segunda-feira, 14 de outubro de 2024

Pílulas 23

Inácio, filho de Moreno e Durvinha

Morador do Rio, filho de cangaceiros do bando de Lampião lembra história marcante de reencontro com o pai e a mãe, em Minas

Inácio Carvalho Oliveira, hoje com 86 anos, passou mais de 40 dias no cangaço antes de ser deixado com um padre no interior de Pernambuco

Por Elcio Braga — Rio de Janeiro, 13/10/2024

 
Inácio é filho dos cangaceiros Moreno e Durvinha, expoentes do bando de Lampião — Foto: Fernando Lemos

Apesar de ser apenas um bebê quando viveu no bando de Virgolino Ferreira da Silva, o Lampião, o pernambucano Inácio Carvalho Oliveira, de 86 anos, carregou por grande parte da vida o peso de ser filho do cangaço. Para fugir de constrangimentos e das zombarias, deixou Tacaratu, pequena cidade no interior de Pernambuco, para viver no Rio de Janeiro, onde o passado entre os cangaceiros seria omitido. Curiosamente, aproveitou a oportunidade para se tornar um homem da lei. Fez carreira na Polícia Militar, onde foi reformado. Atualmente, entre todos que estiveram no bando de Lampião, apenas ele e a própria filha do rei do cangaço, Expedita Ferreira, de 92 anos, estão vivos.

Inácio é casado e mora com Maria Odete Moraes Carvalho, com quem teve um casal de filhos, em Vista Alegre, na Zona Norte do Rio. Lúcido e saudável, costuma passear pela cidade e manter uma rotina com boas caminhadas.

 
PM reformado do Rio é o último nascido dentro do bando de Lampião

— Hoje, Inacinho e Expedita Ferreira, filha de Lampião e Maria Bonita, são as duas últimas pessoas que estiveram “dentro” do cangaço e com Lampião ainda em plena atividade, se assim podemos dizer. Embora Expedita tenha permanecido alguns dias com os pais, ela não nasceu no cangaço. Maria se ausentou para o parto. Ficou em um “coito” (esconderijo) até a criança nascer — explica Geraldo Antônio de Souza Júnior, pesquisador do cangaço e responsável pelo canal Cangaçologia, no YouTube.

 
Inácio Oliveira aos 67 anos, ao reencontrar os pais, Moreno e Durvinha, e os cinco irmãos em Mina — Foto: Acervo pessoal

O último dos cangaceiros foi José Alves de Matos, o Vinte e Cinco, natural de Paripiranga (BA). Ele morreu aos 97 anos em 2014, em Maceió (AL). Lampião, Maria Bonita e mais nove integrantes do bando não resistiram ao ataque da volante (força de segurança) na Grota do Angico, em Sergipe, em 1938.

Lembranças turvas

O filho do cangaço não sabia quase nada sobre suas origens. Tudo o que conhecia até os 67 anos era que os pais, os cangaceiros Moreno e Durvinha, expoentes do bando de Lampião, o haviam deixado com o padre Frederico Araújo, pároco da pequena Tacaratu, no interior de Pernambuco. Uma carta acompanhava a criança: trazia o nome dos avós. Os pais alegaram que o bebê, ao chorar, vinha chamando a atenção das volantes que os perseguiam.

 
Inácio e a irmã Lili, que iniciou a busca pelo irmão, e a mãe, a cangaceira Durvinha, após o fim do segredo do passado no bando de Lampião — Foto: Reprodução (Fernando Lemos)

Depois da morte de Lampião, os pais tiveram de abandonar o cangaço às pressas. A perseguição aos cangaceiros remanescentes era intensa. Na fuga, Moreno e Durvinha cruzaram a pé por 60 dias o interior do Nordeste até Minas Gerais, onde passaram a residir escondidos. Durvinha ainda levou uma picada de cobra no caminho e quase morreu.

— Moreno, cujo nome verdadeiro era Antônio Ignácio da Silva, passou a se chamar José Antônio Souto, impossibilitando dessa forma ser descoberto pela Justiça e por antigos rivais. Durvalina adotou o nome de Jovina — conta Geraldo.

 
Durvinha, mãe de Inácio Oliveira, num filme de Benjamin Abrahão Calil Botto proibido no Estado Novo — Foto: Reprodução

Em 2005, aos 67 anos, Inácio estava sem esperanças de ter notícia dos pais. Mas a curiosidade da irmã mais velha Neli “Lili” Maria da Conceição daria fim ao segredo. Pressionada, Durvinha contou a ela que deixara um filho com um padre em Tacaratu antes de se mudar para Minas. O menino nascera debaixo de uma quixabeira, árvore espinhosa típica da caatinga, possivelmente em território alagoano (embora tenha sido registrado em Pernambuco). Neli ligou para a pequena cidade e deixou o contato para o suposto irmão retornar. Inácio, que morava no Rio, ligou de volta:

— “Como é o nome da sua mãe?” Neli respondeu: “Jovina Maria da Conceição”. Aquilo foi um balde de água gelada, porque eu sabia que o nome da minha mãe era Durvalina — relata Inácio, lembrando a frustração.

