeu às batidas com um movimento que fosse. Então o banqueiro arrancou, com cuidado, os lacres da porta e introduziu a chave no buraco da fechadura. A fechadura enferrujada emitiu um som rouco e a porta rangeu. O banqueiro esperava que imediatamente se ouvisse uma interjeição de espanto e passos, mas transcorreram uns três minutos e atrás da porta tudo continuava silencioso como antes. Ele decidiu-se a penetrar no quarto.

Diante da mesa estava sentado um homem que não se parecia com os homens comuns. Era um esqueleto coberto de pele, com longos cachos femininos e barba hirsuta. Sua tez era amarela, com matizes terrosos, as faces encovadas, as costas longas e estreitas, e a mão que sustentava a cabeça descabelada era tão fina e magra que dava arrepios olhar para ela. Nos seus cabelos já brilhavam fios de prata e, olhando o seu rosto encovado de velho, ninguém acreditaria que ele tinha apenas quarenta anos. Ele dormia… Diante da sua cabeça inclinada, na mesa, estava uma folha de papel, na qual estava escrita alguma coisa em letra miúda.

“Homem lamentável!”, pensou o banqueiro. “Dorme e, decerto, sonha com os seus milhões! E, no entanto, basta que eu segure esse semimorto, atire-o na cama, abafe-o de leve com o travesseiro, e a mais minuciosa diligência policial não encontrará sinal algum de morte violenta. Mas leiamos primeiro o que ele escreveu aí…”

O banqueiro apanhou o papel da mesa e leu o seguinte:

“Amanhã às doze horas eu receberei a liberdade e o direito de comunicação com os meus semelhantes. Mas, antes de deixar este quarto e rever o sol, julgo necessário dizer-vos algumas palavras. Em sã consciência e diante de Deus, que me vê, eu vos declaro que desprezo a liberdade, a vida, a saúde, e tudo aquilo que nos vossos livros é chamado de bens da vida.

“Durante quinze anos estudei atentamente a vida terrena. É verdade que eu não via a terra e os homens, mas, nos vossos livros, sorvia vinhos aromáticos, entoava canções, caçava nos bosques cervos e porcos selvagens, amava mulheres… Beldades, leves como nuvens, criadas pela magia dos vossos poetas geniais, visitavam-me de noite e me sussurravam contos encantados que embriagavam a minha mente. Nos vossos livros, eu escalava cumes do Elbruz e do monte Branco e via de lá como nascia o sol de madrugada e, ao anoitecer, como ele inundava o firmamento, o oceano e os cumes das montanhas de ouro rubro; eu via de lá os relâmpagos fendendo as nuvens por cima da minha cabeça; eu via os campos verdejantes, os rios, os lagos, as cidades, ouvia o canto das sereias e a música das flautas dos pastores, sentia as asas de formosos demônios que vinham conversar comigo a respeito de Deus… Nos vossos livros, eu mergulhava em abismos sem fundo, fazia milagres, matava, queimava cidades, pregava novas religiões, conquistava reinos inteiros…

“Os vossos livros deram-me sabedoria. Tudo aquilo que a infatigável mente humana criou durante séculos está comprimido no meu cérebro num pequeno novelo. Eu sei que sou mais sábio do que todos vós. E eu desprezo os vossos livros, desprezo todos os bens terrenos e a sabedoria. Tudo é mesquinho, perecível, espectral e ilusório, como a miragem. Podeis ser orgulhosos, sábios e belos, mas a morte vos apagará da face da terra, assim como às ratazanas, e a vossa descendência, a vossa história, a imortalidade dos vossos heróis serão congelados ou queimados junto com o globo terrestre.

“Vós enlouquecestes e tomastes o caminho errado. Tomais a mentira pela verdade e a deformidade pela beleza. Vós ficaríeis admirados se, em conseqüência de circunstâncias imprevistas, nascessem, nas macieiras e laranjeiras, em vez de maçãs e laranjas, sapos e lagartixas, ou se as rosas de repente começassem a exalar odores de cavalo suado. Assim eu me admiro de vós, que trocastes o céu pela terra. Não vos quero compreender.

“Para demonstrar-vos na prática o meu desprezo para com tudo o que é a vossa vida, renuncio aos dois milhões com os quais sonhei em outros tempos como se fossem o paraíso que hoje eu desdenho. Para me privar do direito a eles, sairei daqui cinco horas antes do prazo combinado e, desse modo, quebrarei o trato…”

Tendo lido isso, o banqueiro repôs a folha na mesa, beijou a cabeça do estranho homem e, chorando, saiu da ala. Nunca antes, em tempo algum, mesmo após uma perda pesada na Bolsa, ele sentira por si mesmo um desprezo tamanho, como naquele momento. Chegando em casa, ele se deitou na cama, mas a emoção e as lágrimas não o deixaram adormecer…

No dia seguinte de manhã os guardas vieram correndo, pálidos, e lhe comunicaram que tinham visto o homem que vivia na ala se esgueirar pela janela para o jardim, dirigir-se para o portão e desaparecer. O banqueiro dirigiu-se imediatamente para a ala e, diante dos criados, constatou a fuga do seu prisioneiro. Para não dar azo a comentários supérfluos, tirou da mesa o papel com a renúncia e, voltando para o seu gabinete, trancou-o no cofre-forte.

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Anton Tchekhov (A Aposta)

Fontes:

Tchekhov, Anton. O malfeitor e outros contos da Velha Rússia. RJ: Ediouro


sexta-feira, 19 de julho de 2024

O caso Mattei

Cinema e Relações Internacionais - O caso Mattei revisitado: interesses petrolíferos e soberania nacional

Giorgio Romano Schutte, Professor Associado de Relações e Economia da Universidade Federal do ABC (UFABC). Membro do corpo docente dos Programas de Pós-Graduação em Economia Política Mundial (EPM) e em Relações Internacionais (PRI).

OIKOS | Rio de Janeiro | Volume 19, n. 1 • 2020 | www.revistaoikos.org | pp. 164-178

Recebimento do artigo Dezembro de 2019 | Aceite Março de 2020

Resumo: Este trabalho resgata a história da vida e da morte de Enrico Mattei, diretor-presidente da petrolífera estatal italiana, a Azienda Generale Italiana Petroli (Agip), posteriormente denominada Ente Nazionale Idrocarburi (ENI), de 1945 a 1962, ano de sua morte. Para tanto, recupera-se o filme “O Caso Mattei” (1972), uma ficção documental de Francesco Rosi, e se confronta as hipóteses colocadas a respeito da morte do executivo ao lado de documentos oficiais do governo estadunidense e da Justiça italiana, que se tornaram disponíveis décadas depois de seu falecimento. Mattei estava convencido de que o capitalismo italiano não deveria estar subordinado aos interesses das grandes petrolíferas (as Sete Irmãs) e dos EUA, mas que deveria buscar uma aliança com os países do então chamado Terceiro Mundo, em particular os produtores de petróleo que estavam buscando sua independência econômica. Com isso, acumulou muitos inimigos. Sua morte teria se dado em um trágico acidente aéreo, mas a tese de sabotagem e homicídio, antes tratada como “teoria de conspiração”, foi confirmada oficialmente pelo Estado italiano em 2003. Apesar das diferenças de época e lugar, há semelhanças marcantes entre os processos de desestabilização que tomaram conta do Brasil e da Petrobras após as descobertas de reservas do Pré- sal e aquele por que passava a Itália nos tempos de Enrico Mattei. Assim, uma revisão do filme de Francesco Rosi contribui para o entendimento acerca dos conflitos permanentes entre os interesses das grandes corporações de petróleo e a soberania nacional. 

