'O que está em jogo com o ReUni Digital é o próprio significado daquilo que chamamos de universidade brasileira.'
Entrevista: Allan Kenji
Erika Farias - EPSJV/Fiocruz | 18/10/2022 11h09 - Atualizado em 01/11/2022
Ampliar vagas no ensino superior, por meio da educação a distância (EaD) nas universidades federais do país. Esse é o objetivo do ReUni Digital, nova versão do Programa para Expansão da Educação a Distância nas universidades públicas federais. Nesta entrevista, o pesquisador de pós-doutorado da Faculdade de Educação da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), Allan Kenji explica os riscos do controverso projeto, que, segundo ele, atenta diretamente contra o tripé ensino-pesquisa-extensão. “A disputa é pela sobrevivência do conceito de universidade”, afirma Kenji.
O que é o ReUni Digital e qual a principal diferença dessa nova versão apresentada pelo Ministério da Educação (MEC), para a versão anterior do programa, de maio de 2021?
O ReUni Digital é um programa do governo federal que propõe realizar a expansão da modalidade de ensino à distância nas universidades federais, inclusive com a possibilidade de criação de uma universidade nova, totalmente à distância e em caráter permanente, estabelecendo um modelo de ensino que combina cortes orçamentários, expansão precária das universidades e a modalidade de ensino a distância num projeto, com a quebra do modelo de universidade assentado na indissociabilidade entre ensino, pesquisa e extensão.
Qual o objetivo desta proposta?
O governo afirma que o ReUni Digital tem o objetivo de “expandir as matrículas na educação superior na modalidade a distância (EaD) em Instituições Federais de Ensino Superior (IFES), contribuindo para o atendimento da meta 12 do Plano Nacional de Educação (PNE 2014-2024)”. No entanto, em primeiro lugar, é preciso ter em conta que o PNE comparece aqui apenas como uma justificativa formal, porque sem a revogação da Emenda Constitucional nº 95, que estabeleceu o Novo Regime Fiscal e o congelamento do orçamento das políticas sociais por 20 anos, o PNE está dado como letra morta. Em segundo lugar, é preciso destacar que a meta de expansão de matrículas pela modalidade de ensino a distância ocorre num contexto prolongado de cortes no orçamento federal – em 2022, temos já nove anos consecutivos de cortes na educação superior pública federal. Pelos meus cálculos, se considerarmos o ritmo de manutenção e expansão do ensino superior público federal de 2000 até 2015 (mesmo os períodos de contingenciamentos orçamentários) e projetarmos essas taxas de 2016 até 2022 temos, até agosto de 2022, uma defasagem de R$ 146 bilhões na subfunção do ensino superior.
Em 2020, na discussão da Lei Orçamentária Anual, o governo determinou uma redução de R$ 1 bilhão no orçamento das Instituições de Ensino Superior (IES) públicas enquanto, simultaneamente, sua base discutia no Congresso Nacional transferências diretas de R$ 16 bilhões para as IES privadas à título de auxílio emergencial em razão da pandemia, além de créditos subsidiados de até R$ 40 bilhões.
Portanto, quando discutimos quais os objetivos da proposta, torna-se necessário compreender a conjuntura na qual o ReUni Digital surgiu: uma política continuada de estrangulamento orçamentário, precarização da infraestrutura instalada das IES públicas, existência de grandes oligopólios e interesses mercantis no ensino superior e elevação progressiva da importância do ensino a distância para as instituições particulares. O objetivo oculto, parece-nos, é o de realizar a expansão precária das universidades públicas, reduzindo drasticamente a qualidade e a referência social destas instituições; referendando o ensino a distância precário (realizado sem investimentos e financiamentos) como se fosse uma forma de ensino legítima, com a quebra das carreiras do magistério superior e o modelo de universidade baseado na autonomia, no exercício da crítica e na indissociabilidade do ensino, pesquisa e extensão.
O ReUni atende a que demandas da educação?
