segunda-feira, 28 de novembro de 2022

Tragédia em Aracruz

Tragédia em Aracruz não é caso isolado. Massacre em escola segue a cartilha norte-americana e deve ser enfrentado  

Vera Iaconelli, FSP, 28/11/2022

Diretora do Instituto Gerar de Psicanálise, autora de “O Mal-estar na Maternidade” e "Criar Filhos no Século XXI". É doutora em psicologia pela USP. 

O pai do atirador de Aracruz (ES), tenente e psicanalista, quando questionado sobre a postagem de "Minha Luta", de Adolf Hitler, em sua rede social, respondeu: "Li e odiei". Não duvido, mas resta saber se odiou o livro ou aquilo que o livro leva a odiar: o semelhante.

Se for psicanalista, não negará a ambiguidade presente na linguagem, matéria-prima do nosso trabalho.

Policial em frente à unidade onde era mantido o adolescente apreendido sob suspeita de promover ataques a duas escolas em Aracruz, no Espírito Santo - Antonio Moreira/AFP

Não há nada que desabone um psicanalista ser policial ou exercer qualquer outra profissão digna. O que torna impensável alguém se autodenominar psicanalista é o não reconhecimento do inconsciente, de que somos todos sujeitos constituídos pela linguagem, independentemente de fenótipo, religião, classe social, idade… E que somos inteiramente responsáveis pelos nossos atos, conscientes ou não.

As filiações institucionais, as décadas de estudo teórico, de análise e de supervisão não significarão nada sem uma posição ética diante de si e do outro.

Édipo não furou os próprios olhos à toa. Seus crimes — matar o pai em legítima defesa e desposar a mãe sem o saber — não eram de seu conhecimento prévio e, sob as leis que se apresentam nos códigos penais, talvez nunca fosse condenado. Mas a tragédia está aí para dizer que devemos assumir as consequências de nossos atos, mesmo que inconscientes. Daí a autopunição.

Os crimes em escolas, que se tornaram uma tragédia corriqueira na vida de norte-americanos, começam a espocar aqui seguindo a cartilha de lá. Assistimos à importação do discurso no qual se baseiam. Eles são frutos de uma combinação de fatos que o Brasil passou a promover com a família Bolsonaro. A adoração pelas armas — lambidas e alisadas — vem pôr fim a qualquer aposta no diálogo.

A arte de administrar conflitos — dia a dia da tarefa escolar — dá lugar à eliminação sumária do outro. O "cidadão do bem" não quer eliminar o ladrão ou o estuprador, mas o contraditório. Intimidar pessoas no espaço público — seja Gilberto Gil, Ciro Gomes ou Marina Silva— faz parte da licenciosidade da violência, que perdeu sua interdição.

As células supremacistas brancas aliciam jovens frustrados com a vida — sempre tão distante do gozo vendido pelas imagens virtuais — e fazem deles bombas-relógio, prontas para explodir em qualquer escola na qual circulam nossos filhos.

Detalhe não menos assustador: o jornal Estadão estampa a notícia com uma mão negra segurando uma arma. O jovem é branco.

Destaco a fala da mãe de Selena Sagrillo Zuccolotto, criança de 12 anos morta covardemente pelo jovem com duas suásticas sobre o uniforme militar. Com uma dor que nos é impossível compreender, ela diz que perdeu a filha para o ódio.

Nenhum diagnóstico poderia ser mais exato. Nem para a loucura, nem para um acidente, nem para a irresponsabilidade de um adolescente que não sabe o que faz, essa mãe e essa comunidade perderam pessoas inocentes e amadas para um discurso que ignora o receptor.

Ódio a um outro fictício, colocado no lugar de responsável por todos os infortúnios de quem odeia. Desculpa para os fracassos, para as limitações, para o imponderável. Se o outro não me ama, não me deixa gozar, não me entende, não resolve as agruras de viver, só me resta matá-lo.

A fala de políticos, a abordagem incontinente de pessoas no espaço público, os atos terroristas dos golpistas fomentam o mesmo caldo de cultura no qual é possível que um jovem entre numa escola para matar quem estiver pela frente.

Para que possamos voltar às nossas vidas, elaborar o luto, sem jamais esquecer, há que apostar na Justiça. Não a justiça de Édipo, cuja ética está anos-luz dessa corja. Mas aquela, tão imperfeita quanto necessária, da qual dependemos para seguir como sociedade.

É isso ou deixar nossas crianças na porta da escola sem saber se as encontraremos na volta.