Palavras-Chave Enrico Mattei; Francesco Rosi; ENI; petróleo; geopolítica; Itália; soberania nacional.

Introdução

Enrico Mattei, na qualidade de diretor-presidente da ENI, foi um dos grandes protagonistas da história Italiana no Pós-Guerra, até sua morte em um acidente de avião, em outubro 1962. São mais de 300 livros escritos sobre sua vida, sua política e sua morte. Um deles, de 1970, foi escrito por Fulvio Bellini e Alessandro Previdi, dois ex-combatentes da luta antifascista (partigiani), como havia sido também o próprio Mattei: “L´Assassinio di Enrico Mattei”.

O cineasta engajado Francesco Rosi tomou a obra como referência para fazer sua obra-prima, “Il Caso Mattei”, em português, “O Caso Mattei”, que ganhou a Palma de Ouro no Festival de Cannes em 1972. O que, no filme, foi apresentado ainda como hipótese por uns e como teoria de conspiração, por outros, foi confirmado como fato inconteste décadas depois por documentos tornados públicos pelos estados italiano e estadunidense. Esse trabalho pretende, a partir de uma resenha crítica detalhada do filme, recuperar um episódio da história italiana do Pós-Guerra que apresenta semelhanças com acontecimentos recentes na política brasileira.

O filme não só conta uma história complexa como é complexo ele mesmo, utilizando-se de uma estrutura narrativa não linear, misturando ficção com entrevistas reais, imagens de arquivo, cenas com o próprio Rosi na busca de informações para seu filme, cenas baseadas em fatos pesquisados, outras construídas com suposições e dramatizações, tudo sem uma clara separação. Personagens históricas são representadas sem legenda, o que dificulta a compreensão dos detalhes para aqueles que não são familiarizados com a história abordada. Rosi, de qualquer forma, mostrou para qualquer espectador a personalidade e o ativismo extraordinário do seu protagonista, que acumulou inimigos poderosos de todo tipo ao ponto de sua morte precoce ser vista por muitos como crônica de uma tragédia anunciada.

Até hoje, o filme continua uma pérola, pela força da narrativa e pela forma como Rosi representou o drama vivido, os interesses e as polêmicas que tiveram lugar. São inúmeros os paralelos entre esse momento histórico na Itália e a tentativa entre 2006 e 2015 no Brasil de buscar uma política externa independente que pudesse estar em prol do desenvolvimento nacional, tendo uma empresa estatal de petróleo no centro desta estratégia.

Nas primeiras duas seções, serão apresentados os contextos internacional e nacional. Depois, serão abordados alguns documentos secretos do Departamento de Estado e da CIA liberados a respeito. Na seção seguinte, a polêmica sobre a morte – se teria sido um acidente aéreo ou um atentado – terminando com algumas observações a respeito do ator Gian Maria Volonté, protagonista da trama, e as considerações finais à luz dos acontecimentos mais recentes na política brasileira.

Contexto internacional

O filme aborda, de forma não cronológica, episódios da atuação de Mattei nas esferas nacional e internacional entre 1945 e 1962. O executivo entrou para a história mundial pela oposição ao que ele mesmo batizou como as Sete Irmãs (Le Sette Sorelle), o cartel das empresas que controlava o petróleo dos poços até os postos de combustível e com isso se misturavam com a política externa dos EUA, colocando-se como atores políticos nos países produtores [1]. Essas nações, no entanto, após terem conquistado a independência política, começaram a demonstrar resistência ao status quo, até formarem, em 1960, seu próprio cartel, a Organização dos Países Exportadores de Petróleo (OPEP ou, pelo seu nome em inglês, OPEC).

A OPEP foi ignorada na primeira década da sua existência, mas ganhou grande protagonismo a partir de 1973, quando demonstrou sua capacidade de organização. É possível identificar inúmeros precursores desse processo (YERGIN, 2012). Inicialmente, Mohammed Mossadegh, que, em 1º de maio de 1951, decretou a nacionalização da Anglo-Iranian Oil Company [2] e foi, dois anos depois, vítima de um golpe apoiado pela CIA (Operação Ajax), que instalou o regime ditatorial e pró-estadunidense do Xá Mohammad Reza Pahlavi. Depois, em 1956, o então presidente do Egito, Gamal Abdel Nasser, nacionalizou o Canal de Suez, controlado até então pela Suez Canal Company (uma joint venture da França e do Reino Unido), com forte discurso de denúncia contra a dominação neocolonial, provocando uma reação militar por parte da França e do Reino Unido, com apoio do Israel. Houve ainda o caso do presidente do Iraque Abdul Karim Kassem, então no poder desde 1958, com a Iraq Petroleum Company (IPC) [3]. Kassem reivindicou a renúncia das áreas não utilizadas em sua concessão e a cessão de 20% do capital da IPC, além de 55% de seus lucros. Diante da rejeição, decretou o fim da concessão, em dezembro 1961, e a criação da Iraq National Oil Company. Foi vítima de um golpe de Estado e assassinato brutal em fevereiro 1963.

O cineasta Rosi mostra que Mattei entra nesse elenco. Não só enfrentou igualmente as Sete e seus aliados políticos, mas preferiu fazer acordos de interesses comuns diretamente com os países produtores, em condições melhores para ambos, reconhecendo inclusive as novas lideranças políticas que surgiram no Terceiro Mundo como interlocutores legítimos e potenciais parceiros. Nas palavras de Yergin: “(...) o homem que moveu o desafio ao poder das grande companhias e à própria estrutura da indústria de petróleo (...)” (YERGIN, 2012, p. 597).