 
Lampião com uniforme do Batalhão Patriótico — Foto: Pedro Maia

Mesmo assim, o PM reformado resolveu esticar a conversa e pedir para falar com a tal Jovina. Ele se emociona ao recordar.

— A senhora tinha um apelido? Era chamada de Durvinha? A senhora era do arrasta-pé? — perguntou Inácio, citando detalhes que só a mãe biológica poderia saber.

— Como você sabe disso? — respondeu Durvinha, dando a entender que sabia do que se tratava.

— Puta que pariu! Achei minha mãe — concluiu Inácio, vibrando com a realização de um sonho que acalentou por toda a vida.

A ansiedade com a descoberta foi tão grande que Inácio viajou imediatamente do Rio para Belo Horizonte. Não queria perder tempo para encontrar a mãe, o pai e seus cinco irmãos que nem sequer sabiam da história do cangaço. Dois dias depois, ele chegou à casa da nova família, saudado com fogos e festa. Conforme combinado previamente, abraçou ao mesmo tempo o pai, a mãe e a irmã mais velha. Foi a melhor solução para o impasse: todos queriam abraçá-lo primeiro.

 
Inácio Carvalho Oliveira foi deixado mais de um mês após o nascimento para ser criado por um padre. Os pais cangaceiros tiveram de fugir — Foto: Reprodução (Fernando lemos)
 
Diante do passado

Só a partir daí Inácio saberia detalhes da vida dos pais no bando do rei do cangaço.

— Meu pai foi chefe de grupo do bando. Era como um quartel. Tinha um comando geral que era do Lampião. E eles espalhavam a companhia para um lado e para o outro. Senão a polícia atacava e matava todo mundo — explica.

Moreno era reservado e pouco comentava sobre os tempos do cangaço.

— Meu pai precisava confiar muito na pessoa para falar alguma coisa. Ele contava as bravuras. Um dia, ele me disse: “Meu filho, tenho certeza que matei 22 pessoas. Só que foram mais. Só não contabilizei porque tão fui lá conferir” — relata.

Durvinha se destacou no período do cangaço. Inicialmente, foi casada com Virgínio Fortunato da Silva Neto, o Moderno, morto em ação. Logo depois, ela se relacionou com outro integrante do bando, com o qual viveria o resto da vida. É ela que aparece num filme do caixeiro viajante sírio-libanês Benjamin Abrahão Calil Botto. Ela abre um sorriso e aponta a arma para a câmera. O filme que retrata em 14 minutos Lampião e seu bando no Sertão, entre 1935 e 1936, chegou a ser proibido na ditadura do Estado Novo. No entanto, os rolos empoeirados da película foram redescobertos em arquivo público em 1955.

 
Ao contrário dos pais biológicos, Inácio seguiu o caminho da lei; entrou para a Polícia Militar do Rio — Foto: Reprodução / Fernando Lemos

Visão tolerante

Apesar de ter conhecido a mãe com idade muito avançada, Inácio guarda boas recordações da curta relação em visitas regulares ao longo de três anos.

— A minha mãe era uma doçura. Me colocava no colo e ficava fazendo carinho na minha cabeça — recorda o PM reformado. Me sinto feliz. Conheci meu pai, minha mãe. Foram casados de fato e de direito — conta ele, que se abatia ao ler a expressão “pai desconhecido” em sua certidão de nascimento.

O reencontro com o filho possibilitou que os ex-cangaceiros voltassem a ter contato com os parentes deixados para trás, com a fuga da polícia e posterior troca de identidade. Após quase 70 anos, a família toda voltou a se reunir no Nordeste. Durvinha morreu aos 92 anos em 2008, e o marido, aos 100, em 2010.

Apesar de ter ficado ao lado da lei por ser PM, Inácio tem hoje uma visão mais tolerante sobre o cangaço.

