domingo, 29 de janeiro de 2023

O Tolstói dos zulus é Tolstói!

O Tolstói dos zulus
Não sei em que momento deixamos de ver o evidente: pessoas são pessoas, quaisquer que sejam os corpos

Por José Eduardo Agualusa O Globo, 28/01/2023

No passado dia 19, uma atriz brasileira, Keyla Brasil, invadiu aos gritos o palco de um dos mais conhecidos teatros de Lisboa, o São Luís, onde estava a ser representada a peça “Tudo sobre a minha mãe”. Keyla protestava contra a escolha de um homem cis para interpretar o papel de uma personagem transexual.

 
Atriz Keyla Brasil no palco do Teatro São Luiz, em Lisboa, quando interrompeu a peça 'Tudo sobre minha mãe' para protestar contra falta de representatividade travesti no espetáculo Reprodução/Instagram/Fado Bicha

O protesto de Keyla levou a companhia de teatro a repensar a sua opção, contratando uma atriz trans para o papel. Ao mesmo tempo, gerou um forte debate no meio artístico e na sociedade em geral.
Aqueles que se indignaram com o protesto de Keyla, quer à direita, quer à esquerda, argumentam que o teatro, como o cinema, é o lugar privilegiado da representação: atores vestem a pele de outras pessoas. Tal como um escritor, um ator, enquanto tal, é um ser múltiplo, capaz de dar corpo a todas as versões da espécie humana.

Os que estão do lado de Keyla lembram as dificuldades por que passam as pessoas trans, no seu dia a dia. Atores trans, em particular, raramente são chamados para desempenhar qualquer papel. Assim, é natural que se sintam indignados quando um homem cis fica com o papel de uma personagem trans. Há ainda quem insista na questão da representatividade, comparando a situação dos atores trans com a dos atores negros — a transfake seria equivalente, para a identidade de gênero, ao infame blackface.
“Tudo sobre a minha mãe” é uma peça do australiano Samuel Adamson, baseada no conhecido filme de Pedro Almodóvar. Keyla Brasil conseguiu, nos rápidos minutos da sua intervenção, tudo o que Samuel Adamson (e, antes dele, Pedro Almodóvar) pretendiam: chamar a atenção para o drama das pessoas trans, sacudindo conceitos e preconceitos. Por isso, merece aplausos. Já a forma como humilhou o ator que representava o papel da personagem trans apenas merece censura.

No último número da revista Time, Yuval Noah Harari assina um ensaio com o título “A perigosa busca pela identidade”. Para o historiador israelense a demanda identitária torna-se perigosa a partir do momento em que cria muros, encerrando as pessoas em pequenos nichos: “Pessoas são entidades incrivelmente complexas. Se nos focarmos apenas numa pequena parte da nossa identidade, nunca chegaremos a saber quem verdadeiramente somos.”
No mesmo ensaio, Harari recorda a resposta do jornalista afro-americano Ralph Wiley a uma velha questão racista:
“Quem é o Tolstói dos zulus?”
“O Tolstói dos zulus é Tolstói!”, respondeu Wiley.
Da mesma forma, o Mandela dos europeus é Nelson Mandela. O Confúcio dos latino-americanos é Confúcio. O Gandhi dos australianos é Gandhi. E assim por diante.

Não sei em que momento deixamos de ver o evidente: pessoas são pessoas, quaisquer que sejam os corpos que ocupam ou o lugar em que nasceram. Uma pessoa que não seja capaz de se reconhecer na Humanidade inteira não é, certamente, uma pessoa inteira.

Atores não deveriam estar nos palcos representando os grupos a que pertencem. Deveriam estar nos palcos representando personagens diversas, e fazendo-nos acreditar (e participar) nessas outras vidas.

 

Atriz trans brasileira invade palco de teatro, sofre ameaça e deixa Lisboa

Por Gian Amato

Keyla Brasil afirma que está "protegida nas montanhas" na sequência do episódio que ganhou repercussão em Portugal ao conseguir afastar um ator da peça.

Das ruas para as TVs, colunas e páginas dos principais jornais de Portugal. Em uma noite, e com apenas um ato de protesto, a atriz trans, professora, ativista e prostituta brasileira Keyla Brasil diz que pode ter iniciado uma revolução na cultura do país.
Editoriais escritos nos últimos dias pelos principais articulistas do país elevaram o tom da importância da manifestação da atriz brasileira, que diz ganhar a vida nas ruas de Lisboa porque garantiu não conseguir papel no teatro.

Há uma semana, Keyla subiu ao palco do Teatro São Luiz, em Lisboa. Ela parou o espetáculo e interpelou o ator cisgênero (pessoas que se identificam com o sexo de nascimento) André Patrício, a quem pediu para sair de cena.

Segundo a brasileira, ele se apropriou do papel e não deveria interpretar a personagem trans Lola na montagem de “Tudo sobre a minha mãe”, inspirada na obra do cineasta espanhol Pedro Almodóvar.