Da Agip à ENI, do fascismo ao nacional-desenvolvimentismo italiano

Benito Mussolini, chefe político da Itália de 1922 a 1943, no âmbito da sua política autárquica, havia criado, em 1926, uma empresa estatal de petróleo e gás (P&G), a Azienda Generale Italiana Petroli (Agip). O projeto dos EUA era desmantelar a estrutura estatal, privatizá-la e abrir o mercado de energia para suas empresas multinacionais. Para liquidar a Agip, o governo provisório tinha nomeado, em 1945, um ex-líder da resistência católica da Lombardia, de 39 anos, como comissário extraordinário da empresa: Enrico Mattei. Rosi mostra, logo no início do filme, Mattei tomando conhecimento de documentos sobre a real situação da Agip e percebendo que ela talvez não fosse somente um instrumento de propaganda e blefe de Mussolini. Ao final, o problema da industrialização italiana no início do século 20 havia sido a falta de carvão. Se houvesse gás, como a Agip alegava, isso mudaria muito. Mattei resolveu contrariar seu mandato e, em vez de liquidar, apostou em um processo de fortalecimento da Agip que culminaria na criação da Ente Nazionale Idrocarburi (ENI), em 1953, mesmo ano da criação da Petrobras, como holding estatal.

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[1] As Sete Irmãs são referência às empresas que saíram do império de Rockefeler: Standard Oil of California (Chevron); Standard Oil of New Jersey (Esso); Standard Oil of New York (Mobil) e à Gulf, Texaco, BP e Shell. As primeiras cinco são estadunidenses, enquanto as últimas duas são, respectivamente, britânica e anglo-holandesa.

[2] De capital britânico e precursora da British Petroleum (BP).

[3] Uma joint-venture do que hoje são BP, Shell, Exxon/Mobil e Total.

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O primeiro passo foi a reincorporação de alguns quadros que haviam sido demitidos imediatamente após a libertação, fato explorado no filme por meio de diálogos de Mattei com o ex-presidente da Agip, que aceitou ser o seu colaborador. Mas Mattei também convidou vários ex-companheiros da resistência, de sua confiança, e que tinham as mesmas ideias que ele, algo que não aparece na obra cinematográfica. Ou seja, Mattei soube misturar perfeitamente a condução política e a busca de capacidade técnica-comercial. Ele tinha credenciais políticas por causa do papel desempenhado na organização da resistência católica. E, por sua sorte, um de seus amigos, Ferruccio Parri, ocupou o posto de primeiro-ministro em 1945. Em um primeiro momento, ele operava quase abaixo do radar, buscando, por exemplo, financiamento por fora do ministério ao qual estava vinculado, escondendo-se atrás de alguns contatos no novo governo da Democracia Cristã (DC), da qual era militante. Até que, em 1947, confirmou-se a presença de reservas expressivas de gás em Caviaga, no Vale do Pó, em torno das quais a Agip construiu uma rede de gasodutos para abastecer o parque industrial lombardo.

O filme mostra o aparente paradoxo de um líder da resistência que recuperava um dos símbolos do regime fascista e explora os argumentos em defesa de um papel forte do Estado para garantir que a Itália pudesse não só se desenvolver, mas reconquistar também sua soberania nacional em um regime democrático, e não ficar subordinada aos interesses norte-americanos. Ele tinha a clara noção de que a independência energética era chave para isso. Há uma cena na qual Rosi mostra Mattei respondendo a jornalistas que questionavam seu estatismo e sua convicção a respeito da presença e importância das reservas. É como se Rosi quisesse dar a possibilidade para Mattei explicar sua motivação, que ia muito além de ambições pessoais e refletia uma visão sobre o desenvolvimento e o lugar do seu país na divisão internacional de trabalho. Ele enxergava a Itália daquela época no meio entre os países líderes industrializados, de um lado, e o mundo em desenvolvimento lutando pela sua independência política, de outro. Há uma resposta muito forte de Mattei, que faz a pergunta retórica: “Se não houvesse essas riquezas de gás, porque a Esso faria tanta questão de ter a concessão de toda a Vale do Pó?” [4]. Ele defende que o controle estatal era fundamental para garantir que as riquezas pudessem estar a serviço de todos. Mais de que um empresário estatal, era um visionário que tinha uma missão. A Itália deveria superar sua inércia e enfrentar os desafios, visando um desenvolvimento soberano. Uma história que ele contava para reforçar seu ponto de vista apareceu em várias entrevistas suas à televisão italiana e é reproduzida quase literalmente no filme: “Um pequeno gato chega onde alguns cachorrões estão comendo num pote. Os cachorrões o atacam e o expulsam. Os italianos seriam como este pequeno gato. No pote, haveria comida para todos, mas alguém não quer deixar que cheguemos perto dele” [5].

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[4] Não se pode deixar de ver nesse e muito outros episódios um paralelo com a crítica à gestão da Petrobras durante os governos Lula e Dilma a partir da descoberta do pré-sal. Também nesse caso, havia quem alegava que o pré-sal era uma viagem, um exemplo da megalomania de Lula. Enquanto isso, os grandes players internacionais, entre os quais novamente aqueles que se confrontavam com Mattei, em particular a Exxon e a Shell, interessados para poder operar na área.

[5] Surpreendente o paralelo da história que o presidente Lula gostava de contar sobre o suposto complexo de vira-latas dos brasileiros.

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Estava na hora de se preparar para um confronto de igual para igual com os cachorros e superar a síndrome de ter que ser gatinho o resto da vida [6]. A ENI deveria se organizar como um conglomerado internacional com acesso aos poços e controlando os postos, com atividades industriais em toda a cadeia, da petroquímica, fertilizantes até a construção de plataformas para exploração no mar. Há um episódio mal explicado por Rosi a respeito da nacionalização da metalúrgica Pignoni, que produzia equipamentos para a indústria têxtil. O filme mostra Mattei recebendo um telefonema do seu amigo político, Giorgio la Pira, prefeito de Florença na época. La Pira pediu que a ENI se apropriasse da Pignoni para evitar seu falecimento, o que iria provocar desemprego e problemas sociais para milhares de famílias. O diálogo é engraçado, com La Pira insistindo que Deus lhe havia assegurado que Mattei o ajudaria, de um lado, e, de outro, Mattei resistindo e explicando que sua missão só daria certo se conseguisse manter a lucratividade da holding, que não poderia se tornar um hospital de empresas falidas. Algumas cenas depois, entre uma coisa e outra, Mattei pede à sua secretária que ligue para la Pira para dizer que está tudo bem. O que não aparece no filme é que, apesar de aceitar, por motivos políticos, a incorporação, e logo nacionalização, da empresa na holding ENI sob o nome de Nova Pignoni, ele conseguiu em seguida transformar a empresa em uma referência de produção de equipamentos para a indústria de P&G.

Rosi não escondeu as manobras e a utilização de métodos para justificar o fim do seu protagonista, como o financiamento a partidos e até acusações de suposto uso de verbas para fins não republicanos. Sem dúvida, aparece como um homem que teria sido um alvo preferencial para um procurador como Deltan Dallagnol ou um juiz como Sérgio Moro, mas, na época, os métodos eram outros. De todo modo, Mattei sabia não só garantir o apoio dos políticos em Roma, surfando e manipulando as várias correntes da DC, mas também fazendo alianças pragmáticas como outros partidos, inclusive, quando precisava, com o neofascista Movimento Sociale Italiano (MSI) e o Partido Comunista Italiano [7].

