quarta-feira, 18 de agosto de 2021

Luiz Gama

AUTOBIOGRAFIA DE LUIZ GAMA

O escravo que mata o senhor, seja em que circunstância for, mata sempre em legítima defesa.


 
Apresentação

A carta de Luiz Gama a Lúcio de Mendonça* é um documento que merece reflexão. Não apresentaremos o Autor, já que ele apresenta a si mesmo. Basta acrescentar alguma coisa sobre as suas Primeiras Trovas Burlescas (1859), onde a sátira à sociedade imperial e sobretudo às suas presunções de brancura alcança uma franqueza possivelmente única na literatura brasileira.

Se negro sou ou sou bode,
Pouco importa. O que isto pode?
Bodes há de toda a casta,
Pois que a espécie é mui vasta...
Há cinzentos, há rajados,
Baios, pampas e malhados,
Bodes negros, bodes brancos,
E, sejamos todos francos,
Uns plebeus e outros nobres,
Bodes ricos, bodes pobres,
Bodes sábios, importantes,
E também alguns tratantes...
Aqui, nesta boa terra,
Marram todos, tudo berra.
Nobres Condes e Duquesas,
Ricas Damas e Marquesas,
Deputados, Senadores,
Gentis homens, vereadores;
Belas Damas emproadas,
De nobreza empantufadas;
Repimpados principotes,
Orgulhosos fidalgotes,
Frades, Bispos, Cardeais,
Fanfarrões imperiais,
Gentes pobres, nobres gentes,
Em todos há meus parentes.
Entre a brava militança
Fulge e brilha alta bodança;
Guardas, cabos, furriéis,
Brigadeiros, coronéis,
Destemidos marechais,
Rutilantes generais,
Capitães de mar e guerra,
— Tudo marra, tudo berra.
Na suprema eternidade,
Onde habita a Divindade,
Bodes há santificados,
Que por nós são adorados.
Entre o coro dos anjinhos
Também há muitos bodinhos.
O amante de Siringa
Tinha pelo e má catinga;
O deus Midas, pelas contas,
Na cabeça tinha pontas;
Jove quando foi menino,
Chupitou leite caprino;
E, segundo o antigo mito,
Também Fauno foi cabrito.
Nos domínios de Plutão,
Guarda um bode o Alcorão;
Nos lundus e nas modinhas
São cantadas as bodinhas.
Pois, se todos têm rabicho,
Para que tanto capricho?
Haja paz, haja alegria,
Folgue e brinque a bodaria;
Cesse, pois, a matinada,
Porque tudo é bodarrada!

Em palavras de Silvio Romero, "era um quase negro, que não tinha pejo de sua raça", donde o ponto de vista vivo e certeiro. Voltando à carta, ela mostra — à maneira ágil do folhetim romântico — uma vida rocambolesca e um destino excepcional. Pensando melhor, entretanto, se nota que mesmo os episódios mais surpreendentes decorrem das grandes linhas da sociedade brasileira. Como no bom romance realista, a peripécia inesperada põe a nu a lógica e as virtualidades de uma formação social, mostrando o que há de regra na exceção, de normal no exótico.

O percurso biográfico incrível, o escândalo das situações, dos problemas morais e ideológicos, fazem ver um mundo sui generis, pressentido e recalcado. O nosso europeísmo de fachada, para inglês ver — e não o europeísmo exigente — fizeram que só em mínima parte estas relações fossem exploradas e superadas na reflexão crítica. Por esse lado, a carta faz pensar na literatura brasileira que podia ter sido e não foi.

Assim, há uma dificuldade autêntica em entender o amor extremoso do pai que vende o filho como escravo para escapar a um aperto de dinheiro. Qual o sentido atrás das lágrimas copiosas com que se separam uns dos outros o menino e a família do negociante de africanos que o havia comprado e agora o revendia? O que significaria a estima votada a Luiz Gama pelo seu proprietário seguinte, o negociante e contrabandista alferes fulano de tal, que mais tarde seria preso por matar de fome alguns escravos em cárcere privado? 

