Mario Prata comemora 60 anos de escrita com o livro 'O drible da vaca'
Cronista celebra seis décadas de escrita com livro em que mescla pesquisa e ficção para contar com humor refinado as origens do esporte bretão
Eduardo Graça, O Globo, 30/08/2021
Há três anos, em uma tarde ordinária em Florianópolis, onde vive, Mario Prata encasquetou com algo: qual é o tamanho da trave no jogo de futebol? Em “não mais do que três minutos" ele descobriu que o arco sob o qual ficam os goleiros tem as medidas exatas do portão principal da Universidade de Cambridge, na Inglaterra: em metros, são 7,32 por 2,44. Sorte do leitor. Esta foi a fagulha para “O drible da vaca", em que o cronista de 75 anos trata da criação do futebol. O livro une pesquisa séria a “curiosidades históricas" típicas do humor pratiano, como o “hábito” da rainha Vitória de fumar maconha. Por razões medicinais, é claro.
A ação se passa em cinco anos, do surgimento do esporte bretão tal qual o conhecemos, em 1859, até a primeira reunião do que seria a FIFA, em 1863. A narração fica a cargo de nosso caro Watson, sem as distrações de Sherlock Holmes. Outros personagens ficcionais são escalados, como os atores Charles Laughton e Marlene Dietritch, a sufragista Sarah Emily Davies (em um aceno ao futuro feminino do esporte) e um Charles Darwin recém-chegado do Rio e fascinado pela ginga local dos meninos negros.
Na conversa com O GLOBO, o autor que acaba de completar 60 anos de labuta (o pontapé inicial se deu nas páginas da Gazeta de Lins, no noroeste paulista) também fala da distância forçada da família por conta da pandemia, do estado atual do futebol e da crônica nacionais e do livro de “quase-memórias” que planeja para um futuro breve.
Sou tarado por futebol e literatura policial. E sempre tive pena do Watson, que passou a vida contando as histórias do Sherlock (Holmes). Mas fiquei com receio depois de “Enola”, filme sobre a irmã do Sherlock, ter tomado um processo. Liguei pro Jô, por conta do “Xangô de Baker street”. Ele me tranquilizou: “não tive problema, mas me manda o livro”. Mandei em PDF, ainda se chamava “A invenção do futebol”. Dois dias depois chega uma mensagem de zap: “seu livro é genial, mas só tem um defeito: não fui eu que escrevi”. (risos)
Quando é que você se apaixonou por futebol?
Aos seis anos de idade. Dizem que sou corintiano, mas torço mesmo é pelo Linense. Naquele ano, subimos pela primeira vez para a divisão principal do Paulistão. Jamais esquecerei a emoção da chegada vitoriosa do time na cidade. Morávamos a dois quarteirões da praça central, onde sabia que eles desfilariam. Falei: “pai, vamos pra praça!”. Mas ele: “não precisa, o caminhão vai passar na frente de casa, o Ranulfo garantiu”. Ranulfo era nosso vizinho, e o Américo, atacante do time, craque e bonitão, namorava a filha dele, com quem acabou casando e teve filhos. Falo dele inclusive em “Palmeiras, um caso de amor” (conto sobre um corintiano que se apaixona por uma palmeirense, adaptado por Bruno Barreto ao cinema em 2005). Pois ficamos apenas nós dois ali: eu, nervoso, querendo ir pra praça, meu pai calmíssimo. E o caminhão, claro, passou. E apenas pra nós dois. Depois disso, indo ao estádio ver o Linense jogar, tive descobertas importantes sobre a vida.
Por exemplo?
Meu pai não deixava a gente falar sequer “pô” em casa. Já no estádio, ele e os amigos xingavam sem economia alguma todos os palavrões. Entendi a libertação oferecida pelo futebol. Lá, era possível soltar a franga. E logo percebi o jogo como um balé.
E qual a melhor companhia de balé que você viu?
Foram duas. A do escrete de 1958 e a do de 1970. Também cabe mencionar a de 1982, a que jogava com a música de balé mais bonita. Agora, 1958 eram duas seleções, né? Todos os 22 jogadores eram sensacionais. Gilmar e Castilho no gol, De Sordi e Djalma Santos na lateral-direita, Vavá e Mazolla os centroavantes, Zagallo e Pepe na ponta-esquerda, Garrincha, Pelé. E algo me marcou muito sobre aquele time, um dia preciso escrever sobre isso...