Em vários momentos, Rosi dá espaço a uma representação de jornalistas liberais atacando Mattei, inspirado no jornalista do Corriere de La Sera Indro Montanelli, que, em meados de 1962, alguns meses antes da morte de Mattei, começou a publicar uma série de artigos contra ele, criticando a política expansiva da empresa com endividamento, o seu uso político e a visão estatista, entre outras coisas. Em entrevista depois da morte de Mattei, ele manteve sua crítica focada na mistura indesejável entre política e negócios, como tivesse sido Mattei o inventor do pesado jogo político no mundo do petróleo (RAI EDUCATION, 2001).

Um elemento mencionado, mas pouco explorado, foi a decisão de Mattei de enfrentar os jornais liberais, em particular o Corriere della Sera, montando secretamente seu próprio jornal, Il Giorno, financiado pela ENI e fundos do Ministério de Participação Estatal. Esta operação foi revelada somente três anos depois do lançamento do jornal, quando já era consolidado com grande circulação e capacidade de fato de responder às críticas do Corriere della Sera. Além disso, o que não aparece no filme, teria havido ameaças de cortar os anúncios do grupo ENI para jornais que ultrapassavam certo limite [8].

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[6] Não deve ter sido por coincidência que ele escolheu como logomarca da ENI o cachorro-lobo com seis pernas soprando uma chama vermelha.

[7] Em uma belíssima cena Rosi faz Mattei se defender dos acordos com o PCI ao dizer: “mas   os comunistas italianos, não são italianos?”.

[8] No filme aparece a acusação de estar “comprando jornais”.

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De Bandung à Opep

A descoberta de reservas na Itália tinha dado a Mattei a credibilidade e o cacife de que precisava para levar seu projeto adiante, mas ele entendeu rapidamente que não iria garantir, nem de longe, a autossuficiência. Logo, buscava outra forma de não depender das Sete Irmãs para o abastecimento nacional: uma aliança direta com os países produtores. O filme explora em vários momentos essa visão sobre o mundo pós-colonial que Mattei defendia e que seria de interesse da Itália. Os anseios da Frente de Libertação Nacional (FNL na sigla em francês) pela independência da Argélia e a vontade de construir um Egito soberano de Gamal Abdel Nas- ser não eram uma ameaça, mas uma oportunidade e, além do mais, seria um processo irreversível que deveria ser reconhecido e apoiado em vez de negado e confrontado.

Em uma das cenas mais fortes, Mattei tenta explicar para um jornalista liberal sua visão do mundo sobrevoando o Oriente Médio com seu jatinho: “A única maneira de impedir que tudo seja revirado é considerar o Terceiro Mundo como um mundo de seres humanos, não de seres inferiores”. Estava surgindo um novo mundo que iria abrir possibilidades também para Itália. Essa visão não era somente pragmática, para internacionalizar a ENI, e ia além da discussão sobre o acesso a P&G. O que não é explicitado no filme é que não eram somente ideias dele. Mattei fazia parte de uma corrente de esquerda da Democracia Cristã chamada “Corrente de Base”, que defendia uma política externa independente com abertura para o sul. No VII Congresso Nacional da DC [9] , essa corrente apresentou em suas teses a seguinte diretriz para a política externa:

Intensificar as relações de cooperação e de intercâmbio com os países em desenvolvimento com especial ênfase na área mediterrânea, não somente com ajuda econômica, mas sobretudo, contribuindo fortemente com a conquista da sua liberdade política e civil [10] (SINISTRA DI BASE, 1959).

D´Agati caracterizou essa política como sendo “Uma política italiana de compreensão em relação aos países recém-independentes [11]” (D´AGATI, 2015, p. 200).

Mattei entendeu que os países produtores no Oriente Médio queriam se livrar do domíniodos oligopólios, os mesmos que queriam manter a ENI fora do grande jogo. Ou, em suas próprias palavras utilizadas no filme: “A tentativa era para sufocar-nos ou para nos manter frágeis” [12].

Ele começou uma ofensiva diplomática que acabou transformando a ENI em um “Ministério de Relações Exteriores B”. Registraram-se 110 viagens para 30 países, com destaque para Marrocos, Tunísia, Líbia, Egito, Irã, Gana, Índia, China e a União Soviética (ACCORINTI, 2006, p. 140). Sua relação com o Rei do Marrocos, Mohammed V, na época com grande influência espiritual no mundo árabe, com Nasser do Egito, um dos líderes nacionalistas, e o apoio ao movimento de independência da Argélia lhe dava muita credibilidade e gerava confiança. Assim, ele transformou o pouco êxito da tentativa italiana no passado de competir como país colonizador em um trunfo para poder se apresentar de igual para igual. Nas palavras de Sara D´Agati: “A perda de todas as possessões coloniais da Itália na África – Líbia, Eritreia e Somália –, após a derrota na Segunda Guerra Mundial, permitiu que Mattei fizesse grande uso da retórica anti-imperialista” [13] (D´AGATI, 2015, p. 199).

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[9] Há de lembrar ainda que a DC começa a apostar para o que era chamado de “abertura para a esquerda” ao fazer uma coalizão com o Partido Socialista Italiano (PSI), de centro-esquerda, em torno de um programa de reformas sociais que tinha um duplo objetivo: desenvolver o país e esvaziar o apoio popular ao Partido Comunista Italiano (PCI). Um dos pontos do programa do governo de centro-esquerda era a nacionalização da energia elétrica.

[10] “Intensificare i legami di collaborazione e discambiocon i Paesi sottosviluppati o coloniali, com speciale riferimento all’area mediterranea, nonsolo attraverso i necessari aiutie conomici, ma soprattutto attraverso un aperto contributo alla conquista delle loro liberta politiche e civili” (tradução própria).

[11] “An Italian policy of comprehension toward the newly independent countries” (tradução própria).

[12] “Il tentativo era o di soffocarci, o di mantenerci deboli” (tradução própria).

[13] The loss of all Italy’s colonial possession in Africa –Libya, Eritrea and Somalia – after the defeat in the Second World War, allowed Mattei to make great use of anti-imperialist rhetoric” (tradução própria).