 
Depois de 67 anos após ser deixado com um padre, Inácio reencontra o pai, Moreno, chefe de grupo no bando de Lampião — Foto: Reprodução (Fernando Lemos)

— Várias pessoas já me perguntaram como classifico o cangaço. Se falarem que os cangaceiros são ladrões, é verdade: roubavam. Eles matavam e furtavam, mas com uma diferença. Eles roubavam o cabrito, o boi e outros animais para se alimentar e não para comprar drogas. O furto deles era para dar a quem tinha menos. Se o fazendeiro tinha muitas posses e era ruim, ele pedia dinheiro para dar aos mais pobres. Meu pai e minha mãe diziam que Lampião não era ruim. Era mau só quando faziam algo contra ele — comenta Inácio.

Para o pesquisador Geraldo Júnior, Lampião é um mito que merece muitas reflexões sobre a História do Sertão. Mesmo 86 anos após sua morte, o rei do cangaço é motivo de debate acalorado entre admiradores e críticos.

— Há os que definem os atos de Lampião como heroicos, possivelmente por desconhecer a sua verdadeira biografia, enquanto outros o enxergam apenas como um bandido frio, cruel e sanguinário. Herói ou bandido? Uma resposta que jamais será unânime, mas que continuará ecoando através do tempo e atraindo curiosos e estudiosos — opina.

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A vida de Aimée, a namorada de Vargas

Grande mulher, poderia ter virado um asterisco na biografia dele, mas foi ele quem virou um capítulo na dela

Elio Gaspari, fsp, 12/10/2024

Está nas livrarias "A Bem Amada", do repórter Delmo Moreira. Conta a vida de Aimée Sotto Maior, uma grande mulher. Paranaense, ela se casou em 1932 com Luiz Simões Lopes, o homem que redesenhou o serviço público brasileiro. Em 1937, Aimée começou a namorar o presidente Getúlio Vargas. Por dois anos ele viveu uma paixão fogosa e chamou-a de "A Bem Amada". Amavam-se até no mato.

Aimée Sotto Maior

Aimée tinha 23, ou 33 anos. Ele, 55. Ela morreu em 2006, aos 93 ou 103, sem jamais contar a idade, "nem para o médico". Segundo Delmo Moreira, o namoro com Vargas começou quando ela tinha 30 anos. O romance e a intensidade da paixão de Vargas por Aimée só foram reveladas em 1995, com a publicação do diário dele. Quando Vargas matou-se, ela pediu à filha apenas que rezasse por ele. Aimée nunca tocou no assunto.

A namorada de Getúlio Vargas poderia ter virado um asterisco na biografia dele, mas foi ele quem virou um capítulo na dela.

Aimée deixou Simões Lopes, Vargas e o Brasil em 1938. Um ano depois, com um modelo desenhado por um jovem figurinista chamado Christian Dior, ela brilhava na última grande festa de Paris antes da invasão alemã. Uma convidada lembraria: "Era tão linda, tão genuinamente agradável e exuberante, coberta de diamantes… Foi praticamente comida viva''. Nas mesas, um Rothschild, os duques de Windsor, a neta da princesa Isabel e o diabólico embaixador americano William Bullitt, que anos antes dera em Moscou o "Baile de Satan".

A linda loura de olhos azuis virou Aimée de Heeren, casando-se com o herdeiro do criador das lojas de departamentos nos Estados Unidos e entrou na lista das mulheres mais elegantes da revista Time. Dividia seu tempo entre Biarritz (onde ganhou de Juscelino Kubitschek o consulado do Brasil), Paris, Palm Beach e Nova York, com uma casa em cada cidade.

Numa época em que se falava em "alta sociedade", ela estava em todas. Quando o magnata mexicano Carlos de Beistegui deu em Veneza uma das grandes festas do pós-guerra, ela estava lá. Encantou o cineasta americano Orson Welles e namoraram por uma semana. "Ele era muito chatinho", Aimée contaria a uma amiga.

A rainha Elizabeth foi coroada em 1952 e ela estava lá, com o embaixador brasileiro Assis Chateaubriand. (Chatô saiu da abadia levando a cadeirinha dos convidados). Era vizinha de Joseph Kennedy, pai do futuro presidente americano e imprudente predador das jovens convidadas dos filhos.

Em 1990, quando morreu um nobre alemão de suas relações, ela ligou para uma amiga: "O conde morreu, vamos ao enterro? Vai estar todo mundo lá". Ao funeral do duque de Buccleuch ela foi com um tailleur marrom, para não ser confundida com a viúva, pois havia motivos para isso.

Gilberto Freyre, que tinha fixação numa Wanderley do século 19, encantou-se com ela e chamou-a de "Sinhazinha da Várzea do Capibaribe". "Não há nenhuma, porém, que seja tão sinhá, como Aimée, Condessa de Heeren." Condessa, ela nunca foi.