Ele não atende as demandas dos estudantes e suas famílias. Dos participantes do Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM), para se ter uma ideia, 75% declaram fazer as provas do exame com o propósito de entrar em uma universidade e ao responderem sobre qual a modalidade de ensino os participantes almejam, entre 94% e 96% indicam que gostariam do ensino presencial. Isto ocorre porque a sociedade brasileira reconhece as universidades públicas como aquelas cuja qualidade é socialmente referenciada e essa é uma grande pedra no sapato dos capitais de ensino privados no Brasil,tais como Cogna, Estácio de Sá, Unip, Laureate e Ser Educacional que, juntas, possuem hoje mais estudantes matriculados do que todas as instituições públicas existentes no Brasil somadas. Desde meados dos anos 2000, suas entidades representativas defendem ser necessárias drásticas reformas nas IES públicas, começando pelas federais - o maior sistema - com o propósito de diminuir as diferenças entre o ensino público e o privado. E qual a forma de reduzir essa diferença? Melhorando o ensino geral? Para eles a resposta é aumentar a precariedade do público, pois não há como compatibilizar altas taxas de lucros com uma educação crítica e substantiva como aquela defendida no modelo de universidades públicas – ainda que este nunca tenha se realizado plenamente. Os educadores e os sindicatos, movimentos sociais e estudantis sempre defenderam a ampliação de matrículas públicas. Defesa que contempla a manutenção da integridade do modelo e, inclusive, seu aperfeiçoamento. Nós acreditamos que a classe trabalhadora e seus filhos têm o direito de participar de uma experiência universitária integral que lhes propicie um ensino com caráter formador e crítico e que lhes permita fazer um uso autônomo da ciência, da filosofia e da arte.
Não há como compatibilizar altas taxas de lucros com uma educação crítica e substantiva como aquela defendida no modelo de universidades públicas
O que este programa, neste cenário pós-pandemia, pode ocasionar?
O cenário pós-pandemia da Covid-19 para as universidades é o retrato da desigualdade brasileira. O esforço realizado nas últimas décadas para a inclusão de parcelas dos filhos da classe trabalhadora em maior número e diversidade nas IES públicas foi muito prejudicado pela evasão e o abandono de matrículas. As salas de aulas vazias, em muitos cursos, são a expressão da deterioração das condições de vida da maioria desses jovens, que abandonaram as cadeiras das universidades para que pudessem trabalhar ainda mais. Os cortes de bolsas, das políticas de permanência estudantis e a deterioração das condições econômicas que oferecem aos jovens formados a perspectiva do desemprego ou subemprego também são fatores que pressionam pela evasão. O congelamento dos concursos públicos e da expansão de vagas na educação superior também degradaram as perspectivas acadêmicas no Brasil. Nesse quadro, o ReUni Digital aparece como o coroamento desta situação: expandir sem recursos, sem contratações, sem carreiras estruturadas é normalizar que o ensino precário da maioria das instituições privadas seja alçado à condição de normalidade também nas IES públicas. Isso sedimenta a ideia de que quando os filhos da classe trabalhadora entram nas instituições educativas por uma porta, a relação substantiva com os conhecimentos mais elevados produzidos pela humanidade na ciência, na filosofia e na arte saem pelos fundos.
Este programa aumenta a possibilidade de entrada do grande capital no ensino superior? De que forma?
Sim. Em primeiro lugar porque todas as medidas que precarizam as IES públicas hoje estão alçadas ao patamar das medidas estratégicas para os grandes capitais de ensino superior. Para eles, é imprescindível, por um lado, quebrar a qualidade socialmente referenciada que ainda há nas universidades públicas. Por outro lado, também é importante para os capitais de ensino utilizar a legitimidade que as universidades públicas ainda gozam para validar este ensino à distância precário, de baixo investimento, de massificação de ensino e que não guarda relação alguma com os processos formativos que deveriam ser constitutivos de nosso ideal de educação superior. Tal ponto é importante para os capitais de ensino, que desde 2019 estão fechando cursos e unidades presenciais e expandindo velozmente o ensino híbrido ou vagas totalmente a distância. É muito rentável, pois o ensino a distância realizado por eles aumenta a taxa de estudantes por professor -reduzindo custos com salários e encargos -, é altamente padronizável, escalável e realizado com plataformas e sistemas desenvolvidos com dinheiro público pelas universidades federais. Em segundo lugar, o ReUni Digital deixa em aberto a possibilidade de que a expansão da modalidade à distância nas universidades públicas possa ocorrer em estreita conexão com empresas privadas. As seções dos documentos que tratam sobre o financiamento e a administração dos recursos destinados abrem margem para isso.
Quando irá começar essa disponibilização de vagas?
