Mostra 2022: Balanço final com destaque para Noite Exterior e Elis & Tom
Luiz Zanin Oricchio, O Estado, 03 de novembro de 2022
A 46a Mostra Internacional de Cinema de São Paulo acabou. Saíram os vencedores, mas ainda tem a repescagem (veja as tabelas abaixo).
Independentemente dos resultados, meu destaque deste ano fica para o incrível Noite Exterior, de Marco Bellocchio, entre os estrangeiros. O filme nacional que mais me agradou foi Elis & Tom, de Roberto de Oliveira.
Tirando esses dois, que, a meu ver, ocupam a prateleira de cima nesta seleção, assisti a vários outros filmes que me tocaram. Do excepcional Marcha sobre Roma, de Mark Cousins, ao singelo e tocante Tempo de Super-8, da vencedora do Prêmio Nobel de Literatura Annie Ernaux, ao divertido e poderoso Os Irmãos de Leila, do iraniano Saeed Roustaee.
No capítulo revisão, foi muito gratificante rever em tela grande A Mãe e a Puta, de Jean Eustache, que vi pela primeira vez em Paris, uns 40 anos atrás. O filme completa 50 anos e mereceu um dossiê nos Cahiers du Cinéma de maio deste ano. Tenho a revista comigo, mas ainda não li o material completo. Apenas a matéria de abertura. Longo de quase 4h, é a história do relacionamento do desocupado Jean-Pierre Léaud e suas duas nanas, Bernadette Lafont e Françoise Lebrun.
Presenciei algumas sessões muito animadas. A mais agitada foi a de Rio do Desejo, de Sérgio Machado, na Cinemateca. A história (baseada num conto de Milton Hatoum) sobre três irmãos que desejam a mesma mulher (Sophie Charlotte) teve sala lotada e eletrizada. Tanto pelo filme em si, muito bom, como pela circunstância – sábado, véspera das eleições mais decisivas para o país nas últimas décadas.
Também na Cinemateca, logo depois da apoteose de O Rio do Desejo, houve outra sessão marcante, embora não tão concorrida – a apresentação da cópia restaurada de Agulha no Palheiro (1952), de Alex Viany, com a presença de uma das estrelas do filme, a cantora e atriz Doris Monteiro. Aos 88 anos, Dóris encantou a plateia com sua lucidez, alegria e bom humor. Para não esquecer.
Não consegui ver tudo o que queria, o que é normal quando se tem de navegar um oceano de filmes, como é o caso da Mostra. Perdi o novo Sokurov (Conto de Fadas). Deixei de ver alguns brasileiros, mas estes estarão em alguns dos próximos festivais que acontecem até o fim do ano. Assisti a apenas uns 25 minutos do vencedor de Veneza, All the Beauty and the Bloodshed, porque a cópia deu pau e a sessão foi interrompida. Está na repescagem, mas não estarei por aqui para conferir.
Sobre os meus favoritos. É reconfortante ter em Marco Bellocchio um diretor em posse plena de seus recursos, na plenitude dos seus 82 anos. Noite Exterior (Externo Notte) é uma revisita a um episódio traumático da Itália – o sequestro, seguido de morte, de Aldo Moro, líder da Democracia Cristã, em 1978.
Bellocchio já havia abordado esse episódio no seu Bom Dia, Noite. Neste, focava em especial a relação de Moro com seus sequestradores. Noite Exterior é muito mais extenso, complexo e poliédrico. Inclui os bastidores da política italiana, com personagens reais como Francesco Cossiga, então ministro do Interior, e Giulio Andreotti, primeiro-ministro na época. Inclui a Igreja, com o papa Paulo VI (Toni Servillo), amigo pessoal do católico Moro (Fabrizio Gifuni). Vemos a família de Moro, com destaque para sua mulher (vivida por Margherita Buy). A abertura, com manifestações da extrema-esquerda italiana, é tão frenético quanto a de Carlos, de Olivier Assayas. O desenvolvimento mescla ação, reflexão e a maturidade, tanto estética quanto política, que apenas um grande artista pode ter.