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O executivo passou ao centro das atenções quando fechou acordos mais vantajosos para os países produtores, o que assim foi observado pela inteligência norte-americana: “Foi Enrico Mattei, chefe da ENI, quem primeiro quebrou o padrão tradicional de acordos de 50-50 com países do Oriente Médio quando negociou um acordo de 40-60 com o Irã em 1955”. [14] (CIA, 1960, p. 2). Dois anos depois, em um relatório do assessor especial para inteligência do Departamento do Estado, Cuming, é detalhado o segundo acordo firmado com o Irã, em agosto 1957, que deixava 75% para aquele país, mas em uma parceria que implicava a participação 50/50 nos custos de exploração e produção [15]. O relatório comentou ainda: “(…) o caráter agressivo de Mattei, uma figura poderosa no Partido Democrata Cristão Católico, que é considerado um dos líderes empresariais mais enérgicos e empreendedores da Europa Ocidental” (DEPARTAMENT OF STATE, 1957, p. 938) [16].

No filme, há uma cena que retrata a entrevista que ele deu a um jornalista da revista Time para um coverstory, enquanto pescava trutas. Indagado sobre os acordos 75/25, Mattei explica que se a alternativa para a ENI fosse ficar dependente de acordos com as Sete Irmãs, estas iram dar para a ENI no máximo 25%, exatamente o que ele ganhou com os acordos diretos. À pergunta sobre se ele não estaria distorcendo a estrutura da indústria petrolífera mundial e prejudicando os interesses do ocidente, Mattei responde que as corporações não são o Ocidente, e que essas pensam somente em seus interesses. Ele assumiu rebelar-se contra uma lógica que deixava a Itália como um país de Série B e os países produtores em um estado de subdesenvolvimento e enfatizou que sua briga fazia parte de uma revolução que tomava conta do Terceiro Mundo. Rosi insiste em dar esse palco para Mattei em outra cena, que relata a palestra do executivo em setembro de 1960, no Oitavo Congresso Internacional sobre Petróleo e Gás, em Piacenza. Em um discurso que incomodou os representantes das Sete Irmãs presentes, ele defendeu que o Estado moderno assumisse sua responsabilidade no campo econômico para garantir o desenvolvimento e a necessidade de se chegar a novas relações baseadas em uma direta colaboração entre Estados produtores e consumidores, superando o que chamou de velho colonialismo. Após os acordos com o Irã, outros se seguiram, com Tunísia, Egito e Marrocos.

Infelizmente, não há nenhuma menção direta no filme à Opep, criada justamente em 1960, embora a ENI tenha participado da primeira fase de construção da organização, não só como fonte inspiradora, mas com estudos sobre a indústria e o funcionamento do monopólio das Sete Irmãs. Skeet relatou a estreita relação do Mattei com a Opep: “Mattei, antes de sua morte, teve muitos contatos com funcionários da Opec e empresas nacionais da Opec e, de fato, se ofereceu e a ENI em oposição às Sete Irmãs, como uma força nova e preferencial em questões internacionais de petróleo” (SKEET, 1988, p. 37-38) [17].

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[14] “It was Enrico Mattei, head of ENI, who first broke the traditional pattern of 50-50 agreements with Middle Eastern countries when he negotiated a 40-60 deal with Iran in 1955” (tradução própria).

[15] No caso não encontrar petróleo os gastos iriam 100% para a ENI. Isso destoava muito da prática das sete irmãs, que não somente pagavam menos, mas que não envolviam os países produtores na exploração e produção como parceiros.

[16] “The aggressive character of Mattei, a powerful figure in the Catholic Christian Democratic Party, who is reputed to be one of the most energetic and enterprising business leaders in Western Europe”.

[17] “Mattei, before his dead had had many contacts with OPEC officials and Opec national companies and had in fact offered himself and ENI in opposition to the Seven Sisters as a new and preferred force in international oil matters.” (tradução própria).

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A um determinado momento Rosi faz Mattei dizer: “Se eu não consigo enfrentar o monopólio absurdo, as pessoas em países com petróleo debaixo de seus pés irão”. Em retrospectiva, o sheik Mohammad Sanusi Barkindo, então secretário-geral da Opep, declarou, em 2016:

O principal catalisador para o nascimento (da Opep) foi quando as ‘Sete Irmãs’, que efetivamente controlavam a quantidade de óleo extraído e decidiam quanto era vendido, a quem e a que preço, reduziu unilateralmente os preços divulgados do petróleo que forneciam. Foi quando tanto a ENI quanto a Opep ajudaram a definir um novo contexto para o futuro do mercado internacional de petróleo. Suas atuações foram atos pioneiros. [18] (BARKINDO, 2016).

Há de se dizer, porém, que Mattei, embora saudasse a criação da organização, tinha outra visão: o foco não deveria ser reivindicar simplesmente aumento dos preços, mas controle estatal direto sobre a indústria, ou seja, nacionalização para poder se apropriar da renda dos oligopólios internacionais e colocá-la a serviço do desenvolvimento (COLITTI, 2010), o que iria acontecer somente uma década depois.

Na mira do Tio Sam

Quarenta anos depois, uma farta documentação foi liberada para o público pelo Departamento de Estado norte-americano. O material evidencia a grande preocupação por parte do governo dos EUA e das próprias Sete Irmãs em relação às políticas implantadas por Mattei. Em relatório de dezembro 1958, na seção “Principais problemas operacionais ou dificuldades enfrentadas pelos EUA [19]  ” havia uma extensa reflexão sobre “As aspirações italianas no campo do petróleo e atuação de Enrico Mattei” [20]:

Os Estados Unidos estão preocupados com Mattei por causa de sua influência em certos aspectos da política externa italiana. Suas operações, dentro e fora da Itália, tendem a promover ideias nacionalistas e ações unilaterais da Itália no Oriente Médio, norte da África e América Latina. Essas operações são agora um dos pontos de partida para as reivindicações da Itália de “interesse especial” e  “competência especial” nessa área ... Da mesma forma, as operações estrangeiras apoiadas por seu governo ameaçaram relacionamentos de longa data entre determinados governos e empresas estrangeiras. Se as relações entre empresas dos EUA e governos estrangeiros se deteriorarem como resultado dessas operações, seria praticamente impossível evitar o envolvimento do governo dos EUA nas consequentes disputas [21] (DEPARTMENT OF STATE, 1958, p.500).

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[18] “The main catalyst for its birth being when the ‘Seven Sisters’, who effectively controlled the quantity of oil extracted and decided how much was sold, to whom, and at what price, unilaterally reduced the posted prices of the crude they supplied. Back then, both Eni and OPEC helped set the context for the future of the international oil market. Their formations were pioneering acts.” (tradução própria).

[19] “Major operating problems or difficulties facing the United States.” (tradução própria).

[20] “Italy´s Oil aspirations and the role of Enrico Mattei” (tradução própria).

[21] The United States is concerned by Mattei because of his influence on certain aspects of Italian foreign policy. His operations, both inside and outside Italy, have tended to foster nationalistic ideas and unilateral action by Italy in the Middle East, North Africa and Latin America. These operations are now one of the points of departure for Italy’s claims of “special interest” and “special competence” in that area… Similarly his government supported foreign operations have threatened long-standing relationships between certain governments and foreign companies. Should relationships between U.S. companies and foreign governments deteriorate as a result of these operations, it would be virtually impossible to avoid the involvement of the U.S. Government in consequent disputes.” (tradução própria).