O acompanhamento público dos dados e informações sobre o ReUni Digital, neste momento, é muito precário. Temos a informação de que dez instituições aderiram ao ReUni Digital em 2022 - Universidade Federal do Amazonas(UFAM), Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS), Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT), Universidade Federal do Cariri (UFCA), Universidade Federal do Piauí (UFPI), Universidade Federal Rural da Amazônia (UFRA), Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ), Universidade Federal de Alfenas (Unifal), Universidade Federal de Itajubá (Unifei) e Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira (Unilab). O Ministério da Educação afirma que, neste primeiro momento, foram oferecidas 5 mil vagas. Porém, tais informações não são passíveis de confirmação. Não temos nenhuma forma de verificar a veracidade, pois os dados estão defasados ou fechados. Isto é muito grave. É uma questão democrática que os pesquisadores de políticas educacionais e a sociedade brasileira como um todo tenham a possibilidade de analisar os encaminhamentos políticos das ações e programas do governo. Isto é parte do papel crítico das universidades públicas, inclusive, a única das instituições do Estado que tem como papel social a crítica aos governos e ao próprio Estado.
Você acredita que esta proposta pode chegar aos Institutos Federais? De que forma isso serial prejudicial à formação desses alunos?
Embora a proposta do ReUni Digital esteja voltada prioritariamente para as Universidades Federais, o escopo do projeto é mais abrangente e inclui a criação de referências e padrões que possam ser expandidos para os Institutos Federais de Educação, Ciência e Tecnologia. Na meta um da minuta de 2021, por exemplo, que visa estabelecer marcos regulatórios, administrativos e conceituais para a expansão do ensino à distância, previa-se a inclusão de especialistas dos Institutos Federais. No documento final, embora os Institutos Federais não sejam mencionados diretamente, eles serão incluídos dentro da mesma lógica na medida em que ela se torne a principal força motora de expansão de matrículas associada aos cortes e contingenciamentos do orçamento educacional.
Que consequências você avalia com a implantação do ReUni Digital?
Do meu ponto de vista, o que está em jogo com o ReUni Digital é o próprio significado daquilo que chamamos de universidade brasileira. Hoje, as principais entidades representativas dos interesses dos capitais de ensino convergem basicamente sobre três pontos cruciais de reformas da educação superior: a criação de um sistema de acreditação independente, que reúna as funções de regulação, avaliação e autorização que coloque sob o controle dos capitais de ensino a autonomia didático-científica, administrativa e patrimonial; a criação de um sistema nacional de financiamento que quebre a gratuidade do ensino e reorganize o sistema de distribuição do fundo público de forma a favorecer ainda mais as transferências de riquezas do Estado para as IES privadas; e o desaparecimento da distinção entre ensino a distância e ensino presencial, ou seja, tornar todo o ensino a distância ou híbrido. Não por acaso, os três pontos tocam nos pilares fundamentais do conceito de universidade presente na Constituição Federal de 1988 sob as lutas dos movimentos de educadores, trabalhadores e estudantes.
A disputa é pela sobrevivência do conceito de universidade
Na esteira de uma série de políticas como o Fundo de Financiamento Estudantil (Fies), Programa Universidade Para Todos (Prouni), Programa de Reestruturação e Expansão das Universidades Federais (ReUni), o Programa de Estímulo à Reestruturação e ao Fortalecimento das Instituições de Ensino Superior (Proies) e o Future-se, o ReUni Digital coloca a perspectiva de que não se trata mais de disputas por espaços orçamentários e vantagens a serem garantidas pelos capitais de ensino, mas de confrontarem todas as especificidades daquilo que consolidamos como os traços distintivos das universidades públicas brasileiras. A disputa é pela sobrevivência do conceito de universidade.
ALLAN KENJI SEKI
Possui graduação em psicologia pela Universidade Federal de Santa Catarina (2011), mestrado em Educação (2014) e doutorado em Educação pela Universidade Federal de Santa Catarina (2020). Realizou estágio de doutorado-sanduíche na Universidade Paris 13, no Centre d'Économie de l'Université Paris Nord (CEPN). Atualmente é bolsista de pós-doutorado da FAPESP (Processo n 2021/01249-9) na Faculdade de Educação da Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP) e pesquisador colaborador do Grupo de Estudos e Pesquisas em Política Educacional (GREPPE). É professor na Escola de Formação Política da Classe Trabalhadora - Vânia Bambirra. Tem experiência na área de Política Educacional, com ênfase em Administração Educacional, Sistemas e Privatização do Ensino, atuando principalmente nos seguintes temas: educação superior, ensino superior, universidade e políticas públicas em educação. Sua pesquisa atual aborda as plataformas digitais e Edtech na educação básica.
Informações coletadas do Lattes em 27/05/2022
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