Aimée veio ao Brasil pela última vez em 1996. Dizia que Pindorama ficava "muito longe". Morreu dez anos depois, em Nova York. Na juventude, ela foi de zepelim para a Suíça. Mais tarde, voou no supersônico Concorde para Paris.

Sua casa de Nova York foi vendida em 2007 por US$ 33 milhões. O leilão do mobiliário mostrou que, na segunda metade do século 20, ela tinha o gosto dos ricaços do 19.

Aimée Sotto Mayor: revelada a mulher que abalou o coração de GetúlioVargas

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A vida posta em risco na roleta

A compulsão decorre de uma seriação detentora do poder imaginário de redefinir as condições reais de vida

Muniz Sodré, fsp, 12/10/2024

Bastou a Alexei Ivanovitch jogar uma única vez para que o vício se instalasse (Dostoeivsky em "O Jogador"), com todas as consequências de destruição e ruína. Para o adicto, o fundamento do jogo não é ficar milionário, mas substituir o tempo real por uma mitologia que absorve a angústia do tempo e da morte. A compulsão decorre de uma seriação detentora do poder imaginário de redefinir as condições reais de vida e finitude. O motor neurótico do sistema, verdadeira raiz da paixão, é ganhar e perder sem fim, satisfação e decepção, até que o jogador se autodestrua.

Nessa época de intenso pessimismo político, moral e cultural, é também essa a lógica da religião da matéria oferecida como consolação às massas pelos cultos da prosperidade. Aposta-se que um investimento monetário em Deus retornará multiplicado. E o crupiê pastoral adverte que é a primeira coisa a fazer com o salário, pois "Deus não gosta de restos".

Na roleta financeira, os lances são altíssimos, claro, para quem pode. Mas é idêntica a pulsão: o corpo-imagem do sujeito, fabricado pelas novas tecnologias da comunicação, é instado a experimentar o gozo imediato do risco.

Agora soou um alarme: os populares jogos de apostas online, conhecidoscomo bets, são suspeitos de afetar negativamente  o bem-estar da população e a economia nacional. "Ludópata" é a designação científica para o viciado, cujo tratamento ainda não encontra lugarem clínicas médicas

A questão não é, porém, terapêutica. Sob o capitalismo algorítmico, toda estrutura social passa a funcionar como cassino. O projeto neoliberal consiste no desmantelamento do estado de bem-estar social e na definição do indivíduo como criador único de si mesmo, livre para a obtenção de riquezas. Cada um rodando em torno de si próprio, como uma roleta.

Esse giro, se excessivo, beira a catástrofe. O nazifascismo foi um giro alucinado e maquinal ao redor dos próprios princípios, sem admitir relações nem limite externo, ou seja, a essência mesma da loucura. O fenômeno ressurge como forma soft de poder, em que se imbricam a razão econômica, a digital e a biológica, para acabar com a distinção entre homem e máquina, entre espírito e matéria. O culto da prosperidade é aspecto popular dessa despercebida religião inespiritual, que absorve crentes e ateus.

Jogos de azar, sempre houve. O que agora acontece é a perfeita adequação entre risco e uma ordem social voltada para a construção do sujeito como empreendedor individual, descomprometido com o comum. Mas o capital disponível contempla só as classes abastadas. Nas subalternas, a carência é consolada pela retórica da prosperidade, que não aponta para trabalho produtivo, e sim para o imaginário da riqueza aleatória.

Aposta-se em tudo: na sobrevivência pessoal, no templo e agora nas bets, o novo cassino online, que o governo se empenha em legalizar, interessado apenas em arrecadar. A Fazenda criou até mesmo uma Secretaria Geral de Apostas e Prêmios. Bet é nada menos que o crack virtual, obscenamente oferecido a crianças, que se tornam crupiês mirins.  Fala-se em ludopatia epidêmica, mas se esconde a fonte verdadeira da compulsão. A hipocrisia é oficial.

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Todos os argumentos contra as cotas serevelaram errados

Visão de que medida pioraria qualidade dos currículos era a velha demofobia

Elio Gaspari, fsp, 05/10/2024

O Censo da Educação Superior mostrou que o Brasil está prestes a bater a marca dos 10 milhões de jovens nas universidades. Como os dados são de 2023, é possível que isso já tenha acontecido.

O mesmo censo revelou que 51% dos alunos que entraram nas universidades graças às cotas concluíram os cursos. Entre os não cotistas, esse desempenho ficou em 41%.

Além da simples estatística, há aí uma lição política, indicativa do grau de demofobia incrustado na vida nacional. Nos últimos anos do século passado, quando se discutia a Lei das Cotas, muita gente boa, inclusive professores, era contra a ideia, por motivos supostamente pedagógicos.