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O relatório mencionou também o apoio político do presidente Gronchi e o apoio popular do qual Mattei gozava. Os documentos (relatórios, atas de reuniões e telegramas da Embaixada dos EUA em Roma) mostram que o governo italiano tentou responsabilizar as barreiras impostas à ENI para explicar a atitude agressiva de Mattei e solicitou em vários momentos que o governo dos EUA convencesse a Esso a garantir o abastecimento a preços baixos para a ENI como forma de resolver as arestas de forma definitiva. Todo o envolvimento do governo dos EUA não aparece no filme, que acabou, assim, sugerindo que as Sete Irmãs atuavam na tentativa de estrangular Mattei somente com apoio da quarta coluna na Itália: a mídia de orientação liberal e os inimigos políticos. Talvez Rosi não tivesse, em 1970, noção da mobilização que Mattei tinha provocado nas estruturas de inteligência, de relações exteriores e até na presidência dos EUA.

O filme mostra um encontro do italiano com um magnata do petróleo. Parte da cena reproduz quase literalmente o que o próprio Mattei relatara em uma entrevista à Rai, na época do encontro que teve com Arnold Holland, da Shell, em dezembro 1959, e na qual Holland rejeita de forma grosseira uma proposta para construir conjuntamente uma refinaria na Tunísia, projeto que ambos estavam elaborando. Mattei interrompe a entrevista e avisa que eles vão se lembrar da conversa pelo resto da vida (RAI, 2001, 0:18min). Nesse caso, o filme segue a sequência cronológica dos fatos e mostra, na cena seguinte, a resposta do Mattei. Se a exclusão das Sete Irmãs da exploração de P&G na própria Itália já as tinha irritado e os acordos com os países produtores acendido os alarmes, o próximo passo de Mattei foi de uma ousadia inesperada: uma viagem para Moscou para fazer um acordo da ENI com o governo soviético para garantir o fornecimento de cerca 25% da sua demanda por petróleo.

O italiano tinha feito seus primeiros contatos com Moscou (e também com Beijing) em uma viagem realizada em 1958. Na época, isso levou o embaixador dos EUA a cobrar explicações diretamente do primeiro-ministro da Itália, Amintore Fanfani. O diplomata anotou: “Comentei que uma das coisas que nos preocupava era o efeito da visita de Mattei a Moscou e Pequim”. E ainda lembrou, em palavras que mostravam sua irritação, que: “Não foi só que a ENI esteve envolvida nessa atividade, mas também que o próprio Mattei, um homem de considerável proeminência, optou por fazer essa viagem e ainda tirar o máximo proveito e publicidade dela.” [22] (DEPARTMENT OF STATE, 1958, p.510)

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[22] “It was not only that ENI was involved in this activity but that Mattei himself, a man of considerable prominence, chose to go and chose to extract the utmost publicity from the trip.” (tradução própria).

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Resta evidenciado, assim, que a questão sobre a Itália e a ENI foi se tornando cada vez mais personificada na figura de Mattei. No documento referido acima, logo após os trechos transcritos, há 36 linhas “notdeclassified” (ou seja, que permanecem sob o manto do sigilo, não podendo ser lidas pelo público), mesmo 40 anos depois. Agora, a concretização dos acordos de fornecimento do petróleo soviético para Itália a preços extremamente vantajosos agravou muito a situação. Em ação coordenada, conversas foram marcadas com o Mattei, primeiro com um representante da Esso (W. R. Stott) e, depois, em Roma, com o vice-ministro de Relações Exteriores, George Ball, em maio 1962, com o intuito de enquadrar Mattei. R. W. Stott era na época representante da Esso na Itália. Ele foi envolvido depois, na década de 1970, na CPI realizada pelo Congresso Americano sobre corrupção das grandes corporações de petróleo.

No relatório dessa CPI, confirmou-se que “Todos os pagamentos foram destinados a apoiar os vários grupos que estão em posição de promover os interesses da Companhia” [23] (US CONGRESS, 1973 p. 287). É provável, portanto, que tenha existido uma tentativa de corromper Mattei. No filme, é feita a sugestão de que teria sido ofertado um cargo para o italiano em uma das grandes petrolíferas, com salário muito superior ao que ele recebia, ao que ele respon- deu dizendo que suas ambições eram outras. Na conversa com Ball, Mattei teria tentado explicar que os EUA deveriam estar contentes com sua atuação [24]: “Mattei disse que em muitas das novas áreas em desenvolvimento da África e Ásia havia desconfiança em relação aos EUA, Reino Unido e França, e que sua presença ali havia impedido os países do bloco de mudarem de lado.” [25] (DE- PARTMENT OF STATE, 1962, Nº 303).

Em um memorando de uma conversa no Departamento de Estado sobre Mattei, realizada em 17 março de 1962, seis meses antes da sua morte, apareceram os pontos principais que o governo dos EUA esperaria como contrapartida de um acordo vantajoso para o fornecimento de petróleo para Itália:

1) that he would not interfere with the percentage split with the governments of producing countries; 2) that he would be “fair” to the Western oil companies in Italy itself both with regard to markets and exploration; and 3) that he would reduce his trade in oil with the Russians. [26] (DEPARTMENTO OF STATE, 1962, p. 833).

E, no final da conversa, se lê: “O que os EUA deveriam fazer sobre Mattei?” [27], com a estratégia “Poderíamos tentar vencê-lo” [28] e…um trecho “notdeclassified” (idem), que muito provavelmente se referia a um plano B.

A CIA, por sua vez, registrou que a ENI na verdade não estava só importando petróleo da União Soviética para abastecer o mercado interno, mas também para revenda tanto como petróleo cru como petróleo refinado na Itália (CIA, 1961, p. 13). Analisou-se se a estratégia da União Soviética seria política (tornar um país da OTAN dependente de seu fornecimento) ou econômico-comercial (abrir novos mercados). Fato era que o preço estava muito bom: US$ 1 da época por barril (CIA, 1960, p.5), equivalente a US$ 8,33 de 2018. Em um relatório anterior da mesma agência, tinha sido explicitado que “Aparentemente, muitas empresas de petróleo dos EUA estão bastante preocupadas com o recente acordo entre a União Soviética e a ENI da Itália” [29] (CIA, 1960, p.12). O filme apresenta como fato histórico que os acordos com a União Soviética implicaram em pagamento de uma percentagem dos contratos não só para a DC, mas também 2,5% para o PCI.

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[23] All payments were intended to support the various groups that are in a position to promote the interests of the Company”. (tradução própria).

[24] Esse relato é muito curioso se lembrarmos de que o motivo da conversa era justamente os acordos que o próprio Mattei tinha feito diretamente com a União Soviética.