“Transfake! Desce do palco! Tenha respeito por este lugar (...) Sabem por que é que eu trabalho como prostituta como Agrado e Lola (personagens)? Porque não temos espaço para estarmos aqui neste palco. Neste lugar sagrado”, protestou Keyla, filmada pela plateia em um vídeo que viralizou e foi publicado no Instagram da dupla Fado Bicha, que apela ao boicote da montagem.

A peça continua. Patrício já foi substituído pela atriz trans portuguesa Maria João Vaz. Já Keyla saiu de Lisboa após sofrer ameaças e se protegeu em lugar seguro fora da capital, “nas montanhas”, como diz. Ontem, o Portugal Giro conversou com ambas.

Keyla descarta voltar ao Brasil e a Lisboa em um curto espaço de tempo. No momento, afirma que se esconde para se proteger das ameaças.
— Não digo onde estou, apenas nas montanhas. Pretendo voltar, sim, mas para um lugar seguro. Numa das ameaças que recebi, um português enviou um áudio dizendo que era inadmissível a nação portuguesa ser envergonhada por uma travesti brasileira. Dizia que sabia onde eu trabalhava, em um parque de Lisboa. E que iria lá me matar ou me mandar de cadeira de rodas de volta ao Brasil. Acontece todos os dias — disse Keyla.


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 https://www.instagram.com/reel/Cno9wGRJ9yo/?utm_source=ig_web_button_share_sheet
fadobicha


Fizemos uma ação direta ontem no Teatro Municipal S. Luiz, durante a apresentação da peça "Tudo sobre a minha mãe", assim que o ator André Patrício entra, em transfake.
O rosto e o corpo visíveis desta ação direta foi o da Keyla Brasil @keyla.brasil2, atriz e performer travesti brasileira. Houve mais ativistas trans na plateia, para defenderam a Keyla, caso fosse necessário, e no balcão, a pendurar cartazes com mensagens.

O transfake é transfóbico!
Nada sobre pessoas trans sem pessoas trans! ⚔️❤️

Keyla leoa, deusa e monstra, da tua boca ontem saíram os gritos de milhares de nós, aprisionados nas gargantas cavernosas do tempo e da terra.
Sorvemos ar puro, corpo inteiro e sangue!
Chorámos e bebemos.
Obrigada. Não nos largaremos.
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Tendo recebido diversos ataques xenófobos, ela informou que possui autorização de residência graças à ajuda de uma ONG. Mas afirma não reconhecer o nome no documento.

— Eu, enquanto mulher travesti, não existo nos documentos nem para a sociedade. No Brasil, eu já estaria morta. Eu só quero me manter viva — disse.
A atriz deixou o Brasil há quatro anos após ser ameaçada de morte. Portugal foi escolhido para tentar trabalhar com teatro. Mas as barreiras se impuseram sem misericórdia, diz ela:

— Eu trabalho com o corpo, que é minha empresa. E ele tem que ser rentável nos mundos do espetáculo ou da prostituição. Então, meu corpo precisa me manter, mas gostaria que ele desse prazer apenas em cima do palco, interpretando.

Keyla nasceu em Belém há 35 anos e é formada em teatro pela Universidade Federal do Pará. Ela explicou ao blog que tentou entrar em contato com a produção da peça, mas não teve resposta. E decidiu protestar ao vivo.

— Tentei conversar, mas não ouviram, negaram. Mas a minha presença, com dedo na cara, não puderam negar. É algo extremo. Pode ter sido, sim, um início de revolução, no sentido que é uma reflexão social, porque as pessoas têm que entender que lugares de privilégio precisam ser compartilhados com outros corpos. E não só no teatro, mas no banco, nas empresas, nas outras profissões em geral — disse Keyla.
A brasileira defende o boicote à peça.

— O teatro em geral deve ser boicotado, porque está morto e feito por gente morta, zumbis. Teatro é o batom vermelho que pinta a boca da meretriz, a fome na barriga do aflito. Teatro é revolução — disse Keyla.

Maria João Vaz foi um rosto conhecido em Portugal como um personagem publicitário nos anos 1990. Entre trabalhos e desemprego, fez um pouco de tudo e é exemplo da falta de espaço no país para artistas trans. Curioso é que fez teste para a peça há um ano, mas não ficou por classificar uma parte do texto transfóbico.

Vaz revelou sua imagem trans ao país em 2020, mas não conseguia nada constante nas artes. Diz que atraía curiosidade apenas pela mudança. Então, foi motoboy, vigilante de museu e atendente em uma cadeia de fast food. Voltou aos palcos para três noites da peça em Lisboa e outras três no Porto graças ao protesto de Keyla.

— Não subscrevo a forma do protesto, porque sou pacífica, mas concordo com a ideia. Não tenho nada contra ela, mas não precisava usar frases violentas e arrogantes aos gritos. O que a plateia viu foi realidade e ficção, algo histórico. Ela diz que está sendo perseguida, mas eu também recebi ameaças — disse Vaz.
Apesar das ameaças que diz ter recebido de quem foi contra ela ter aceitado o papel, ela explicou por que aceitou:

— Porque o protesto era justamente para dar visibilidade. E não trouxe visibilidade à causa?

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