Rô e eu escolhemos a sessão do domingo, dia 30, quando estaria se desenrolando a apuração da eleição para presidente. Não queríamos viver a agonia do processo. Discretamente, durante o filme, consultávamos os celulares para ver como andavam as coisas. Quando a vitória de Lula se tornou irreversível, a sala do Espaço Itaú Frei Caneca explodiu de felicidade. Menos um espectador, que protestou contra as comemorações. Seria um bolsonarista infiltrado? Ou apenas um cinéfilo que não queria a fruição do filme atrapalhada por uma prosaica comemoração política?
De qualquer forma, foi um domingo para não esquecer. Não apenas pela vitória da democracia sobre o autoritarismo, mas por termos visto um filme notável. Com suas 5 horas de duração, Noite Exterior parece estruturado como série de streaming. Mas não é bem isso. É apenas um longo e grande filme de cinema, como o qualificou o crítico francês Jean-Michel Frodon. Do melhor cinema que existe.
Nós, que vemos tantos filmes e, pelo excesso, nos arriscamos a rebaixar o nível de exigência, devemos de vez em quando assistir a uma obra como esta. Que não seja por outro motivo, só para lembrarmos do que o cinema é capaz quando nas mãos de um grande diretor.
Já Elis & Tom – Só Tinha que ser com Você foi o filme que mais me emocionou em toda a Mostra. Inicialmente, trata-se de uma espécie de making of do incrível álbum de 1974, que reuniu a cantora maior ao compositor inigualável. No entanto, a gravação foi recheada de incidentes e por pouco não foi interrompida.
Os temperamentos dos protagonistas pareciam antagônicos. Como casar a exuberância de Elis com o minimalismo de Tom? Como conciliar tudo o mais, uma vez que Elis desembarcou em Los Angeles na companhia do marido, o pianista César Camargo Mariano que, para cúmulo, estaria incumbido dos arranjos, o que, para Tom, era inaceitável.
Instalou-se uma batalha de egos e concepções artísticas divergentes, que parecia não comportar conciliação. Mas esta se deu, afinal, uma verdadeira batalha estética, em que o maestro Antonio Carlos Brasileiro de Almeida Jobim mostrou-se um estratega de primeira. Com muito jeito e malícia, conseguiu impor sua visão de mundo – e da música – ao disco, que passou a fazer parte da antologia musical da humanidade.
Espertamente, Tom faz uma espécie de trabalho de sensibilização, mostrando à cantora músicas que depois não fariam parte do disco. Tais como Céu e Mar, de Johnny Alf, e Na Batucada da Vida, de Ary Barroso, que Elis não conhecia e gravaria (magnificamente) em seu álbum seguinte.
Tom era um mestre informal. Passeia, nas teclas do piano, ou nas cordas do violão, pela tradição sedimentada da música popular brasileira e, a partir desse conhecimento histórico, faz uma ponte para a modernidade, fortalecida também pela leitura de Chopin, Debussy e Villas-Lobos.
As partes mais saborosas são mesmo as filmagens feitas no estúdio, em 16mm. Restauradas, em 4K, estão impecáveis. Os depoimentos não sobrecarregam o filme, como muitas vezes acontece. Não sufocam a música nem a fala dos personagens principais. Apenas esclarecem.
Sai-se do filme com a conclusão de que o disco foi mesmo uma virada na carreira de Elis. Aprendeu a domar a sua imensa e intempestiva potencialidade e colocou essa força a serviço da arte. Jobim fez-lhe bem. Todo seu trabalho posterior beneficiou-se desse encontro que começou como embate e terminou em parceria. O disco é uma obra-prima.