O leitor das Memórias Póstumas de Brás Cubas estará lembrando o cunhado Cotrim, que contrabandeava com escravos e os mandava surrar no calabouço até sangrarem, ao mesmo tempo que era pagador meticuloso, pai amantíssimo e destacado filantropo. Humor negro à parte, são situações reais, com problemática afetiva e ideológica própria, na qual se explicita, na parte pouco publicada, o significado humano da organização social do Império.

A beleza da carta depende de certo culto do humorismo objetivo, à vontade na contradição, humorismo a que a mão leve e o understatement acrescentam a insolência. Vista a enormidade do real, para quê enfatizar?

Por exemplo, apesar da "infeliz memória", o filho não cala a galhardia do pai, nem lhe recusa o prezado qualificativo de "revolucionário de 1837"; no outro extremo, o orgulho pelas iniciativas insurrecionais da mãe o impede de reconhecer que ficaram sem efeito. A apresentação dela é soberba: "Luiza Mahin, pagã, que sempre recusou o batismo e a doutrina cristã".

No mesmo espírito de objetividade afrontosa os títulos de nobreza, os nomes de famílias ilustres, as patentes militares e os tratamentos de respeito e consideração vêm na companhia das baixezas inerentes à rotina do Império liberal-escravista, produzindo um tipo de ironia atroz e reveladora:

"A portaria de [minha] demissão foi lavrada pelo dr. Antônio Manuel dos Reis, meu particular amigo, então secretário de polícia, e assinada pelo exmo. dr. Vicente Ferreira da Silva Bueno, que, por este e outros atos semelhantes, foi nomeado desembargador da relação da Corte". 

A prosa desdenha o comentário e deixa à História o encargo de transformar títulos de glória em estigmas e vice-versa: "por turbulento e sedicioso" fui demitido "a bem do serviço público". (Roberto Schwarz)

São Paulo, 25 de julho de 1880

Meu caro Lúcio

Recebi o teu cartão com a data de 28 do pretérito. Não me posso negar ao teu pedido, porque antes quero ser acoimado de ridículo, em razão de referir verdades pueris que me dizem respeito, do que vaidoso e fátuo, pelas ocultar, de envergonhado: aí tens os apontamentos que me pedes e que sempre eu os trouxe de memória.

Nasci na cidade de S. Salvador, capital da província da Bahia, em um sobrado da rua do Bângala, formando ângulo interno, em a quebrada,lado direito de quem parte do adro da Palma, na Freguezia de Sant'Ana, a 21 de junho de 1830, por as 7 horas da manhã, e fui batizado, 8 anos depois, na igreja matriz do Sacramento, da cidade de Itaparica.

Sou filho natural de uma negra, africana livre, da Costa Mina (Nagô de Nação), de nome Luiza Mahin, pagã, que sempre recusou o batismo e a doutrina cristã. Minha mãe era baixa de estatura, magra, bonita, a cor era de um preto retinto e sem lustro, tinha os dentes alvíssimos como a neve, era muito altiva, geniosa, insofrida e vingativa.

Dava-se ao comércio — era quitandeira, muito laboriosa, e mais de uma vez, na Bahia, foi presa como suspeita de envolver-se em planos de insurreições de escravos, que não tiveram efeito. Era dotada de atividade. Em 1837, depois da Revolução do dr. Sabino, na Bahia, veio ela ao Rio de Janeiro, e nunca mais voltou. Procurei-a em 1847, em 1856 e em 1861, na Corte, sem que a pudesse encontrar.
Em 1862, soube, por uns pretos minas que conheciam-na e que deram me sinais certos, que ela, acompanhada com malungos desordeiros, em uma "casa de dar fortuna", em 1838, fora posta em prisão; e que tanto ela como os seus companheiros desapareceram. Era opinião dos meus informantes que esses "amotinados" fossem mandados por fora pelo governo, que, nesse tempo, tratava rigorosamente os africanos livres, tidos como provocadores.

Nada mais pude alcançar a respeito dela. Nesse ano, 1861, voltando a São Paulo, e estando em comissão do governo, na vila de Caçapava, dediquei-lhe os versos que com esta carta envio-te.
Meu pai, não ouso afirmar que fosse branco, porque tais afirmativas neste país, constituem grave perigo perante a verdade, no que concerne à melindrosa presunção das cores humanas: era fidalgo; e pertencia a uma das principais famílias da Bahia, de origem portuguesa. Devo poupar à sua infeliz memória uma injúria dolorosa, e o faço ocultando o seu nome.