As cotas comprometeriam a qualidade dos currículos, pois os cotistas não seriam capazes de acompanhar as aulas. Além disso, muitos deles acabariam deixando os cursos.

Era apenas a velha demofobia. Todos os argumentos contra as cotas revelaram-se errados.

Na segunda metade do século 19, argumentava-se que os escravizados não estavam preparados para a Lei do Ventre Livre nem para a alforria dos sexagenários e muito menos para a Abolição.

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Um sinal aberrante de decadência nacional

Nação nenhuma se deduz diretamente da estrutura social, e sim da convergência de efeitos imaginários e ideológicos, como os de povo, país e língua

Muniz Sodré, fsp, 05/10/2024

Mark Robinson, vice-governador e atual candidato ao governo da Carolina do Norte, EUA, proclama-se negro nazista e favorável à escravidão. Justifica: "há pessoas que merecem ser escravizadas". Não se inclui entre elas, claro. São muitas as aberrações dessa ordem na história geral da diáspora negra, salientes em contextos sociais diversos.

O personagem Prudêncio, de Machado de Assis, é um exemplo ficcional da transição de escravo oprimido a alforriado opressor. Episódios análogos registraram-se no governo do Bolsonaro. Já na relevante crônica da guerra dos escravizados na Jamaica, em meados do século 18, avultava o nome do erudito Edward Long, que descrevia a luta da população escrava nativa contra os insurretos africanos. O medo de Long era tanto que, para ele, a simples existência de africanos "deformava a beleza deste globo de tal maneira, que eles merecem ser exterminados da Terra".

 
Candidato republicano a governador da Carolina do Norte e atual vice-governador da Carolina do Norte, Mark Robinson gesticula enquanto participa de um evento de campanha em Asheville - Jonathan Drake/Reuters

"O medo dos africanos tinha de fato inspirado os primeiros esforços para restringir o comércio de escravos" (Vincent Brown em "Uma Guerra Afro-Atlântica"), o que ressoava no Império Britânico e na América. O nazi-racismo de Robinson é um eco histórico dessa crioulização, que impregnou o imaginário racial de uma escravidão mais amável e dócil, contrastante com o vigor da resistência negra no Caribe.

Há uma perversa lógica histórica na associação em Robinson de nazismo a escravidão, pois Auschwitz, além do campo de extermínio, foi também a maior fábrica de escravos. Essa aberração é deriva trumpista da clivagem social e humana que, apesar do poderio econômico, tecnológico e bélico da América, ameaça o Estado nacional. Nação nenhuma se deduz diretamente da estrutura social, e sim da convergência de efeitos imaginários e ideológicos, como os de povo, país e língua. Constituída por crenças, mas também medos, a sociedade reconhecida como nação é uma comunidade imaginada.

Até agora, sob a mística da burguesia tradicional, o nacional era uma homogeneidade caracterizada pelo progressismo e por um passado comum. Sob o influxo do neoliberalismo, com uma apreensão heterogênea da história, milenarismos laicos e religiosos prometem duvidosas respostas para o desemparo popular. Trump e próceres da ultradireita são variantes desse fenômeno, que não se sintoniza pelo Estado nacional, e sim por um sistema financeiro e militar em torno de uma sociedade restrita. O povo nacional é relegado à lata de lixo da história.

Um personagem como Robinson é sintoma menor da decadência do Estado nacional americano. Mas muito significativo entre nós, país majoritariamente afro, que tenta amainar, por políticas de ação afirmativa, o legado desigual do passado escravista. De fato, o contrassenso de um afro nazista e partidário da escravidão só é possível na abolição do passado comum como princípio espiritual.

Na decadência, nação deixa de coexistir com pátria, que se sobrepõe como princípio. Abre-se um caminho tóxico para a ideologia da unidade militarista, da educação cívica pelas armas e da política como paródia grotesca da representação. Aconteceu com o nazifascismo, ensaia-se na América. Se Trump vencer, os abutres da carniça do passado, como Robinson, voarão também aqui.

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A great day in Harlem

 Foto Art Kane

A Great Day in Harlem part 1

A Great Day in Harlem part 2

A Great Day in Harlem

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Cometase aproxima da Terra e promete espetáculo

C/2023 A (Tsuchinschan-Atlas) sobreviveu à passagem pelo Sol e terá brilho máximo no dia 12

Salvador Nogueira, fsp, 06/10/2024

Ainda é cedo para proclamá-lo "o cometa do século", mas a boa notícia é que o cometa Tsuchinschan-Atlas (designação C/2023 A3) sobreviveu à passagem pelo periélio, o ponto de máxima aproximação com o Sol, o que garante um belo espetáculo visual pelos próximos dias.