Repescagem
Quinta-feira, 03 de novembro
14h: O Massacre da Salsinha, de José Maria Cabral (Ficção, 83 min)
16h: Índia, de Telmo Churro (Ficção, 123 min)
18h30: Até Amanhã, de Ali Asgari (Ficção, 83 min)
20h30: Pacifiction, de Albert Serra (Ficção, 122 min)
Sexta-feira, 04 de novembro
14h: As Planícies, de David Easteal (Ficção, 180 min)
17h30: Restos do Vento, de Tiago Guedes (Ficção, 126 min)
20h10: As Oitos Montanhas, de Felix Van Groeningen, Charlotte Vandermeersch (Ficção, 147 min)
Sábado, 05 de novembro
14h: Você não Vai Chorar?, de Alireza Motamedi (Ficção, 86 min)
16h: A Mãe e a Puta, de Jean Eustache (Ficção, p&b, )
20h10: All The Beauty and the Bloodshed, de Laura Poitras (Doc, 117 min)
Domingo, 06 de novembro
14h: Noite Exterior – parte 1, de Marco Bellocchio (Ficção, 163 min)
17h15: Noite Exterior – parte 2, de Marco Bellocchio (Ficção, 165 min)
20h30: Racionais: Das Ruas de São Paulo pro Mundo, de Juliana Vicente (Doc, 116 min)
Segunda-feira, 07 de novembro
14h: Dalva, de Emmanuelle Nicot (Ficção, 83 min)
16h: O Excesso Nos Salvará, de Morgane Dziurla-Petit (Ficção, 100 min)
18h10: Até Sexta, Robinson, de Mitra Farahani (Ficção, 100 min)
20h20: Salgueiros Cegos, Mulher Dormindo, de Pierre Földes (Animaçã, 110 min)
Terça-feira, 08 de novembro
14h: Mutzenbacher, de Ruth Beckermann (Doc, 100 min)
16h10: Meus Pequenos Amores, de Jean Eustache (Ficção, 124 min)
18h50: Marcha sobre Roma, de Mark Cousins (Doc, p&b/cor, 98 min)
21h: Los Reys del Mundo, de Laura Mora (Ficção, 110 min)
Quarta-feira, 09 de novembro
14h: Nayola, de José Miguel Ribeiro (Animaçã, 83 min)
16h: Joyland, de Saim Sadiq (Ficção, 126 min)
18h40: All The Beauty and the Bloodshed, de Laura Poitras (Doc, 117 min)
21h10: Aftersun, de Charlotte Wells (Ficção, 98 min)
OS PREMIADOS
. Troféu Bandeira Paulista (Júri Oficial)
. “Aftersun”, de Charlotte Wells (Grã-Bretanha) – melhor filme
. “Salgueiros Cegos, Mulher Dormindo”, de Pierre Földes (França) – Prêmio Especial do Júri
. “Dalva”, de Emmanuelle Nicot (França-Bélgica) – Prêmio especial para a atriz Zelda Samsom
. “Joyland”, de Saim Saqid (Paquistão) – Prêmio especial para o ator Ali Junejo
. Troféu Bandeira Paulista (Júri Popular)
. “Marcha Sobre Roma”, de Mark Cousin (Itália) – melhor documentário internacional
. “Nayola”, de José Miguel Ribeiro (Portugal) – melhor ficção (animação) estrangeira
. “Exu e o Universo”, de Thiago Zanato – melhor documentário brasileiro
. “O Mestre da Fumaça”, de André Sigwalt e Augusto Soares – melhor ficção brasileira
. Prêmios da Crítica:
. “Noite Exterior”, de Marco Bellocchio (Itália) – melhor filme internacional
. “Elis & Tom – Só Tinha de Ser com Você”, de Roberto Oliveira e Jom Tob Azulay – melhor filme brasileiro
. “À Margem do Ouro”, de Sandro Kakabadze – Prêmio Abraccine (Associação Brasileira de Críticos de Cinema) para filme de Novos Diretores/Brasil.
. Troféu Paradiso:
. “Walala”, de Perseu Azul
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