Ele foi rico; e, nesse tempo, muito extremoso para mim: criou-me em seus braços. Foi revolucionário em 1837. Era apaixonado pela diversão da pesca e da caça; muito apreciador de bons cavalos; jogava bem as armas, e muito melhor de baralho, amava as súcias e os divertimentos: esbanjou uma boa herança, obtida de uma tia em 1836; e, reduzido à pobreza extrema, a 10 de novembro de 1840, em companhia de Luiz Cândido Quintela, seu amigo inseparável e hospedeiro, que vivia dos proventos de uma casa de tavolagem na cidade da Bahia, estabelecida em um sobrado de quina, ao largo da praça, vendeu-me, como seu escravo, a bordo do patacho "Saraiva".

Remetido para o Rio de Janeiro, nesse mesmo navio, dias depois, que partiu carregado de escravos, fui, com muitos outros, para a casa de um cerieiro português, de nome Vieira, dono de uma loja de velas, à rua da Candelária, canto da do Sabão. Era um negociante de estatura baixa, circunspeto e enérgico, que recebia escravos da Bahia, à comissão. Tinha um filho aperaltado, que estudava em colégio; e creio que três filhas já crescidas, muito bondosas, muito meigas e muito compassivas, principalmente a mais velha. A senhora Vieira era uma perfeita matrona: exemplo de candura e piedade. Tinha eu 10 anos. Ela e as filhas afeiçoaram-se de mim imediatamente. Eram cinco horas da tarde quando entrei em sua casa.

Mandaram lavar-me; vestiram-me uma camisa e uma saia da filha mais nova, deram-me de cear e mandaram-me dormir com uma mulata de nome Felícia, que era mucama da casa.
Sempre que me lembro desta boa senhora e de suas filhas, vêm-me as lágrimas aos olhos, porque tenho saudades do amor e dos cuidados com que me afagaram por alguns dias.
Dali saí derramando copioso pranto, e também todas elas, sentidas de me verem partir. Oh! eu tenho lances doridos em minha vida, que valem mais do que as lendas sentidas da vida amargurada dos mártires.

Nesta casa, em dezembro de 1840, fui vendido ao negociante e contrabandista alferes Antônio Pereira Cardoso, o mesmo que, há 8 ou 10 anos, sendo fazendeiro no município de Lorena, nesta Província, no ato de o prenderem por ter morto alguns escravos a fome, em cárcere privado, e já com idade maior de 60 a 70 anos, suicidou-se com um tiro de pistola, cuja bala atravessou-lhe o crânio.
Este alferes Antônio Pereira Cardoso comprou-me em um lote de cento e tantos escravos; e trouxe-nos a todos, pois era este o seu negócio, para vender nesta Província.

Como já disse, tinha eu apenas 10 anos; e, a pé, fiz toda viagem de Santos até Campinas. Fui escolhido por muitos compradores, nesta cidade, em Jundiaí e Campinas; e, por todos repelido, como se repelem cousas ruins, pelo simples fato de ser eu "baiano".
Valeu-me a pecha!  O último recusante foi o venerando e simpático ancião Francisco Egídio de Souza Aranha, pai do exmo. Conde de Três Rios, meu respeitável amigo.

Este, depois de haver-me escolhido, afagando-me disse:
"— Hás de ser um bom pajem para os meus meninos; dize-me: onde nasceste?
— Na Bahia, respondi eu.
— Baiano? — exclamou admirado o excelente velho. — Nem de graça o quero. Já não foi por bom que o venderam tão pequeno".

Repelido como "refugo", com outro escravo da Bahia, de nome José, sapateiro, voltei para a casa do sr. Cardoso, nesta cidade, à rua do Comércio nº 2, sobrado, perto da igreja da Misericórdia. Aí aprendi a copeiro, a sapateiro, a lavar e a engomar roupa e a costurar.

Em 1847, contava eu 17 anos, quando para a casa do sr. Cardoso, veio morar, como hóspede, para estudar humanidades, tendo deixado a cidade de Campinas, onde morava, o menino Antônio Rodrigues do Prado Júnior, hoje doutor em direito, ex-magistrado de elevados méritos, e residente em Mogi-Guassu, onde é fazendeiro. Fizemos amizade íntima, de irmãos diletos, e ele começou a ensinar me as primeiras letras.