Muitos astrônomos estão apostando que não chegará a ser mais brilhante que o McNaught, de 2007, que atingiu magnitude -6,0 (quanto menor o número, maior o brilho) e chegou a ser visível até mesmo à luz do dia, mas eles também lembram que cometas são como gatos –ninguém sabe exatamente o que farão a seguir. De fato, a passagem pelo periélio pode aumentar o nível de atividade do cometa a ponto de gerar ejeções explosivas de material, capazes de aumentar em muito seu brilho.

"Ainda não é o cometa do século, provavelmente não será, mas ter sobrevivido ao periélio dá um alento", diz Cássio Barbosa, astrônomo do departamento de física da FEI. "E, claro, quando falamos ‘do século’, é até o momento."

 
Cometa C/2023 A3 (Tsuchinshan-Atlas) visto próximo a Aguas Blancas, no Uruguai, na madrugada de 28 de setembro de 2024 - Mariana Suarez/France Presse

Lembrando: o que são cometas? São essencialmente grandes agregados de gelo e rocha, remanescentes da época em que o Sistema Solar se formou, há 4,6 bilhões de anos. A imensa maioria desses objetos reside permanentemente nas profundezas do espaço, além da órbita de Netuno, mas alguns deles, por força de uma interação gravitacional ou mesmo uma colisão, acabam sendo atirados para o interior do sistema. É quando propiciam a possibilidade de espetáculos celestes e, na pior das hipóteses (felizmente muito rara), impactos capazes de ameaçar a vida na Terra.

O C/2023 A3 (Tsuchinschan-Atlas), descoberto no ano passado, é um desses. Sua trajetória indica que provavelmente ele nunca esteve nas regiões internas do Sistema Solar antes. Ele vem viajando na nossa direção há milhares de anos e concluiu seu mergulho com a aproximação máxima ao Sol, no último dia 27, quando esteve a 58,6 milhões de km dele (pouco mais de um terço da distância que a Terra guarda da estrela).

Muitos cometas não resistem a esse processo –a radiação solar que vai sublimando o gelo que os compõe, somada ao efeito gravitacional de maré, por vezes os esfarela por completo. Não foi o caso do Tsuchinschan-Atlas, que segurou a onda e agora iniciou seu afastamento do Sol, pegando o caminho de volta às profundezas do Sistema Solar.

O cometa já esteve bem visível no céu da madrugada, na direção leste, antes do nascer do Sol, mas a partir do dia 9, quarta-feira, já passa a ser visível ao entardecer, logo após o poente, na direção oeste. No dia 12, atingirá sua distância mais próxima da Terra: 70,7 milhões de km. No melhor dos casos, pode atingir um brilho de magnitude -4,0 (similar ao de Vênus, o mais brilhante dos planetas, que tem -4,7). "Isso o tornará visível até mesmo em grandes cidades, onde a poluição luminosa costuma atrapalhar a observação", diz Barbosa.

Com o passar dos dias, ele vai se erguer cada vez mais no céu, mas também perderá brilho, prosseguindo em sua jornada aos confins do sistema planetário –para, provavelmente, nunca mais voltar. Diferentemente de cometas periódicos, que retornam de tempos em tempos (caso mais famoso é o do Halley, com periodicidade de 76 anos), a passagem do Tsuchinschan-Atlas, ao menos para todos os efeitos práticos, será um evento único.

Esta coluna é publicada às segundas-feiras na versão impressa, em Ciência.

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Libanesa em voo derepatriados só aceitou vir para o Brasil com seus gatos

Ilustradora Helena al Jamal deixou pai, emprego e amigos por pressão da mãe, brasileira, mas trouxe com ela Greg e Rily

Tatiana Cavalcanti, fsp, 08/10/2024

A ilustradora libanesa Helena el Jamal, 28, só aceitou deixar Beirute se pudesse levar junto seus dois gatos, Greg e Rily. Ela e os animais de estimação, com os quais vivia na capital do Líbano, chegaram ao Brasil na manhã desta terça-feira (8), na Base Aérea de São Paulo, em Guarulhos, no segundo voo da FAB (Força Aérea Brasileira) que transportou repatriados do país árabe.

 
A ilustradora Helena el Jamal, 28, com um dos seus gatos, Greg; eles vieram do Líbano com ela no voo da FAB, que pousou na manhã desta terça-feira (8) na base aérea de São Paulo, em Guarulhos - Allison Sales/Folhapress

Helena e os gatos tiveram de deixar Beirute, onde ela vivia fazia dez anos, com a escalada dos ataques de Israel à cidade. Foi uma exigência de sua mãe, brasileira, para que ela fosse embora com urgência em meio a bombardeios cada vez mais constantes.