[25] “Mattei said that in many of the newly developing areas of Africa and Asia there was distrust of the US, UK and France and that his presence there had prevented Bloc countries from moving in” (tradução própria).

[26] “1) that he would not interfere with the percentage split with the governments of producing countries; 2) that he would be “fair” to the Western oil companies in Italy itself both with regard to markets and exploration; and 3) that he would reduce his trade in oil with the Russians” (tradução própria).

[27] “What the United States should do about Mattei?” (tradução própria).

[28] “We could try to win him over” (tradução própria).

[29] Many US oil companies are apparently greatly concerned about the recent agreement between the Soviet Union and ENI of Italy” (tradução própria)

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Benito Li Vigni, ex-assessor de Mattei até sua morte, acrescentou dois outros elementos. Ele relatou os acordos secretos entre a ENI e Kassem, durante o episódio do cancelamento das concessões do IPC (BP). E afirmou que estava previsto um encontro com presidente J.F. Kennedy, em dezembro 1962, no qual o norte-americano teria apresentado uma oferta articulada junto com a Esso de abastecimento de petróleo à Itália para chegar a um acordo político de uma vez por todas. O autor afirmou que, embora estivesse muito perto do Mattei em 1962, ele tomou conhecimento dos detalhes somente a partir de pesquisa em arquivos secretos nos EUA (LI VIGNI, 1996; 2014).

Morte(s) anunciada(s)

Há cenas dramatizando o momento do acidente e dos destroços do avião no início, no fim e no meio filme. O que Rosi queria não era exatamente relatar a vida ou a política de Mattei em si, mas desvendar o que considerava um dos mistérios italianos: afinal, foi um acidente ou um atentado? Ao mostrar o conjunto de polêmicas nas quais Mattei se envolveu em poucos anos, ele já induz a uma leitura de uma morte anunciada, embora dê também espaço às explicações pseudo-científicas da versão oficial da época a respeito do acidente aéreo. Ele acumulou inimigos de peso demais. Além das próprias Sete Irmãs e o governo dos EUA, havia as ameaças de morte a ele e a sua família pela Organização Armada Secreta (Organisation Armée Secréte – OAS), grupo clandestino da extrema direta francesa que lutava para manter Argélia como colônia. E o profundo desconforto da inteligência francesa com as ligações de Mattei e o movimento pela libertação [30]. E ainda havia os ataques constantes dos inimigos políticos dentro e fora da DC e o papel da máfia siciliana.

Na preparação da obra, Rosi contratou um famoso jornalista, Mauro De Mauro, para fazer uma reportagem sobre os últimos dois dias de vida de Mattei, quando ele visitava a Sicília, e anunciou sua política em torno da descoberta de gás em Gagliano, município onde ele faria seu último comício, que ganhou destaque no filme. Há uma cena que pretende reproduzir a ligação do Rosi com De Mauro fazendo-lhe esta proposta. Isso porque Fulvio Bellini e Alessandro Previdi, os autores do livro que inspirou o filme, tinham defendido a tese de assassinato pela máfia siciliana. Logo, uma reconstrução dos últimos dois dias pudesse dar uma pista. Aí a mistura de ficção e realidade se tornou dramática. Durante o seu trabalho na Sicília, De Mauro foi sequestrado e seu corpo nunca foi encontrado. Para quem não conhece esse episódio, fica um pouco difícil de acompanhar as cenas que retratam as reações ao desaparecimento de De Mauro e as teses levantadas sobre os motivos.

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[30] Mattei vislumbrava que após a libertação a ENI pudesse se apresentar como parceiro privilegiado e disposto a ajudar na construção de uma empresa nacional argelino. O que aconteceu foi que De Gaulle, como seu prestigio de homem conservador, negociou a independência justamente sob a condição de manter os interesses das empresas petrolíferas francesas. Argélia declarou sua independência em 2 de julho de 1962, três meses antes da morte do Mattei.

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Fato é que ele tinha anunciado ter encontrado informações explosivas. A respeito deste comentário, Leonardo Sciascia, o grande escritor siciliano e profundo conhecedor da máfia, comentou: “De Mauro falou as coisas certas às pessoas erradas e as coisas erradas as pessoas certas” [31] (SANCTIS, 1972). Rosi apresenta no filme as várias possibilidades. De Mauro já era considerado um inimigo da máfia por outras reportagens que tinha feito e a informação que disse ter descoberto não necessariamente dizia respeito ao caso Mattei.

Gian Maria Volonté 

A história rica, fascinante e complexa na mão de um ícone do cinema engajado, Francesco Rosi, já seria garantia de sucesso. Mas o que torna o filme inesquecível é a representação da figura de Mattei pelo ator Gian Maria Volonté, símbolo do cinema político italiano. Embora ele seja conhecido na Itália pelos papéis em filmes políticos [32], tinha se tornado famoso anteriormente para o público norte-americano pelos seus papéis coadjuvantes nos spaghetti-westerns de Sergio Leone, em particular no Por um punhado de dólares (1964). Além do Caso Mattei, Rosi e Volonté fizeram três outros filmes juntos: Lucky Luciano (1973), Cristo sièfermato a Eboli (Cristo parou em Eboli, 1979) e Cronaca di una morte annunciata (Crônica de uma morte anunciada, 1987). O Caso Mattei dividiu, em 1972, a Palma de Ouro em Cannes com outro filme político italiano, A Classe Operária vai ao Paraíso, no qual Volonté também era o ator principal.

Ao assistir às entrevistas do próprio Mattei fica evidente que Volonté se preparou muito bem e conseguiu incorporar o espírito e estilo do seu personagem, apesar da crítica de que ele teria sido mais cativante de que o próprio Mattei. A respeito disso, Indro Montonelli, historiador e jornalista, comentou na noite da estreia: “É verdade: Mattei era mais cinza em comparação com a representação por Volonté. Mas a verdade é que Mattei quis sempre ser mais assim [33]” (GAUDIO, 2014, p. 190).

Considerações finais

O que Rosi não poderia imaginar é que em 1995, em uma delação premiada, o ex-mafioso Tommaso Buscetta afirmou que a máfia siciliana havia explodido o avião. De acordo com seu relato, teria sido a pedido da máfia americana, que tinha interesses nas empresas petrolíferas norte-americanas. A partir daí, a Procuradoria Geral de Pavia, no norte de Itália, perto de onde caiu o avião, reabriu, em 1997, o inquérito. O principal passo foi exumar a ossada de Mattei e constataram-se de fato traços de explosivos. E, em 20 de fevereiro de 2003, o caso foi encerrado de forma curiosa: arquivamento com relação aos responsáveis, mas constatando que fora um atentado. A promotoria chegou a sugerir que deveria ter havido participação de pessoas de dentro da ENI e de dentro das agências de inteligências do Estado italiano.