O que foi?
O cinema em Lins que passava uma sessão dupla: seriado e filme, que terminava às 11h30. Tinha 12 anos, e calhou de o episódio final do seriado favorito terminar na hora em que começaria a final da Copa, por conta do fuso. Do Cine São Sebastião, o “palácio encantado do noroeste”, até minha casa, eram oito quarteirões. Terminou a sessão e saí em disparada. Havia começado a partida e todas as rádios estavam ligadas. Fui ouvindo, então, de janela em janela. O primeiro gol foi da Suécia, aos quatro minutos. Dei uma parada, corri mais, e, antes de chegar em casa, o Brasil empatou. Entrei e Vavá fez o gol da virada. Foi uma corrida contra o tempo e a favor do Brasil. Agora, hoje em dia, balé só na Europa, né? Aqui, há quatro jogos sensacionais por ano, um Atlético x Flamengo, um Inter x Palmeiras, e só.
Vê possibilidade de melhora a curto prazo?
Precisaria mudar a CBF, né? Meu sonho é que, por algum descuido, um dia o Bolsonaro acabe com a CBF. Sei lá, confunde ela com o STF e baixe um decreto pondo um fim. Todas as histórias recentes, de assédio, de grana para as federações, não dá, né? Não ganhamos uma Copa há vinte anos e, enquanto isso, a Europa está muito bem. Importante notar, aliás, o destaque cada vez maior dado lá, finalmente, a jogadores negros. Fiz questão de tratar do tema no livro. Só em 1978 um negro jogou pela seleção principal inglesa (o zagueiro Viv Anderson), ou seja, outro dia! E o maior jogador do mundo em dois, três anos, será o Mbappé. Um senhor craque.
Há seis anos você disse em uma entrevista que a imprensa penava com a a falta de cronistas. Melhoramos de humor?
Pioraram. Agora todo mundo começa cronista e em um ano vira articulista. E ainda brigam entre si. Ah, que chatice! Vão se ferrar todos, inclusive o meu filho! (referência gaiata ao colunista Antônio Prata, da ‘Folha de S.Paulo’). E digo isso a ele (risos). A imprensa está mais chata, mais “pentelha”, é preciso escrever mais sobre bobagem. Falta humor. Penso em Sérgio Porto, Nelson Rodrigues, no Millôr, em Fernando Sabino. Eles davam uma arejada necessária. Hoje, além do Antonio (e puxo a orelha dele: tem que voltar pra crônica!) posso citar o Renato Terra, o Gregório (Duvivier), o Joaquim (Ferreira dos Santos), e, claro, o (Luis Fernando) Verissimo. Fui visitá-lo quando ele ficou internado. Gostamos muito um do outro. Ele está com 84 anos e acho que cansou de gritar e ninguém ouvir. Vida de velho é foda, viu?
Seu próximo projeto é um livro de memórias, certo?
É uma mosaico de coisas que me interessam. Anedotas, uma poesia do Luiz Tatit de três páginas, citações que me marcaram, coisas que lembro ou saio anotando por aí. Com esse negócio de Google, de e-book, vou pescando coisas, copio e mando pra mim mesmo por e-mail. Juntei com coisas biográficas, da minha infância e bolei esse “Carrossel: que porra é essa?”.É que em uma anotação que fiz em um guardanapo de bar todo amassado está escrito assim:“carrossel. Puta ideia!!!”. Pois lá se vão quarenta anos e não sei que ideia é essa. Esqueci. Pronto, foi pro título do livro (risos).
Do que você se orgulha mais nestes 60 anos de labuta?
Tenho pensado nisso ultimamente. Não sou convencido, mas sei que sou uma pessoa que deu certo. Tenho três filhos maravilhosos, Antônio, Maria e Pedro. Estou indo para São Paulo amanhã (a conversa aconteceu na quarta-feira) para conhecer dois dos meus cinco netos, que nasceram durante a pandemia. Todos estão com saúde, ninguém é escroto. O que mais posso querer? E meu trabalho me permitiu conhecer pessoas incríveis, conviver com elas. Essa é a alegria maior: estar junto, sofrer junto, ter grandes amigos, trabalhar com profissionais incríveis. Sou um sujeito de muita sorte.
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