"Não queria voltar para o Brasil. Vim porque minha mãe me obrigou. Tinha uma vida estabelecida lá: emprego, gatos e amigos. É um país maravilhoso. Meu pai teve de ficar lá", disse ela, em português fluente.

Sua mãe e sua irmã deixaram o país na semana passada, em um voo comercial.

A ilustradora e seus bichos moravam uma rua abaixo de onde ocorreram bombardeios frequentes. Com a tensão aumentando, fugiram para a casa de um amigo em uma área de montanha.

Com o avanço dos ataques, os clientes de Helena rarearam. A agência em que ela trabalhava não podia garantir que ela continuaria empregada. Assim, com a pressão da mãe, ela decidiu incluir seu nome, e dos gatos, na lista da FAB. "Eu não iria sair de lá sem o Greg e a Rily".

Helena estava nas montanhas quando recebeu a mensagem de que ela e seus pets estavam na relação do voo para o Brasil. "Aí foi uma corrida para conseguir a liberação do veterinário, que era um pouco mais afastado dos bombardeios, mas do lado da cidade. Tive de correr para organizar tudo e trazer os gatos em meio ao barulho das bombas explodindo."

Ela conta que Greg e Rily não tinham uma caixa de transporte. Mas suas amigas correram para comprar e, assim, os animais puderam embarcar. "No fim, deu tudo certo."

Helena e os gatos, cada um em uma caixa pequena, deixaram Beirute na segunda-feira (7) às 18h30 do horário local (12h30 em Brasília). O KC-30 da FAB pousou em Lisboa, e os passageiros nem deixaram a aeronave. Abasteceram e logo levantaram voo rumo ao Brasil.

Quase 19 horas depois, o avião pousou na Base Aérea de São Paulo. Os gatos não puderam sair da caixinha nem comer ou beber água. De lá, ela e os animais seguiriam para o Rio e terminariam a viagem em Nova Friburgo, onde mora a mãe.

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Demolição Digital: O apagamento da memória cultural na Era do Streaming [BRAINCAST 566]

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Rios se formam nodeserto do Saara após tempestades raras

Fenômeno, que não ocorria há pelo menos 30 anos, está ligado à seca na amazônia

DW, 10/10/2024

Uma rara sequência de tempestades inundou áreas do deserto do Saara nas últimas semanas, no norte da África, e deixou rios de água em meio às palmeiras e dunas de areia.

Em 10 de setembro, ao menos 20 pessoas morreram no Marrocos e na Argélia como consequência das chuvas. A distribuição de água potável e a infraestrutura de estradas e rede elétrica foram danificadas. As chuvas também atingiram algumas das regiões que sofreram um terremoto há um ano.

 
Tempestade rara no Saara reativou lago que estava seco há décadas - Picture alliance/dpa/AP via DW

O Saara é considerado um dos lugares mais áridos do mundo e raramente recebe chuvas no final do verão. Segundo a representante da Diretoria Geral de Meteorologia do Marrocos, Houssine Youabeb, este tipo de precipitação não era vista há décadas na região. "Faz 30 a 50 anos que não chove tanto em um espaço de tempo tão curto", disse.

Chuvas alteram clima na região

Essas chuvas, classificadas por meteorologistas como tempestades extratropicais, podem mudar o curso do clima da região nos próximos meses. Elas fazem com que o ar retenha mais umidade, causando mais evaporação e, consequentemente, mais tempestades, afirmou Youabeb.

Em média, o deserto marroquino registra menos de 250 milímetros de chuva por ano. Em algumas regiões, a precipitação não passa de uma dezena de milímetros anualmente. Segundo o governo marroquino, porém, apenas dois dias de chuva em setembro foram suficientes para disparar esta taxa.

Em Tagounite, um vilarejo a cerca de 450 quilômetros ao sul da capital, por exemplo, foram registrados mais de 100 milímetros de chuvas em um período de 24 horas.

Após as chuvas, a água jorrou pelas areias do Saara em meio a castelos e à flora do deserto. Satélites da Nasa identificaram a formação de rios de água enchendo o lago Iriqui, que estava seco há 50 anos.

Tempestade acontece após anos de seca extrema

A tempestade chega na região após seis anos consecutivos de seca, que forçaram o racionamento de água em diversas áreas do Marrocos.

A abundância de chuvas provavelmente ajudará a abastecer os aquíferos subterrâneos, que são usados para fornecer água às comunidades do deserto. Os reservatórios represados da região registraram enchimento a taxas recordes durante todo o mês de setembro.

Não está claro, porém, até que ponto as chuvas de setembro ajudarão a aliviar a seca na região.

