quarta-feira, 18 de agosto de 2021

PARAÍSO GEOMAGNÉTICO

Uma ilha onde se investiga o escudo protetor da Terra

CLARICE CUDISCHEVITCH, Revista Piaui, Edição 179, agosto, 2021

   

ILUSTRAÇÃO: ANDRÉS SANDOVAL_2021

Algumas vezes por ano, a geofísica Katia Pinheiro troca o mar frio do Rio de Janeiro, onde pratica natação, pelas águas quentes da Baía de Santo Antônio, no Pará. Seu destino exato é a Ilha de Tatuoca, que ela visita não para nadar – o que é desaconselhável por causa das arraias e da correnteza –, mas para acompanhar as medições do campo magnético da Terra. A última viagem, em fevereiro passado, foi um pouco diferente: ela conheceu as primeiras pessoas nascidas ali, duas filhas do pesquisador que inaugurou as atividades científicas na ilha.

Tatuoca abriga um dos observatórios magnéticos mais importantes do mundo. Desde 1957, mede a cada segundo o campo magnético da Terra, fenômeno invisível que funciona como um escudo do planeta contra partículas solares e raios cósmicos. Perto dos equipamentos do observatório não se chega com brincos, sutiãs com aro ou mesmo alguns aparelhos dentários. Qualquer item que possa criar interferência, desde metais a tijolos (eles contêm minerais magnéticos), é proibido.

O campo magnético é gerado nas profundezas do planeta pelo movimento de metais líquidos no núcleo externo, camada que atua como um grande ímã e está localizada no fundo da Terra, a quase 3 mil km da superfície – a mesma distância que separa o Rio de Janeiro de Belém, no Pará. Sem o escudo, a Terra estaria desprotegida quando fosse atingida pelas radiações eletromagnéticas emitidas pelo Sol (o chamado vento solar). Não teríamos atmosfera, que seria varrida para o espaço, como acontece em Marte. Também não teríamos internet, por causa dos distúrbios que haveria na transmissão de energia elétrica e nos sistemas de comunicação por satélite, como o GPS.

Chegar a Tatuoca, um pedaço de terra de 460 x 300 metros, a 12 km da costa de Belém, não é fácil. Depois de pousar na capital paraense, Pinheiro, de 42 anos, viaja uma hora de carro até Icoaraci, um distrito de Belém. Pega um barco e, trinta minutos mais tarde, é enfim recebida pelos cães Gauss e Maxwell – homenagens ao matemático alemão Carl Friedrich Gauss (1777-1855) e ao físico escocês James Clerk Maxwell (1831-79).

Foi por causa dessa dificuldade logística que Joel Ferreira resolveu se instalar de vez na ilha em 1957, com a mulher, Nilza, e cinco filhos. Técnico do Observatório Nacional, no Rio de Janeiro, ele foi a primeira pessoa responsável pelas captações de Tatuoca, onde o casal teve mais cinco filhos. A parteira levava cinquenta minutos para chegar lá, vinda da Ilha de Mosqueiro. “Éramos os únicos moradores, os outros funcionários apenas faziam escala”, conta a advogada Fátima Ferreira, de 54 anos, a caçula dos dez filhos. “Tínhamos profundo respeito pelo trabalho do meu pai e muita admiração pelos equipamentos sofisticados: relógios, pêndulos alemães… Não mexíamos em nada.”

Os irmãos passeavam de canoa, corriam na mata densa e se escondiam em buracos de cobra. “Havia um presídio na Ilha de Cotijuba [a cerca de 9 km de Tatuoca], e às vezes os fugitivos chegavam a nado”, lembra Fátima. A família viveu em Tatuoca nove anos. Em 1966, Nilza Ferreira transferiu-se para Belém com os filhos, que passavam as férias escolares na ilha. Joel continuou trabalhando em Tatuoca até 1975, quando sofreu um acidente na voadeira e foi se reunir outra vez à família. 

O técnico do Observatório Nacional morreu em 1990. Fátima visitou Tatuoca posteriormente, mas havia 29 anos que não colocava os pés na ilha, o que fez em fevereiro, acompanhada de uma irmã e de Katia Pinheiro. “Foi emocionante voltar. Me senti criança novamente. Tenho muito amor por aquele lugar”, diz.
A distribuição de observatórios magnéticos integrantes da Intermagnet, rede global de observatórios de alto padrão, é desigual. Enquanto na Europa existem 49, na América do Sul são apenas 10. Dois deles estão no Brasil. Além do de Tatuoca, existe o de Vassouras, município do Rio de Janeiro, ambos do Observatório Nacional, do qual Pinheiro é pesquisadora.

“Quando assumi a coordenação dos dois observatórios, em 2011, muita gente me aconselhou a desistir de Tatuoca. Disseram que era caro, que seria melhor mudar para o continente”, ela conta. Mas a localização da ilha é, justamente, a maior vantagem para a pesquisa geomagnética. “O ruído é quase zero. Vassouras cresceu muito e lá notamos mais interferência nos dados. Carros a menos de 100 metros, por exemplo, já produzem ruído. Não vamos abandonar Tatuoca.”

A importância estratégica da ilha vai além. Por ali passa o equador magnético, região da superfície terrestre onde o campo magnético é completamente horizontal (os polos magnéticos são diferentes: o campo é vertical). Poucos observatórios no mundo ficam nessa área, o que torna os registros de Tatuoca ainda mais especiais.

Nos últimos sessenta anos, o deslocamento do equador magnético no Brasil foi o maior de todo o globo: 1,1 mil km rumo ao Norte, chegando a Tatuoca por volta de 2013. O equador magnético permite observar com maior amplitude as tempestades magnéticas causadas pelo vento solar. Também leva à formação de intensas correntes elétricas na ionosfera, a 100 km de altitude. Fora isso, como seu deslocamento é causado pela variação temporal do campo magnético gerado no núcleo da Terra, registrar sua posição é algo muito útil para quem estuda as entranhas do planeta. “Quando falamos em Tatuoca nos congressos internacionais o povo todo corre para ver”, diz Pinheiro, rindo.

Se manter o observatório já é complicado em tempos normais, na pandemia é pior. Hoje ninguém tem residência fixa em Tatuoca, mas ao menos duas pessoas estão sempre lá, obrigatoriamente. As duplas se revezam a cada semana. “Temos o compromisso internacional de gerar esses dados, não podemos interromper uma série temporal histórica”, explica Pinheiro. Para se tornar membro da Intermagnet em 2019, o Observatório Magnético de Tatuoca precisou enviar um ano inteiro de dados e provar capacidade de produzi-los conforme determinados padrões de qualidade de medição e transmissão em tempo real.

Pinheiro quer que o observatório, que completa 65 anos em 2022, vá além do geomagnetismo e se torne um centro de geociências, abrangendo também pesquisas oceanográficas e atmosféricas. Sonha, ainda, em recuperar o passado da ilha, que chegou a abrigar o quartel-general de um marechal durante a Cabanagem, revolta ocorrida no Pará entre 1835 e 1840. “Será um registro tanto para a ciência quanto para a história”, afirma a pesquisadora apaixonada por seu pequeno paraíso geomagnético.

CLARICE CUDISCHEVITCH

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