Atirador de Aracruz (ES) disse à polícia que se preparou com base em vídeos na internet

Investigação apura se adolescente de 16 anos teve treinamento para 'entrada tática' e uso de armas

Tulio Kruse, FSP, 27.11.2022

O adolescente de 16 anos que atacou duas escolas em Aracruz, no interior capixaba, matando ao menos quatro pessoas, disse em depoimento à polícia que se preparou para o atentado assistindo a vídeos na internet. A Polícia Civil do Espírito Santo quer saber se essa versão é verdadeira ou se ele teve treinamento guiado por algum cúmplice dos crimes.

O atirador é filho de um policial militar, e a tática utilizada pelo jovem nos ataques chamou a atenção dos investigadores. Para entrar na primeira escola, onde abriu fogo contra professores, o adolescente fez o que policiais chamam de "entrada tática", que levou em conta um ponto estratégico do imóvel. Ele arrombou um cadeado de um dos portões da escola, segundo a investigação, com um alicate especial do mesmo tipo usado pela própria polícia em operações.

"Nós temos que fazer todo um estudo e saber se aquele treinamento que ele recebeu foi virtual ou presencial", disse o delegado-geral da Polícia Civil no estado, José Darcy Arruda.

A polícia tenta entender não apenas se ele teve ajuda para aprender táticas de assalto, mas também como ele aprendeu a manusear as armas do crime, uma pistola semiautomática e um revólver. "Que ele demonstra uma 'entrada tática', isso ficou evidente nos vídeos. Ele diz que fez tudo sozinho, que ele viu no YouTube. Mas é isso que nós vamos saber."

Esclarecer se outra pessoa ajudou o jovem a cometer os assassinatos é o principal objetivo da polícia neste momento, dois dias depois do crime. Outra frente da investigação apura se ele fazia parte de algum grupo extremista.

A partir desta segunda-feira (28) a polícia deve ouvir os pais do atirador, outros parentes e diretores de escola. A intenção é entender a relação dele com a família e com a comunidade e traçar um perfil psicológico. Os investigadores também podem pedir perícias para determinar se ele tem algum distúrbio psiquiátrico. Segundo a família disse à polícia, ele fazia um tratamento psicológico.

Uma autorização para acessar dados do celular e de computadores usados pelo jovem apreendido deve ser solicitada aos pais, o que agilizaria o andamento da investigação. Caso contrário, será necessário esperar decisão da Justiça.

Durante o ataque, o adolescente usava dois emblemas com a suástica nazista desenhada à mão. Um deles estava em um pedaço de papelão pintado de vermelho, e o outro, colado com velcro na roupa camuflada.

A investigação também vai abordar a relação do atirador com o pai, que é tenente da Polícia Militar e psicanalista. As armas de fogo e o carro utilizado no deslocamento durante o crime são do pai. "Se o pai de certa forma pode ter influenciado, isso vai ser apurado. A gente não descarta nada", disse Darcy Arruda.

Ao todo, quatro pessoas morreram e sete continuam internadas após o ataque —cinco em hospitais públicos e duas em um particular.

Entre os mortos estão três professoras da escola estadual Primo Bitti. As primeiras vítimas foram Cybelle Passos Bezerra Lara, 45, e Maria da Penha Pereira, 48. Neste sábado, a professora Flávia Amboss Merçon Leonardo, 36, também morreu após ser atendida em estado grave. A quarta vítima foi a aluna Selena Sagrillo Zuccolotto, 12, que estudava no Centro Educacional Praia de Coqueiral.

Dois estudantes, um menino de 11 anos e uma menina de 14, foram levados para o Hospital Estadual Nossa Senhora da Glória, em Vitória. Neste domingo (27), a criança apresentou melhora e deixou a UTI (Unidade de Terapia Intensiva). Já a garota segue intubada.

Duas mulheres, de 52 e 45 anos, estão na UTI do Hospital Estadual Dr. Jayme dos Santos Neves, em Serra, na região metropolitana de Vitória. Uma mulher de 58 anos passou por cirurgia no Hospital Estadual de Urgência e Emergência São Lucas e tem o quadro de saúde estável.

Outras duas mulheres, de 37 e 40 anos, estão internadas na enfermaria do Hospital e Maternidade São Camilo, em Aracruz. Segundo boletim divulgado na tarde de sábado, o quadro delas era considerado estável.

DIÁLOGO

Para mapear eventuais grupos extremistas que tenham ligação com o crime, a Polícia Civil do Espírito Santo deve acionar corporações de outros estados e a Polícia Federal para troca de informações. A intenção é descobrir se há investigações em andamento sobre organizações que promovam discurso de ódio e incentivem ataques como o de Aracruz.

Em setembro, a polícia prendeu um homem em Vitória que mantinha contato com um estudante que fez um ataque a escola semelhante na cidade de Barreiras, na Bahia, que deixou uma pessoa morta.

Apesar de o atirador do novo ataque ter afirmado em depoimento ser vítima de bullying, a polícia não acredita que essa alegação seja conclusiva, e a motivação ainda é investigada.

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