Em 1848, sabendo eu ler e contar alguma cousa, e tendo obtido ardilosa e secretamente provas inconcussas de minha liberdade, retireime, fugindo, da casa do alferes Antônio Pereira Cardoso, que aliás votavame a maior estima, e fui assentar praça. Servi até 1854, seis anos; cheguei a cabo de esquadra graduado, e tive baixa de serviço, depois de responder a conselho, por ato de suposta insubordinação, quando tinha-me limitado a ameaçar um oficial insolente, que me havia insultado e que soube conter-se.

Estive, então, preso 39 dias, de 1º de julho a 9 de agosto. Passava os dias lendo e às noites, sofria de insônias; e, de contínuo, tinha diante dos olhos a imagem de minha querida mãe. Uma noite, eram mais de duas horas, eu dormitava; e, em sonho vi que a levavam presa. Pareceu-me ouvi-la distintamente que chamava por mim.

Dei um grito, espavorido saltei da tarimba; os companheiros alvorotaram-se; corri à grade, enfiei a cabeça pelo xadrez. Era solitário e silencioso e longo e lôbrego o corredor da prisão, mal alumiado pela luz amarelenta de enfumarada lanterna. Voltei para a minha tarimba, narrei a ocorrência aos curiosos colegas; eles narraram-me também fatos semelhantes; eu caí em nostalgia, chorei e dormi.

Durante o meu tempo de praça, nas horas vagas, fiz-me copista; escrevia para o escritório do escrivão major Benedito Antônio Coelho Neto, que tornou-se meu amigo; e que hoje, pelo seu merecimento, desempenha o cargo de oficial-maior da Secretaria do Governo; e, como amanuense, no gabinete do exmo. sr. conselheiro Francisco Maria de Souza.

Furtado de Mendonça, que aqui exerceu, por muitos anos, com aplausos e admiração do público em geral, altos cargos na administração, polícia e judicatura, e que é catedrático da Faculdade de Direito, fui eu seu ordenança; por meu caráter, por minha atividade e por meu comportamento, conquistei a sua estima e a sua proteção; e as boas lições de letras e de civismo, que conservo com orgulho.

Em 1856, depois de haver servido como escrivão perante diversas autoridades policiais, fui nomeado amanuense da Secretaria de Polícia, onde servi até 1868, época em que "por turbulento e sedicioso" fui demitido a "bem do serviço público", pelos conservadores, que então haviam subido ao poder. A portaria de demissão foi lavrada pelo dr. Antônio Manuel dos Reis, meu particular amigo, então secretário de polícia, e assinada pelo exmo. dr. Vicente Ferreira da Silva Bueno, que, por este e outros atos semelhantes, foi nomeado desembargador da relação da Corte.

A turbulência consistia em fazer eu parte do Partido Liberal; e, pela imprensa e pelas urnas, pugnar pela vitória de minhas e suas idéias; e promover processos em favor de pessoas livres criminosamente escravizadas; e auxiliar licitamente, na medida de meus esforços, alforrias de escravos, porque detesto o cativeiro e todos os senhores, principalmente os Reis.

Desde que fiz-me soldado, comecei a ser homem; porque até os 10 anos fui criança; dos 10 aos 18, fui soldado. Fiz versos; escrevi para muitos jornais; colaborei em outros literários e políticos, e redigi alguns.

Agora chego ao período em que, meu caro Lúcio, nos encontramos no "Ipiranga", à rua do Carmo, tu, como tipógrafo, poeta, tradutor e folhetinista principiante; eu, como simples aprendiz-compositor, de onde saí para o foro e para a tribuna, onde ganho o pão para mim e para os meus, que são todos os pobres, todos os infelizes; e para os míseros escravos, que, em número superior a 500, tenho arrancado às garras do crime.

Eis o que te posso dizer, às pressas, sem importância e sem valor; menos para ti, que me estimas deveras.

Teu Luiz

Fontes:
Novos Estudos CEBRAP Nº 25, outubro de 1989, pp. 136-141

* In Sud Mennucci. O Precursor do Abolicionismo no Brasil (Luiz Gama), São Paulo, Nacional, 1938.

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