Segundo a Nasa, em setembro, a tempestade que atinge o deserto está associada a um ciclone extratropical, um evento extremamente raro na região. "O sistema se formou sobre o cceano Atlântico e se estendeu para o sul, puxando a umidade da África equatorial para o norte do Saara", escreveu a agência.

Ainda segundo a Nasa, uma pesquisa realizada por Moshe Armon, do Instituto de Ciências da Terra da Universidade Hebraica de Jerusalém, indicou que, dos mais de 38 mil eventos de precipitação no Saara nas últimas duas décadas, apenas 30% deles ocorreram durante o verão. Desses, quase nenhum estava associado a um ciclone extratropical, como ocorre agora.

Chuva no deserto está associada à seca na amazônia

Uma análise publicada pelo Laboratório de Análise e Processamento de Imagens de Satélites, da Universidade Federal do Alagoas em agosto, mostra que ventos fortes e constantes vindos do sudeste do planeta, somados a uma anomalia na temperatura dos oceanos, também contribuem para a chuva no Saara e conectam o deserto à seca na amazônia.

"Com o [oceano] Atlântico Norte mais quente, ventos alísios [constantes] de sudeste têm mantido a ZCIT [Zona de Convergência Intertropical] muito afastada da amazônia, inibindo as chuvas e beneficiando o Saara. Esse é apenas um dos impactos indiretos que a posição da ZCIT na África pode ter no clima da amazônia", escreve o laboratório.

E mais

Mapa doDeserto do Saara

Localizaçãogeográfica

Deserto do Saara

O Saara é um deserto localizado na região norte do continente africano.

O Saara é o maior deserto quente do mundo. Localiza-se na região norte da África. Seu território estende-se pelos seguintes países: Egito, Marrocos, Argélia, Líbia, Tunísia, Mauritânia, Mali, Sudão e Chade. Faz fronteira ao norte com o Mar Mediterrâneo, ao sul com o rio Níger, a leste com o mar Vermelho e oeste com o Oceano Atlântico.

Principais características do deserto do Saara:

• Ao contrário do que muitos pensam, o Saara situa-se, quase totalmente, numa região de planalto (em média 300 metros de altitude) com presença de cadeias montanhosas. Podemos encontrar algumas regiões com rochas, porém grande parte do Saara é composta por areia. As dunas do deserto são formadas pelas perigosas tempestades de areia. Existem também os oásis, pequenas áreas com presença de água e vegetação.

• As chuvas são extremamente raras e as temperaturas podem chegar a 50 °C durante o dia e –5 °C à noite. Com estas condições climáticas e geográficas é praticamente impossível viver no Saara.

• Poucos povos, entre eles os tuaregues e os beduínos, habitam esta região. Os beduínos costumam atravessar constantemente o Saara, acompanhados de seus camelos, para praticarem o comércio ambulante.

• Apesar de ser um deserto, o Saara não é totalmente plano. Ele contém várias formações rochosas, como o Tassili n'Ajjer na Argélia, que apresenta impressionantes arcos rochosos, bem como cadeias de montanhas como as montanhas Ahaggar (também conhecidas como Hoggar) no sul da Argélia.

• O Saara é conhecido por suas vastas extensões de dunas de areia, conhecidas como ergs ou mares de areia. Alguns dos ergs mais famosos incluem o Erg Chebbi no Marrocos e o Erg Murzuq na Líbia.

Curiosidades geográficas:

- A deserto do Saara possui pouco mais de 9 milhões de quilômetros quadrados.

- A palavra Saara deriva da palavra tenere que na língua tuaregue significa deserto.

- Atualmente (ano de 2024), vivem cerca de 2,6 milhões de pessoas no território do deserto do Saara.

- O principal rio que atravessa o deserto do Saara é o rio Nilo.

- As principais espécies animais que vivem nessa região desértica são: dromedários, cabras, raposa-do-deserto (feneco), escorpião-amarelo e adax (espécie de antílope). Porém, vale ressaltar que estas espécies vivem em regiões específicas do deserto saariano, ou seja, não são encontradas em toda extensão desértica.

- Principais oásis: Dades gorges (Marrocos), Chebika Mountain Oasis (Tunísia), Tinerhir Oasis (Marrocos) e Oasis de Tafilalet (Marrocos).

Por Marcia Rodrigues - Professora de Geografia - Graduada pela Universidade de Guarulhos (2005)

Bibliografia Indicada

Fonte de referência:

- TERRA, Lygia e COELHO, Marcos de Amorim. Geografia Geral – O espaço natural e socioeconômico. São Paulo: Editora Moderna, 2016.

 

 

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