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[31] “De Mauro ha dettola cosa giusta all’uomo sbagliato, e la cosa sbagliata all’uomo giusto (tradução própria).

[32] O Incrível Exército de Brancaleone (1966) de Mario Monicelli; A Classe Operária vai ao Paraíso (1972) de Elio Petri; Giordano Bruno (1973)de Giuliano Montaldo; Cristo parou em Eboli (1979) de Francesco Rosi baseado na autobiografia de Carlo Levi, e O caso Moro (1988), de Giuseppe Ferrara.

[33] “Si è vero: Mattei era piùgrigiodi como l´há fato Volonté..ma la verità è Che Mattei avrebbe voluto essere próprio cosi” (tradução própria)

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Assim, o que era uma teoria da conspiração se tornou a versão oficial do Estado Italiano. Sabemos que foi assassinato, mas continua a dúvida dos motivos específicos. Curiosamente, isso é pouco absorvido na literatura. Assim, por exemplo, até agora, Yergin, em seu monumental livro sobre a história mundial do petróleo, não atualizou sua avaliação de que “(...)o mais provável é que sua morte tenha sido um acidente, causado pelo mau tempo e pelo seu próprio caráter” (YERGIN, 2012, p. 598).

Em todo o caso, a sua morte mudou o rumo da história na direção mais cômoda para as Sete Irmãs, para o governo dos EUA, para a máfia italiana e para os interesses liberais internos. Em entrevista para um documentário sobre o caso, o Senador Giorgio Ruffulo, ex-dirigente da ENI no período entre 1956 e 1961, confirmou que, depois da morte do Mattei, as relações da Itália com os grandes oligopólios mudaram profundamente, terminando a visão criativa sobre as possibilidades de política externa independente, embora admitisse que não se sabe se, vivo, Mattei teria tido condições de dar continuidade a sua batalha, devido às grandes pressões sobre a ENI e ele próprio (RAI EDUCATION, 2001, 0:51min).

Com relação a De Mauro, no inquérito contra o chefe mafioso Totó Riina, este foi acusado e absolvido em 2011 pelo seu desaparecimento e suposto assassinato [34], mas o juiz chega a afirmar sobre esse caso que “o jornalista foi eliminado porque tinha ido muito em fundo na suapesquisa sobre os últimos momentos do Enrico Mattei”[35].

Embora em situações e condições históricas e políticas completamente diferentes, é possível traçar paralelos entre esse momento histórico na Itália e a tentativa entre 2006 e 2015 do Brasil de buscar uma política externa independente e em prol do desenvolvimento nacional, tendo uma empresa estatal de petróleo no centro da estratégia. Muitas das críticas e acusações que Mattei sofreu são parecidas às que se ouviam naqueles anos no Brasil, muito embora os métodos para mudar o rumo da história tenham sido outros.

No Brasil, no campo das especulações e do que, hoje em dia, se trata como teorias de conspiração, há, por exemplo, a indagação sobre o porquê da recriação da IV Frota americana, para vigiar o Atlântico Sul, justo no momento da descoberta do Pré-sal. Na mesma linha, muito se diz a respeito da proximidade existente entre o ex-juiz Sergio Moro, o procurador federal Deltan Dallagnoll e órgãos estatais e acadêmicos dos Estados Unidos. Foram eles que encamparam desde o início a Operação Lava Jato, que teve os contratos e obras da Petrobras como seu principal foco de investigação e que foi também, em última análise, a responsável pela derrubada de Dilma Rousseff e pela prisão do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva.

Com relação ao interesse estratégico dos EUA no pré-sal, este aparece tanto em documentos oficiais, como o relatório Blue Print for a Secure Energy (2011), quanto nos documentos vazados pelo Wikileaks. Foram no total seis chamados “telegramas” (correspondências entre o Consulado dos EUA no Rio de Janeiro e diversos órgãos do governo em Washington) [36] que mostram como a missão norte-americana no Brasil acompanhou de perto as discussões sobre o novo marco regulatório para o pré-sal em 2009 e 2010, e como isso foi feito em sintonia com  os interesses das petroleiras de seu país, em particular a Exxon e a Chevron. E, em setembro de 2013, documentos da Agência de Segurança Nacional dos Estados Unidos (NSA) vazados pelo ex-analista da agência Edward Snowden indicaram que a Petrobras tinha sido alvo de espionagem dos EUA [37].

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[34] Foi condenado por vários outros assassinatos a pena prisão.

[35] “..che il giornalista venne eliminato perché si era spinto troppo oltre nella sua ricerca della verità sulle ultime ore di Enrico Mattei”. Tradução própria. Fonte: http://www.fattodiritto.it/mauro-de-mauro-ucciso-per-le-notizie-sulla-vera-morte-di-mattei/ e http://www.archivioantimafia.org/giornali/messaggero/demauro1.pdf

[36] Um destes tinha como título subjetivo: “A indústria de petróleo vai conseguir combater a lei do pré-sal?” https://wikileaks.org/Nos-bastidores-o-lobby-pelo-pre.html

[37] “EUA espionaram Petrobras”, dizem papeis vazados por Snowden. (https://www.bbc.com/portuguese/noticias/2013/09/13090 _eua_snowden_petrobras_dilma_mm) A tecnologia envolvendo a exploração em alta profundidade na camada pré-sal e o nome da Petrobras apareceram em um documento usado em um treinamento de agentes da NSA, que ensinava sobre como acessar redes privadas de empresas estrangeiras.

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Em março de 2014, ano eleitoral, é deflagrada a primeira fase da Operação Lava Jato voltada para as ações da Petrobras. Os Estados Unidos teriam interesse em derrubar o Partido dos Trabalhadores do poder, já que a sigla estava implantando uma política soberana de exploração do petróleo do pré-sal, contrariamente aos interesses norte-americanos e de suas empresas? Teria utilizado Moro e sua turma para alcançar este objetivo, em uma espécie de golpe moderno (Lawfare)?

Embora, em particular, os estudiosos de Relações Internacionais tendam a se distanciar de hipóteses que possam parecer teorias da conspiração, o estudo de casos como o de Enrico Mattei mostra que não há motivos para pressupor que o poder político e econômico não possa se despir de escrúpulos para defender seus interesses e privilégios. Ao final, muitas das críticas e acusações que Rosi nos mostra são quase idênticas ao que se ouvia nestes anos no Brasil. Já os métodos para mudar o rumo da história são outros. Assim, o filme pode servir para ilustrar o mundo da década de 1950 e 1960, mas também a teia de interesses políticos e econômicos em torno das grandes empresas petrolíferas, que continua operando.

Referências

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COLITTI, Marcello (2010). Quando l´ENI aiutaval´OPEC a nascere. Equalinza & Liberta. Revista di critica sociale. Setembro.

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